Acórdão nº 2350/17.8T8PRT.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 24 de Novembro de 2020

Magistrado ResponsávelANA PAULA BOULAROT
Data da Resolução24 de Novembro de 2020
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

PROC 2350/17.8T8PRT.Pl1S1 6ª SECÇÃO ACORDAM, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I AA, veio intentar a presente acção declarativa com processo comum contra BB, pedindo a sua condenação no pagamento de uma indemnização de valor não inferior a € 75.000,00, acrescida de juros de mora á taxa legal, a partir da citação e até integral pagamento.

Funda esta sua pretensão na responsabilidade civil por factos ilícitos, emergente da elaboração e envio pelo Réu ao Autor e a outros familiares, de cartas anónimas de conteúdo apto a lesar a honra, reputação, bom nome e dignidade social do Autor.

O Réu contestou por excepção e por impugnação, tendo deduzido pedido reconvencional. Em sede de defesa indirecta invocou a excepção da prescrição; em sede de defesa directa impugnou os factos alegados pelo Autor; em reconvenção pediu a condenação do Autor no pagamento de uma indemnização que cifra em €25.000,00, por danos patrimoniais e não patrimoniais causados pela sua conduta, traduzida na dedução de acusação crime infundada e de pedido de indemnização civil.

Na Audiência Prévia, admitiu-se o pedido reconvencional, relegou-se para final o conhecimento da excepção da prescrição do direito invocado pelo Autor, definiu-se o Objecto do Litígio e foram fixados os Temas de Prova.

A Final foi produzida sentença a julgar a acção parcialmente procedente condenando-se o Réu a pagar ao Autor uma indemnização de € 20.000,00 (vinte mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal, a partir da citação até integral pagamento, absolvendo-se o mesmo do demais peticionado, e foi julgada improcedente a reconvenção, com a absolvição do Autor do pedido reconvencional.

Inconformado, o Réu interpôs recurso de Apelação, o qual veio a ser julgado procedente, com a sua absolvição do pedido, mantendo-se no mais o decidido.

Foi interposto recurso de Revista pelo Autor, na sequência do qual se anulou o Acórdão impugnado, tendo vindo a ser produzido novo Acórdão pelo Tribunal da Relação do ………., fundado, praticamente, nos argumentos anteriormente produzidos e que deram lugar à anterior anulação, tendo-se concluído do mesmo modo.

Irresignado com este desfecho recorre novamente o Autor, apresentando as seguintes conclusões: - O problema dos autos está em saber se a 1.ª instância utilizou ou não abusivamente, em sede de presunção judicial, as regras previstas pelos arts. 349.º e 351.º do CC, ou se, pelo contrário, foi a Relação do …….. que aplicou erroneamente os princípios subjacentes a essas regras, quando concluiu no sentido de que não se podia dar como assente a factualidade do facto provado n.º 5 do elenco seriado na sentença da 1.ª instância.

- A questão da utilização das presunções judiciais pode ser apreciada pelo STJ se o acórdão do Tribunal da Relação, nesse segmento, ofender norma legal, padecer de manifesta ilogicidade ou se partir de factos não provados (ou, no inverso, desconsiderar factos provados) – cfr. Acórdãos do STJ de 14.07.2016, proc. 377/09.2TBACB.L1.S1, de 19.01.2017, proc. 841/12.6TBMGR.C1.S1 e de 11.04.2019, proc. 8531/14.9T8LSB.L1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

- As presunções são estabelecidas com base em factos instrumentais a partir dos quais, à luz das regras da experiência, se dão como provados os factos presumidos – cfr. artigo 349.º do Código Civil e Acórdãos do STJ de 19.01.2017, proc. n.º 841/12.6TBMGR.C1.S1 e de 11.04.2019, proc. 8531/14.9T8LSB.L1.S1.

- O que se discute neste recurso é o juízo da Relação sobre a ilogicidade da presunção estabelecida pela 1.ª instância, bem como a ilogicidade da forma como afastou tal presunção, no quadro da aplicação dos arts. 349.º e 351.º do CC. Tal apreciação desse nexo lógico é matéria de direito, nos termos que têm vindo a ser consagrados pela jurisprudência do STJ.

