Acórdão nº 09P0574 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 01 de Março de 2010

Magistrado ResponsávelOLIVEIRA MENDES
Data da Resolução01 de Março de 2010
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

S Privacidade: 1 Meio Processual: FIXAÇÃO DE JURSIPRUDÊNCIA Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA Sumário : «A aplicação do n.º 5 do artigo 50º do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, a condenado em pena de suspensão da execução da prisão, por sentença transitada em julgado antes da entrada em vigor daquele diploma legal, opera-se através de reabertura da audiência, a requerimento do condenado, nos termos do artigo 371º-A, do Código de Processo Penal».

Decisão Texto Integral: * Acordam no pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça: O Ministério Público, representado pelo Exm.º Procurador-Geral Adjunto junto do Tribunal da Relação de Coimbra, interpôs recurso extraordinário, para fixação de jurisprudência, do acórdão proferido naquela Relação em 19 de Novembro de 2008, no Recurso n.º 192/04, que decidiu não ser de conhecimento oficioso, nem a requerimento do Ministério Público, após o trânsito em julgado da condenação, a aplicação de nova lei penal de conteúdo mais favorável, concretamente o n.º 5 do artigo 50º do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, que faz coincidir o período de suspensão da execução da pena de prisão à pena de prisão determinada na sentença, aplicação que deverá ter lugar, apenas a pedido do condenado, com reabertura da audiência, no termos do artigo 371º-A, do Código de Processo Penal, suposta a vigência da pena (1) .

Em sentido oposto indicou o acórdão da mesma Relação, de 22 de Outubro de 2008, proferido no Recurso n.º 61/05, o qual decidiu ser de conhecimento oficioso e sem necessidade de reabertura da audiência, a aplicação de nova lei penal de conteúdo mais favorável, concretamente o n.º 5 do artigo 50º do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, a arguido condenado com trânsito em julgado, enquanto a pena se não extinguir.

* Em conferência concluiu-se pela admissibilidade do recurso, face à oposição de soluções relativamente à mesma questão de direito no domínio da mesma legislação, tendo-se ordenado o seu prosseguimento.

* O Exm.º Procurador-Geral Adjunto nas alegações que apresentou formulou as seguintes conclusões: 1. As alterações introduzidas pela Lei n.º 59/07, de 4.09, em matéria de aplicação da lei no tempo, visaram reforçar a aplicação retroactiva da lei mais favorável, em cumprimento do disposto no n.º 4 do artigo 29º da Constituição da República e ultrapassar, assim, o juízo de inconstitucionalidade imputado à ressalva do caso julgado, inserta no n.º 4 do artigo 2º do Código Penal, na anterior versão.

  1. Da nova redacção do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal, resulta clara a opção do legislador no sentido da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, haja ou não condenação com trânsito em julgado.

  2. Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 164/08, para as hipóteses de ter havido condenação, transitada em julgado, o legislador estabeleceu um sistema dual: a) Aplicação oficiosa da lei mais favorável, nas situações a que alude o n.º 4, parte final, do artigo 2º do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/07, cessando a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontra cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior; b) Reabertura da audiência, nos termos do artigo 371º-A, do Código de Processo Penal, (introduzido pela Lei n.º 48/07, de 29-08) para efeitos de aplicação da lei penal de conteúdo mais favorável, quando o arguido ainda não tenha cumprido o limite máximo da pena de prisão aplicável ao crime em causa.

  3. Em caso de suspensão da execução da pena de prisão, aplicada por sentença transitada em julgado, atingida a duração da pena de prisão substituída (n.º 5 do artigo 50º do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/07), deverá o juiz, oficiosamente, e sem necessidade de reabertura da audiência, determinar extinta a pena, caso não se verifiquem fundamentos que determinem a revogação da suspensão.

  4. Nos restantes casos, ou seja fora das situações que cabem na parte final do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/07, mostra-se afastada a aplicação oficiosa do disposto no n.º 5 do artigo 50º do Código Penal, na sua nova redacção.

  5. Em tais casos, poderá haver lugar a reabertura da audiência, nos termos do artigo 371º-A, do Código de Processo Penal, para efeitos da aplicação da lei penal de conteúdo mais favorável, tendo a lei conferido legitimidade para requerer tal reabertura apenas ao próprio condenado.

  6. Termos em que: O conflito que se suscita haverá de ser resolvido, fixando-se jurisprudência, no sentido que a seguir se propõe: a.

Em caso de suspensão da execução da pena de prisão, aplicada por sentença transitada em julgado, atingida a duração da pena de prisão substituída, deverá o juiz, oficiosamente, determinar extinta a pena, por força do disposto nos artigos 2º, n.º 4, parte final, e 50º, n.º 5, do Código Penal, ambos na redacção da Lei n.º 59/2007, de 4.09, caso não se verifiquem fundamentos que determinem a revogação da suspensão.

  1. Alterando-se em conformidade, o acórdão recorrido.

O recorrido não apresentou alegações.

Após julgamento em conferência, cumpre decidir.

* Como se reconheceu no acórdão interlocutório, verifica-se oposição de julgados.

A questão ora submetida à apreciação do pleno das secções criminais deste Supremo Tribunal consiste em saber se a aplicação de lei nova de conteúdo mais favorável a condenado em pena de suspensão da prisão com trânsito em julgado, cuja execução se mantém suspensa, concretamente a aplicação do regime instituído pelo n.º 5 do artigo 50º do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, pode ter lugar oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, sem necessidade de reabertura da audiência ou, ao invés, apenas poderá ser operada a pedido do condenado, com reabertura de audiência, nos termos do artigo 371º-A, do Código de Processo Penal.

Antes de entrar na análise e apreciação da questão objecto do recurso, cumpre abordar e conhecer outra que a montante daquela se situa, de natureza prévia.

Trata-se de verificar se a modificação de decisão condenatória transitada em julgado, tendo em vista a aplicação de lei posterior de conteúdo mais favorável ao condenado, à revelia de processo de revisão (2) , se compatibiliza com o princípio constitucional non bis in idem.

Perante dois valores jurídicos com dignidade constitucional, de um lado o princípio da aplicação retroactiva de lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido (3) , do outro o princípio non bis in idem na sua dupla dimensão (4) – direito subjectivo do arguido a não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto e princípio objectivo consagrador do caso julgado material –, há que averiguar se a efectivação de um não atinge e pospõe o outro, ou seja, se a aplicação retroactiva de lei mais favorável ao arguido entra ou não em rota de colisão com o princípio non bis in idem.

Em matéria de conflito entre direitos constitucionais vem-se entendendo que ocorre verdadeira colisão sempre que a Constituição proteja simultaneamente dois direitos em contradição concreta, isto é, quando a esfera de protecção de um certo direito é constitucionalmente protegida em termos de intersectar a esfera de outro direito constitucionalmente tutelado ou de colidir com uma norma ou princípio constitucional (5).

A colisão tanto pode ocorrer entre direitos, como entre um direito e um bem ou valor jurídico constitucionalmente consagrados ou entre dois bens ou valores constitucionalmente protegidos, sejam individuais, comunitários ou do Estado.

Curemos pois de saber se a aplicação retroactiva de lei de conteúdo mais favorável ao arguido colide com o princípio non bis in idem.

Consabido que a aplicação retroactiva de lei de conteúdo mais favorável ao arguido é susceptível de conduzir à modificação de decisão condenatória transitada em julgado, sendo certo que o caso julgado material tem por primordial efeito a intangibilidade da decisão, com força obrigatória universal, dúvidas não restam de que no caso vertente estamos perante um conflito de valores constitucionais.

Certo é, porém, que nem todos os conflitos de direitos ou valores constitucionais conduzem a situações de violação (relevante) de um dos direitos ou valores, ou seja, nem todos os conflitos afectam irremediavelmente o direito ou valor atingido.

Só assim será quando o conteúdo essencial do direito ou valor atingido for afectado, conteúdo expresso na norma constitucional que o consagra (6) , o qual se afere e estabelece, por um lado, a partir do núcleo fundamental, determinável em abstracto, próprio de cada direito ou valor, ou seja, do “coração do direito”, por outro lado, através do quantum da compressão/restrição a que o direito ou valor atingido é submetido, compressão/restrição que se terá de conter no mínimo necessário, tendo ainda em consideração os respectivos motivos ou fundamentos, posto que a compressão/restrição só é admissível pela necessidade de proteger ou promover um bem constitucionalmente valioso (artigo 18º, n.º 2, da Constituição da República) e só na proporção dessa necessidade.

Vejamos pois se a aplicação retroactiva de lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido afecta o núcleo essencial do princípio non bis in idem.

O caso julgado material mostra-se constitucionalmente tutelado através da consagração do princípio non bis in idem, constituindo, como já se deixou consignado, a dimensão objectiva daquele princípio. Nesta dimensão são a segurança e a certeza da decisão judicial, a intangibilidade do definitivamente decidido pelo tribunal, que se visam proteger. Estão aqui subjacentes valores atinentes à imagem e credibilidade dos tribunais e ao interesse dos sujeitos processuais e da própria comunidade, designadamente, o interesse na tutela estável dos bens jurídicos, mediante a imutabilidade da decisão, essencial às legítimas expectativas dos sujeitos processuais e à confiança do...

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