Acórdão nº 29/20 de Tribunal Constitucional (Port, 16 de Janeiro de 2020

Magistrado ResponsávelCons. Pedro Machete
Data da Resolução16 de Janeiro de 2020
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 29/2020

Processo n.º 82/19

2.ª Secção

Relator: Conselheiro Pedro Machete

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. A., B., C., D. e D., recorrentes nos presentes autos em que é recorrida E. (E.), S.A., apelaram do despacho saneador que julgou apenas parcialmente procedente a ação especial de liquidação de participações sociais que previamente haviam intentado contra a ora recorrida. Por decisão singular do desembargador relator na Relação de Coimbra, de 29 de junho de 2018, foi a apelação julgada improcedente e confirmada a decisão então recorrida.

Irresignados, os ora recorrentes reclamaram para a conferência, que, por acórdão de 11 de dezembro de 2018, indeferiu a reclamação e confirmou a decisão reclamada.

2. É deste acórdão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), para apreciação das seguintes questões constitucionalidade:

«a) A interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 149.º e 199.º do CPC, segundo a qual deve ter-se por sanada uma nulidade processual, arguida dentro do prazo legal de interposição de recurso ordinário e juntamente com este, no caso de nulidade processual que se revele apenas na sentença recorrida; [esta norma viola os princípios constitucionais da tutela jurisdicional efetiva e do processo equitativo (artigos 20.º, n.º 1 e n.º 4, da Constituição];

b) A interpretação normativa extraída do artigo 1068.º, n.º 4, do CPC, segundo a qual a tramitação do processo de liquidação de participações sociais não prevê uma fase de alegações das partes, ou, por outras palavras, segundo a qual não há lugar a alegações de facto e de direito no processo de liquidação das participações; [esta norma viola o princípio constitucional do processo equitativo (Artigo 20.º, n.º 4, da Constituição]».

3. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal, foi proferida a Decisão Sumária n.º 207/2019, que não admitiu o recurso. Na sequência de reclamação para a conferência deduzida ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, foi proferido o Acórdão n.º 313/2019 (acessível, assim como os demais adiante referidos, a partir da ligação http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), que determinou a notificação das partes para apresentarem alegações e advertiu, relativamente à interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 149.º e 199.º do CPC, para «a eventualidade de não conhecimento do recurso devido ao facto de a norma em causa não constitui[r] ratio decidendi do acórdão recorrido».

4. Ambas as partes alegaram.

4.1. Os recorrentes formularam, a final, as seguintes conclusões:

«A. O presente recurso de constitucionalidade tem origem numa ação de liquidação de participações sociais, ao abrigo do disposto no artigo 490.º/6.º do CSC e dos artigos 1068.º e 1069.º do CPC.

B. O presente recurso tem por objeto as seguintes normas e os seguintes fundamentos:

a) A interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 149.º e 199.º do CPC, segundo a qual deve ter-se por sanada uma nulidade processual, arguida dentro do prazo legal de interposição de recurso ordinário e juntamente com este, no caso de nulidade processual que se revele apenas na sentença recorrida.

A norma suprarreferida, efetivamente aplicada, padece de inconstitucionalidade material, por violação dos princípios constitucionais da tutela jurisdicional efetiva e do processo equitativo (artigos 20.º/l e 4 da CRP);

b) A interpretação normativa extraída do artigo 1068.º/4 do CPC, segundo a qual a tramitação do processo de liquidação de participações sociais não prevê uma fase de alegações das partes, ou, por outras palavras, segundo a qual não há lugar a alegações de facto e de direito no processo de liquidação das participações.

A norma exposta fere, por inconstitucionalidade material, o princípio constitucional do processo equitativo (Artigo 20.º/4 da CRP).

C. A interpretação normativa referida na alínea a) do parágrafo anterior foi uma das normas efetivamente aplicadas na decisão sumária do recurso de apelação, cuja inconstitucionalidade foi suscitada em termos processualmente adequados pelos Recorrentes, e julgada não inconstitucional no acórdão proferido em conferência pelo Tribunal a quo.

D. A aplicação efetiva da norma ou interpretação normativa, enquanto pressuposto objetivo de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, não tem de ser expressa, podendo ser implícita. Indispensável é que o juízo sobre a constitucionalidade da norma tenha sido uma verdadeira ratio decidendi e não um mero obiter dictum da decisão recorrida.