- Vejamos como é que as coisas devem ser elencados à luz da factualidade descrita pelo Acórdão da Relação sob recurso, considerando a sua fundamentação (das suas págs. 25 a 27), devidamente compaginada com a súmula dos depoimentos prestados (que consta das págs. 18 a 24): • O Réu, nas declarações prestadas em audiência de julgamento, começou por negar peremptoriamente a elaboração e o envio das cartas; • Confirmou conhecer a avó do Autor e a sua tia, Senhora CC, com quem existe o conflito familiar a que se reporta o facto provado n.º 1 (que envolve o A. e os seus tios, entre eles aquela senhora); • Admitiu tersido ele a enviar as cartas em causa nos autos, mas afirmando não se recordar que cartas seriam; • Depois, admitiu poderem ser cartas enviadas a pedido do DD, advogado, com quem mantém relações pessoais e comerciais, mas sem ter isso como certo; • Tal possibilidade de as cartas terem sido enviadas pelo DD foi negada peremptoriamente por este, explicando que quem trata do envio de correio no seu escritório é desde há muito uma funcionária, o que levou a Relação do ….. a considerar “desde logo evidente não ser de todo plausível que o ilustre advogado solicite, mesmo a um amigo, que se desloque ao correio para expedir correio do seu escritório”, razão pela qual a Relação do …. concluiu que “não merece nesta parte credibilidade a tese do Réu”; • Em face disso, a Relação do …….. considera que deve ser ponderado o relacionamento do Réu com a tia materna do Autor, a referida CC, sendo certo que a Relação do ……… admitiu que tal relacionamento pudesse ser uma mera amizade ou mesmo de algo mais (relação de namoro, um “caso” ou um affair a que as testemunhas GG, KK e LL se referiram); • Mais considerou a Relação do …….. que o depoimento da referida tia foi evasivo e pouco convincente; • Considerou ainda que, dada a personalidade do Réu, o envio das cartas teria de lhe ter sido solicitado por alguém das suas relações próximas de amizade, o que levou a Relação a perguntar sobre a quem é que ele estaria a prestar um favor, não sem deixar de transmitir a ideia de que a remessa das cartas poderia ter a ver com questões relativas ao litígio familiar que teria envolvido o Autor e a referida CC, amiga do Réu (talvez mesmo sua namorada).

- Neste contexto, é verdadeiramente surpreendenteque a Relação do ……o continue a entender que a presunção estabelecida pela 1.ª instância se baseou apenas numa demasiado singela “falta de explicação plausível” para o envio das cartas.

- Como assim? Então: • A Relação do …….. não considerou estapafúrdia a tese de que as cartas teriam sido enviadas a mando do DD?; • A Relação do ….. não considerou a relação de amizade – ou até talvez mais do que isso – entre a referida CC, que tinha um conflito familiar com o Autor, e o Réu?; • A Relação do ……. não relevou que, nas suas declarações, o Réu começou por dizer que não se lembrava quem lhe podia ter pedido para mandar as cartas, para depois ter recorrido ao “golpe baixo” de querer envolver o advogado, mas sem nunca referir, afinal, quem é que lhe teria pedido realmente para enviar as cartas, quando a própria Relação do ……. concluiu que teria de ser alguém das suas relações próximas de amizade? - Em face de tudo isto, em face da ausência de qualquer explicação plausível para o envio das cartas, quando não seria difícil que essa explicação tivesse sido dada, não é por demais evidente que a 1.ª instância não violou qualquer nexo lógico quando estabeleceu a presunção em apreço e que, pelo contrário, é a Relação do ……. que ofende as regras da lógica, do bom senso e da mais elementar experiência de vida? - Quem vai ao correio enviar cartas sem remetente, que tem o cuidado de contar e de que paga o porte, é, à partida – de acordo com uma elementar experiência de vida –, quem as elaborou, participou nessa elaboração ou conhece o que está a remeter. Sem prejuízo de poder existir uma explicação plausível que justifique o seu desconhecimento acerca desse conteúdo (relação profissional, pedido de um amigo, por ex.), o que naturalmente implica que se conheça tal explicação ou motivo razoável para ela não poder ser apresentada, o que no caso dos autos não acontece. É a esta luz que se estabelece o nexo lógico entre os factos indiciários e o facto presumido.

