Acórdão nº 431/14.9TVPRT.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 26 de Novembro de 2019

Magistrado ResponsávelPEDRO DE LIMA GONÇALVES
Data da Resolução26 de Novembro de 2019
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

ACÓRDÃO Acordam na 1ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório 1.

AA, BB e CC intentaram a presente ação contra a DD pedindo a condenação desta a pagar-lhes €110 000,00, acrescida de juros de mora contados desde a citação até integral pagamento.

Alegam, em síntese, que: - são herdeiros de EE, na qualidade de viúvo e filhos da mesma; - na sequência de uma intervenção laparoscópica a que foi submetida na FF, no ..., pertencente à Ré, foi perfurado o intestino da referida EE, o que lhe causou uma peritonite generalizada; - operada novamente, viria a falecer de choque séptico, causado pela apontada peritonite; - durante todo o internamento na FF a referida EE experimentou enorme sofrimento físico e moral; - a sua morte causou grande desgosto e tristeza aos Autores; - a responsabilidade da Ré para com os Autores, resulta de incumprimento contratual do contrato de prestação de serviços médicos celebrado com a falecida decorrente de atuação negligente do médico que realizou a ....

  1. Citada, a Ré veio contestar, alegando, em síntese, que: - se limitou a facultar ao médico as suas instalações hospitalares e o equipamento e pessoal não médico para aquele realizar a intervenção cirúrgica; - a Ré nada recebe e nada paga aos médicos que operam nas suas instalações; - o médico que operou a senhora EE tem consultório próprio, não prestando nem nunca tendo prestado qualquer serviço à Ré; - esta nada teve a ver com a decisão da paciente e/ou do seu médico em proceder à intervenção cirúrgica descrita na petição inicial; - o médico operador não interveio como representante ou auxiliar da Ré, razão pela qual a Ré não pode ser responsabilizada.

    Conclui pela improcedência da ação ou, se assim não ocorrer, pela redução do montante dos danos não patrimoniais pedido.

  2. A Ré requereu a intervenção acessória provocada da GG, S.A., para a qual transferiu a responsabilidade civil por danos contra terceiros resultantes da sua atividade hospitalar, pela apólice nº..., em vigor na data do invocado evento.

  3. Os Autores vieram requerer a intervenção principal provocada do Dr. HH, o médico que operou EE.

  4. Por despacho transitado em julgado, foram admitidos a intervir a seguradora, acessoriamente, e o referido médico, a título principal.

  5. O chamado HH deduziu contestação, alegando ser verdade tudo o exposto na contestação da ré DD; alega, ainda, que, na sequência de participação dos Autores, foi-lhe instaurado processo disciplinar pela Ordem dos Médicos, o qual veio a ser arquivado. O ... da Ordem dos Médicos considerou a sua atuação correta e adequada.

    Conclui pela improcedência da ação.

  6. Na contestação, o chamado HH, requereu a intervenção provocada da II, S.A., para a qual transferiu a responsabilidade civil profissional, através de seguro titulado pela apólice nº ....

  7. A interveniente GG veio contestar, alegando que está excluído do dever de indemnizar, nos termos da Condição Especial à Apólice ..., a responsabilidade profissional de médicos que não estando ao serviço da segurada utilizem as suas instalações, pessoal e aparelhagem; aderiu à contestação apresentada pela ré DD.

  8. Por despacho transitado em julgado, foi admitida a intervenção acessória da II, S.A..

  9. Citada, a II, S.A., veio contestar, confirmando a existência de contrato de seguro de responsabilidade civil com o médico JJ, sujeito a uma franquia de 10% do valor dos danos. Alega, ainda, que a atuação do seu segurado foi executada tendo em conta o quadro patológico que a paciente apresentava aquando da observação. Não existe um nexo causal entre a atuação do segurado e o dano morte em discussão. Os montantes peticionados são manifestamente excessivos.

    Concluiu pela improcedência da ação.

  10. Foi realizada audiência prévia, com prolação de despacho que identificou o objeto do litígio e fixou os temas da prova.

  11. Realizou-se a audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença em que se decidiu julgar a ação improcedente, absolvendo a Ré e o interveniente principal HH do pedido.

  12. Inconformados com esta decisão, os Autores interpuseram recurso de apelação.

  13. O Tribunal da Relação do ... veio, por maioria, a julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância.

  14. Inconformados com tal decisão, os Autores/Apelantes vieram interpor o presente recurso de revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões: 1ª. Vem o presente recurso interposto do acórdão proferido pelo venerando Tribunal da Relação do ... que julgou improcedente a apelação apresentada pelos Autores e confirmou – com voto de vencido e fundamentação essencialmente diferente – a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância.

    1. Com efeito, o douto acórdão recorrido não fez uma boa aplicação do direito, pelo que a decisão deverá ser revogada pelos motivos que aduziremos em seguida.

    2. São duas as questões a apreciar neste recurso de revista: primeiro, a ausência de prova relevante sobre um facto essencial elencado na causa de pedir (nexo de causalidade entre a perfuração do intestino e septicemia causadora da morte da esposa e mãe dos Autores); segundo, a qualificação da responsabilidade civil do médico que efectuou a primeira cirurgia.

      VEJAMOS: 4ª. A sentença da primeira instância, sinteticamente, absolveu o médico interveniente principal - que realizou a primeira cirurgia, pois que, no entendimento do Mmo. Juiz a quo, considerou não provada a ilicitude da conduta do referido médico, razão pela qual: "falece um dos pressupostos da responsabilidade contratual." (negrito e sublinhado nossos).

    3. Desta decisão recorreram os Autores para o Venerando Tribunal da Relação do ..., que veio a julgar a Apelação improcedente, com fundamentação essencialmente diferente da primeira instância e com voto de vencido do Exmo. Senhor Desembargador Joaquim Correia Gomes, motivo pelo qual o presente recurso de revista é admissível nos termos e para os efeitos previstos no artigo 671º do Código de Processo Civil, doravante designado por CPC.

    4. Referem os Recorrentes, e bem a nosso ver, que resulta tal provado, visto que: "dos Autos constam dois documentos que, na verdade, o tornam indubitável: por um lado, a decisão do Conselho Disciplinar Regional do Norte da Ordem dos Médicos, na parte que transcreve a resposta do Doutor KK, que operou EE, procurando debelar as complicações da perfuração do intestino feita pelo interveniente principal; por outro lado, a certidão de óbito. Diz-se na certidão que confirma a morte de EE (cfr. Doc. 2 junto com a petição inicial), que o choque séptico que constitui a causa imediata e directa da morte foi, por seu turno, directamente causada pela peritonite. O Doutor KK, na alínea d) da resposta transcrita na decisão disciplinar do Conselho Regional da Ordem dos Médicos, afirma perentoriamente, que a "causa da peritonite" foi a perfuração/laceração da ansa de ileon a 20 cm da válvula ileocecal." (negrito e sublinhado nossos).

    5. In casu, não foi realizada autópsia médico-legal da falecida EE, tudo levando a supor que a mesma não foi realizada. Como tal, em seu entender, a prova pericial (único meio de prova valorado para este efeito) revestirá particular relevo, ainda que a mesma esteja sujeita à livre apreciação pelo tribunal (cfr. artigo 389º. do CC).

    6. Pese embora haja elementos nos autos que comprovem que o choque séptico que culminou na morte da falecida foi provocado pela perfuração do intestino delgado ocorrida aquando da realização da primeira cirurgia (depoimento prestado pelo Senhor Dr. KK, resposta dada pelo ilustre médico no processo disciplinar que correu termos na Conselho Regional da Ordem dos Médicos e a certidão de óbito junta aos autos), o relatório pericial, que contraria a factualidade dada como provada pelas duas instâncias, não reconheceu o momento em que se verificou a tal perfuração, nem, tão pouco, se pronunciou sobre se a causa da morte se prende com tal perfuração, originando a septicémia que culminou na morte de EE.

    7. Destarte, um facto essencial à boa decisão da causa não foi, sequer, objecto de resposta, valorando-se tal perícia de forma a fundamentar a não condenação do médico interveniente principal, em detrimento da restante prova produzida.

    8. Ora, nos termos do artigo 489º. do CPC, as perícias judiciais são livremente apreciadas pelo tribunal. Quer isto dizer que o julgador não fica refém do relatório pericial elaborado, estando, como tal, sujeito à sua livre apreciação.

    9. Assim, não se percebe como pode um relatório que está em contradição com a matéria de facto provada ser valorado em sentido diametralmente oposto! 12ª. Quer o relatório pericial quer a decisão do Conselho Disciplinar da Ordem dos Médicos ignoram o relato da testemunha KK, médico cirurgião que efectuou a segunda cirurgia à falecida, como se diz na motivação probatória, "que a mesma já estava em infecção generalizada por causa da 1.ª cirurgia ao abdómen" e que "considerou óbvio que a incisão teve a ver com a primeira operação." 13ª. Reitere-se, tal afirmação (factualidade) não é ponderada pelo exame pericial realizado pelo INML, quando deveria ter tal em atenção, para a considerar ou mesmo afastá-‑Ia.

    10. Mais, ainda, quando, na sentença proferida pela primeira instância, pág. 14, se considera que: "todas as testemunhas ouvidas me pareceram ter deposto com clareza e isenção." (negrito e sublinhado nossos).

    11. Pois que, havendo dúvidas sobre a prova realizada, ao abrigo do comando normativo constante do artigo 662º, nº2, aI. b) do CPC, por esta estar em contradição com a matéria de facto dada como provada ou por não se ter pronunciado sobre questões essenciais à boa decisão da causa e devidamente quesitadas, o tribunal a quo deveria ter ordenado a produção de novos meios de prova, bem como, deveria ter determinado que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para julgamento da causa (nexo de causalidade), o processo baixasse à primeira instância para que esta fundamentasse a...

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