E. No caso sub iuditio, constitui objeto idóneo do recurso a (presente) interpretação normativa efetivamente aplicada pelo tribunal, na decisão sumária do recurso de apelação e, posterior e implicitamente, no respetivo julgamento de constitucionalidade, contido no acórdão da conferência.

F. Em conferência, o Tribunal a quo julgou – implicitamente – não inconstitucional a interpretação normativa sindicada e confirmando a decisão sumária, voltou a aplicá-la, efetivamente, ainda que de forma implícita.

G. O Tribunal Constitucional não está vinculado à interpretação jurídica do Tribunal a quo quando a questão é essencial para o julgamento de constitucionalidade.

H. No caso sub iuditio, o conceito de nulidade coberta pela sentença é decisivo para o julgamento da questão de constitucionalidade.

I. Perante nulidades processuais que só se revelem na sentença e com esta, da admissibilidade da interpretação normativa em apreço resultaria um duplo ónus (arguição e interposição), filiado numa ideia (contra legem) de cautela, de as partes terem de fazer a arguição da nulidade autonomamente perante o Tribunal recorrido, mas, simultaneamente, de recorrer da sentença, sob pena de esta transitar em julgado.

J. O duplo ónus que, ad cautelam, resulta da aplicação interpretação normativa sindicada não é processualmente exigível, reveste onerosidade excessiva e a gravidade da consequência do seu incumprimento é desproporcional, pelo que padece de inconstitucionalidade material, por violação dos princípios constitucionais da tutela jurisdicional efetiva e do processo equitativo (artigo 20.º/l e 4 da CRP), nomeadamente o princípio pro actione e o princípio da proporcionalidade na fixação legislativa de ónus e encargos processuais para as Partes.

K. O direito de as Partes alegarem de facto e de direito antes da prolação da sentença final constitui um princípio estruturante do processo civil, corolário do princípio constitucional do processo equitativo.

L. Ao invés do sustentado pelo Tribunal a quo, essa exigência jurídico-constitucional de efetivo contraditório impõe-se, igualmente, ao julgador nos processos de liquidação de participações sociais, e, em especial, ao meio impugnatório integrado no regime jurídico do instituto da aquisição potestativa de ações tendente ao domínio total.

M. Os processos de liquidação de participações sociais não assumem a natureza de jurisdição voluntária, atenta a respetiva essência estritamente contenciosa, a qual convoca o desempenho pelo juiz de uma verdadeira e autêntica tarefa jurisdicional, para dirimir o conflito de interesses em presença.

N. Qualquer entendimento filiado na tese de que o direito fundamental ao processo equitativo, na sua dimensão de efetivo contraditório, é suscetível de sofrer uma maior compressão, legislativa ou jurisdicional, nos processos de liquidação de participações sociais, devendo sujeitar-se a soluções processuais mais restritivas, é materialmente inconstitucional, por violação do princípio do processo equitativo (artigo 20.º/4 da CRP), designadamente do princípio contraditório, entendido também como o direito de as Partes alegarem, de facto e de direito, antes da prolação da sentença final.

O. A leitura constitucional do instituto do artigo 490.º do CSC, à luz do direito fundamental de propriedade, remete para o problema da proteção conferida aos sócios livres, através da definição dos critérios de apuramento da contrapartida patrimonial.

P. Se o Direito não conferir proteção suficiente ao direito dos sócios a uma contrapartida patrimonial justa, designadamente quanto aos meios processuais de o fazer valer em juízo, no quadro de um robusto direito a um processo equitativo, o instituto em apreço converte-se, na prática, numa espécie de “expropriação” para os fins privados da sociedade dominante, em gritante violação do princípio da proporcionalidade.

Q. A interpretação normativa extraída do artigo 1068.º/4 do CPC, segundo a qual a tramitação do processo de liquidação de participações sociais não prevê uma fase de alegações das partes, ou, por outras palavras, segundo a qual não há lugar a alegações de facto e de direito no processo de liquidação das participações é também inconstitucional, por ofensa ao princípio constitucional do processo equitativo (Artigo 20.º/4 da CRP), na sua dimensão da exigência da igualdade de armas.»

4.2. A recorrida concluiu a sua contra-alegação nos seguintes termos:

«1.ª – A decisão recorrida não aplicou as normas dos arts. 149.º e 199.º do C.P.C, com o sentido invocado pelos Recorrentes, de que delas resultaria que se devesse ter por sanada uma nulidade processual que tivesse sido invocada somente no recurso da sentença, quando ela apenas na sentença se revelasse.

2.ª – O acórdão recorrido não disse nada disso nem decidiu com base na aplicação expressa ou implícita de tal suposto critério normativo; o que disse, diferentemente, foi que no caso não estávamos perante uma nulidade processual que tivesse ficado coberta pela sentença, no sentido de que esta...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO
7 temas prácticos
  • Acórdão nº 799/22 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Novembro de 2022
    • Portugal
    • [object Object],Tribunal Constitucional (Port
    • 17 Noviembre 2022
    ...dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e de, numa base paritária, poderem influenciar a decisão judicial” (v. Acórdão do TC n.º 29/2020; v., também, entre muitos outros, Acórdãos do TC n.ºs 147/92, 346/92, 223/95 e 738/2021) e é também neste contexto jurídico-constitucional q......
  • Acórdão nº 797/22 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Novembro de 2022
    • Portugal
    • [object Object],Tribunal Constitucional (Port
    • 17 Noviembre 2022
    ...dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e de, numa base paritária, poderem influenciar a decisão judicial” (v. Acórdão do TC n.º 29/2020; v., também, entre muitos outros, Acórdãos do TC n.ºs 147/92, 346/92, 223/95 e 738/2021) e é também neste contexto jurídico-constitucional q......
  • Acórdão nº 755/22 de Tribunal Constitucional (Port, 09 de Novembro de 2022
    • Portugal
    • [object Object],Tribunal Constitucional (Port
    • 9 Noviembre 2022
    ...dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e de, numa base paritária, poderem influenciar a decisão judicial” (v. Acórdão do TC n.º 29/2020; v., também, entre muitos outros, Acórdãos do TC n.ºs 147/92, 346/92, 223/95 e 738/2021) e é também neste contexto jurídico-constitucional q......
  • Acórdão nº 798/22 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Novembro de 2022
    • Portugal
    • [object Object],Tribunal Constitucional (Port
    • 17 Noviembre 2022
    ...dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e de, numa base paritária, poderem influenciar a decisão judicial” (v. Acórdão do TC n.º 29/2020; v., também, entre muitos outros, Acórdãos do TC n.ºs 147/92, 346/92, 223/95 e 738/2021) e é também neste contexto jurídico-constitucional q......
  • Peça sua avaliação para resultados completos
7 sentencias
  • Acórdão nº 799/22 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Novembro de 2022
    • Portugal
    • 17 Noviembre 2022
    ...dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e de, numa base paritária, poderem influenciar a decisão judicial” (v. Acórdão do TC n.º 29/2020; v., também, entre muitos outros, Acórdãos do TC n.ºs 147/92, 346/92, 223/95 e 738/2021) e é também neste contexto jurídico-constitucional q......
  • Acórdão nº 797/22 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Novembro de 2022
    • Portugal
    • 17 Noviembre 2022
    ...dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e de, numa base paritária, poderem influenciar a decisão judicial” (v. Acórdão do TC n.º 29/2020; v., também, entre muitos outros, Acórdãos do TC n.ºs 147/92, 346/92, 223/95 e 738/2021) e é também neste contexto jurídico-constitucional q......
  • Acórdão nº 755/22 de Tribunal Constitucional (Port, 09 de Novembro de 2022
    • Portugal
    • 9 Noviembre 2022
    ...dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e de, numa base paritária, poderem influenciar a decisão judicial” (v. Acórdão do TC n.º 29/2020; v., também, entre muitos outros, Acórdãos do TC n.ºs 147/92, 346/92, 223/95 e 738/2021) e é também neste contexto jurídico-constitucional q......
  • Acórdão nº 798/22 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Novembro de 2022
    • Portugal
    • 17 Noviembre 2022
    ...dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e de, numa base paritária, poderem influenciar a decisão judicial” (v. Acórdão do TC n.º 29/2020; v., também, entre muitos outros, Acórdãos do TC n.ºs 147/92, 346/92, 223/95 e 738/2021) e é também neste contexto jurídico-constitucional q......
  • Peça sua avaliação para resultados completos

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT