Acórdão nº 693/13.9JDLSB.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 23 de Abril de 2015
Magistrado Responsável | MANUEL BRAZ |
Data da Resolução | 23 de Abril de 2015 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça: O tribunal de 1ª instância condenou o arguido AA, nascido em ..., nas penas de 17 anos de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artºs 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea e), 6 meses de prisão, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artº 143º, nº 1, do CP, 3 meses de prisão, pela prática de um crime de ameaça p. e p. pelo artº 153º, nº 1, como os anteriores do CP, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 17 anos e 6 meses de prisão.
O arguido interpôs recurso dessa decisão para a Relação de Lisboa, que, por acórdão de 26/11/2014, lhe negou provimento.
Ainda inconformado interpôs recurso desse acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo a sua motivação nos termos que se transcrevem: «I. O arguido foi condenado pela prática em autoria material na forma consumada e em concurso real e efectivo de um crime de homicídio qualificado, p.p. pelo art° 131° e 131°, n° 2 , alínea e) do CP na pena de 17 anos de prisão, de um crime de ofensa à integridade física, p.p. pelo art. 143°, n° 1 do CP na pena de 6 meses de prisão e pelo crime de ameaça, p.p. pelo art° 153°, n° 1 do CP na pena de 3 meses de prisão. Em cúmulo jurídico foi o arguido condenado na pena única de 17 anos e 6 meses de prisão.
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Apesar do Ministério Público ter admitido, em sede de alegações na primeira instância, que a conduta do arguido possa ter integrado não a prática de homicídio qualificado p.p. pelo art° 132°, n° 1 e 2, alínea e) do CP pelo qual vinha acusado, mas antes consubstanciar um homicídio p.p. Pelo art° 131° do CP, o entendimento do Tribunal de primeira instância, confirmado pelo Tribunal Ad Quo foi distinto, tendo o arguido sido efectivamente condenado pela modalidade qualificada de homicídio.
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O Tribunal Ad Quo pugnou pelo entendimento do Tribunal de primeira instância que considerou que «Do circunstancialismo fáctico descrito, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, face à sua clareza, resulta inequivocamente a prova do cometimento, pelo arguido, do crime de homicídio qualificado p. e p. pelo art. 131° do Código Penal, e da circunstância agravante a que alude a alínea e) do art. 132/2» (Cfr. Pág. 30, parágrafo 7 do Acórdão de primeira instância).
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Para fundamentar esta posição, considera o Tribunal de primeira instância, em entendimento que não mereceu reparo por parte do Tribunal da Relação, que: «Com efeito, tendo-se inserido a actuação do arguido num contexto de convite ao afastamento do local de diversão explorado pela vítima um local onde os amigos estavam a perturbar a tranquilidade da noite, em que a troca de palavras acompanhada de um afastamento com o braço pela vítima, foi o único acto que se provou ter antecedido a conduta homicida, evidencia-se fútil o motivo determinante da agressão letal.
Sem sombra de dúvida ante os factos apurados e que acima constam, revelando total desprezo pela vida humana, actuou o demandado com inequívoca vontade de matar, pois ao desferir uma facada na região torácica, sabia estar a atingir – como atingiu – órgãos vitais do corpo do ofendido BB, actuando por motivo fútil já que nenhuma circunstância justificava a eliminação de uma vida, ante o pedido da vítima no sentido de acalmar os ânimos efectuado à pessoa dos amigos do demandado». (Cfr. Pág. 30, parágrafo 8 e pág. 31, parágrafo 1 e 2 do Acórdão recorrido, sublinhado nosso).
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O arguido referiu que antes de atingir a vítima BB com a faca tinha sofrido uma agressão por parte deste, mais concretamente uma cabeçada (Cfr. Pág. 11 do Acórdão do Tribunal de primeira instância, parágrafo 3°). Mais concretamente, refere nas últimas declarações que prestou em julgamento «Eu não sou mentiroso, sei que levei a cabeçada. Sei que houve alguma coisa que provocou a reacção que eu tive». Contudo esta possibilidade não mereceu credibilidade por parte do Tribunal Ad Quo, designadamente devido à «inexistência de quaisquer marcas no nariz nem de apresentação de queixa».
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A formação da convicção do Tribunal de primeira instância fundou-se, designadamente, não relatório de exame pericial de fls. 195 a 200 dos autos (Cfr. Pág. 19 do Acórdão, parágrafo 5°). Contudo, com o devido respeito, afigura-se que terá faltado uma «análise crítica» do referido relatório pericial, mais concretamente da fotografia constante de fls. 198, na qual é possível observar de forma concludente vestígios, que aparentam ser hemáticos, na manga esquerda do casaco que o arguido usava no momento em que os factos tiveram lugar.
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Perante esta factualidade, quer a prova testemunhal, quer a prova pericial, que corrobora a versão apresentada pelo arguido, o Tribunal de primeira instância deveria ter formado opinião no sentido de admitir a possibilidade de o arguido ter efectivamente sido agredido pela vítima BB antes de o atacar com a faca ou fundamentado por que motivo optou por desconsiderar esta possibilidade.
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No seu recurso perante o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa o Ora Recorrente alegou nas conclusões do seu recurso que: “A formação da convicção do Tribunal Ad Quo fundou-se, designadamente, no relatório de exame pericial de fls. 195 a 200 dos autos (Cfr. pág. 19 do Acórdão recorrido, parágrafo 5°).
Contudo, com o devido respeito, afigura-se que terá faltado uma «análise crítica» do referido relatório pericial, mais concretamente da fotografia constante de fls. 198, na qual é possível observar de forma concludente vestígios, que aparentam ser hemáticos, na manga esquerda do casaco que o arguido usava no momento em que os factos tiveram lugar».
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Perante esta factualidade, quer a prova testemunhal, quer a prova pericial, que corrobora a versão apresentada pelo arguido, o Tribunal Ad Quo deveria ter formado opinião no sentido de admitir a possibilidade de o arguido ter efectivamente sido agredido pela vítima BB antes de o atacar com a faca ou fundamentando por que motivo optou por desconsiderar esta possibilidade.” X. O Tribunal da Relação não se pronunciou quanto ao pedido de renovação da prova produzida, referida no artigo 14° supra, quando teria de o fazer, uma vez que o Recorrente impugnou expressamente o constante de pág. 19, parágrafo 5° do Acórdão do Tribunal de primeira instância, por não se encontrar na fundamentação da decisão uma explicação para a existência deste sangue nas roupas do arguido, sendo que o sangue existente na referida manga é perfeitamente compatível com o eventual acto de limpar o nariz que sangrava em virtude de uma eventual agressão sofrida. O Tribunal Ad Quo deveria ter-se pronunciado quando à renovação da prova ou decidindo pelo reenvio para julgamento, quanto à matéria de facto impugnada (nos termos dos art°s 410°, n° 2, alíneas a) e b), 412°, n° 3, 430° e 431° do CPP.
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O Venerando Tribunal da Relação deveria, com o devido respeito, ter procedido à fundamentação dos motivos que levaram à não confirmação da verificação dos vícios previsto no art° 410°, n° 2, alíneas a) e b) alegados, designadamente, no ponto xvi das conclusões do recurso apresentado junto do Tribunal Ad Quo.
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O crime de homicídio qualificado, p. e p. no art° 132° do CP, constitui uma forma agravada do crime de homicídio simples p. e p. pelo art. 131° do CP, que constitui o tipo de ilícito, agravamento esse que se produz não através da previsão de circunstâncias típicas fundadas em maior ilicitude do facto, cuja verificação determina a realização do tipo, mas antes em função de uma culpa agravada, de uma “especial censurabilidade ou perversidade” da conduta (cláusula geral enunciada no n° 1), revelada pelas circunstâncias indicadas no n° 2.
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Estas circunstâncias constituem “exemplos-padrão”, ou seja, indícios da culpa agravada referida no n° 1, que constitui o elemento típico do homicídio qualificado (tipo de culpa). Ainda que essas circunstâncias envolvam eventualmente uma maior ilicitude do facto, não é o simples acréscimo de ilicitude que determinará a qualificação do crime. Só se as ditas circunstâncias revelarem uma maior censurabilidade ou perversidade da conduta se verificará a qualificação.
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Assim, como meros indícios, as circunstâncias do n° 2 têm sempre que ser submetidas à cláusula geral do n° 1. Da interacção entre os n°s 1 e 2 do art. 132° pode, pois, resultar a exclusão do efeito de indício do exemplo-padrão, e consequentemente a integração dos factos no crime de homicídio simples do art. 131°. Mas pode também, precisamente pelo seu carácter meramente indiciário, admitir-se a qualificação do homicídio quando se constatar a substancial analogia entre os factos e qualquer dos exemplos-padrão. Esta interacção entre os dois números do art. 132°, permitindo uma maior flexibilidade no tratamento dos casos concretos, e reflexamente na administração da justiça do caso, assegura a delimitação do tipo de homicídio qualificado em termos suficientemente rigorosos para que não seja lesado o princípio da legalidade.
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O arguido foi condenado nos termos da al. e) do n° 2, por referência ao motivo fútil. Como tal deve ser entendido o motivo gratuito, frívolo, despropositado ou leviano, avaliado segundo os padrões éticos geralmente aceites na comunidade. Ele assenta, pois, numa ideia de desproporcionalidade flagrante entre a conduta da vítima e a atitude do agente, que choca frontalmente com o sentimento comunitário de justiça. Não será, porém, motivo fútil a ausência (ou o desconhecimento) de motivação do agente. A imputação de motivo fútil ao agente implica o apuramento prévio do motivo, ou seja, sem se conhecer o motivo, não se pode qualificar o mesmo como “fútil”.
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Com efeito, o artigo 132° do Código Penal prevê a qualificação do homicídio com base em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente, não sendo as enunciadas no seu n° 2 de funcionamento automático, sendo certo que, por outro lado, outras circunstâncias não descritas podem revelar especial censurabilidade ou perversidade.
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