- A não ser assim, estaria encontrada uma fórmula mágica para desresponsabilizar quem quer que seja, mesmo os mais aviltantes criminosos. Deixaria mesmo de se poder condenar os “correios de droga”, a não ser que se tivesse a prova directa de que eles sabem o que transportam.

- Deste modo, é evidente que a sentença da 1.ª Instância não se bastou – para estabelecer a presunção em apreço – com uma singela referência à falta de uma explicação plausível para o envio das cartas. Pelo contrário, como se retira daquela sentença, agora reforçada com o acórdão recorrido, a conclusão da falta de explicação plausível tem precisamente a ver com os factos instrumentais estabelecidos a partir das declarações do Réu e da testemunha DD. E bem assim das demais testemunhas que descrevem o quadro de amizade entre o Réu e a CC (ou seja, II, GG, KK, LL e FF).

- Os factos indiciários não se resumem à circunstância do Réu ter expedido as cartas (e pago o respectivo porte após diálogo com a funcionária dos correios e de ter tido o cuidado de as contar, certificando-se de que eram seis – cfr. facto provado n.º 20), englobando igualmente a matéria instrumental retirada dos depoimentos do Réu e de DD, e das demais testemunhas, nos termos constantes do acórdão recorrido, os quais são consentâneos com as regras de experiência comum.

- São por isso factos indiciários os que atestam a forma como o Réu expediu as cartas e bem assim aqueles que demonstram a falta de explicação plausível para o Réu ignorar a razão pela qual as expediu. A partir daí é que se estabelece o nexo lógico, que nos leva ao facto presumido, que consta do facto provado n.º 5 do elenco seriado pela 1.ª Instância. Tal como as presunções não se podem estabelecer a partir de factos indiciários que não existem, também não se podem destruir através da desconsideração dos factos indiciários que as sustentam, como a Relação fez e cabe ao STJ sindicar, anulando o acórdão...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO
3 temas prácticos
4 sentencias
  • Acórdão nº 39/18.0JAPTM.E1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 07 de Outubro de 2021
    • Portugal
    • [object Object],Supreme Court of Justice (Portugal)
    • 7 de outubro de 2021
    ...Cons. Chambel Mourisco, in www.dgsi.pt. [7] Idem. Na mesma linha da jurisprudência citada, cf. acórdão do STJ, de 24.11.2020 (proc. n.º 2350/17.8T8PRT.P1.S1, Relatora: Cons. Ana Paula Boularot) [8] E tal como foi referido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24.11.2020, supra citad......
  • Acórdão nº 2583/20.0T8VFR.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 30 de Novembro de 2022
    • Portugal
    • [object Object],Supreme Court of Justice (Portugal)
    • 30 de novembro de 2022
    ...no uso de presunções judiciais. No que respeita às presunções judiciais, vem sendo reiterado pelo STJ (cfr, por todos, o ac. no Proc. 2350/17.8T8PRT.P1.S1, in www.dgsi.pt), que « As presunções judiciais, não constituem meios de prova, proprio sensu, mas antes operações «de elaboração das pr......
  • Acórdão nº 8312/19.3T8ALM.L1-2 de Tribunal da Relação de Lisboa, 11-05-2023
    • Portugal
    • Tribunal da Relação de Lisboa
    • 11 de maio de 2023
    ...mesmo sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11-04-2019, Pº 8531/14.9T8LSB.L1.S1, rel. ROSA TCHING e de 24-11-2020, Pº 2350/17.8T8PRT.P1.S1, rel. ANA PAULA Em idênticos moldes, refere Luís Filipe Pires de Sousa (Prova por Presunção no Direito Civil; 3.ª ed., Almedina, 2017, ......
  • Acórdão nº 11243/14.0T2SNT.L2.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 02 de Fevereiro de 2022
    • Portugal
    • [object Object],Supreme Court of Justice (Portugal)
    • 2 de fevereiro de 2022
    ...de factos não provados ou, inversamente, desconsiderar factos provados”. Tendo invocado em apoio da sua tese o Ac. do S.T.J. (Proc. 2350/17.8T8PRT.P1.S1) de 24-11-2020, disponível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/9437b8fccf93c27f8025863e003f63a9?OpenDocument,......

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT