Acórdão nº 126/15.6PBSTB.E1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 02 de Março de 2017

Magistrado ResponsávelMANUEL BRAZ
Data da Resolução02 de Março de 2017
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça: O tribunal de 1ª instância condenou o arguido AA a -14 meses de prisão, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artºs 143º e 145º, nºs 1, alínea a), e 2, do CP; -19 anos de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artºs 131º e 132º, nºs 1 e 2, alíneas b) e e), do mesmo código; e -em cúmulo jurídico, na pena única de 19 anos e 6 meses de prisão.

O arguido interpôs recurso para a relação de Évora, que, alterando a decisão de 1ª instância relativamente à medida das penas, o condenou -a 1 ano de prisão, pelo crime de ofensa à integridade física qualificada; -17 anos de prisão, pelo crime de homicídio qualificado; e -em cúmulo jurídico, na pena única de 17 anos e 4 meses de prisão.

Ainda inconformado, o arguido interpôs recurso desse acórdão, concluindo nos termos que se transcrevem: «A. O objecto do presente recurso é o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, no dia 25 de Outubro de 2016, e que condenou o Recorrente na pena única de 17 (dezassete) anos e 4 (quatro) meses de prisão.

  1. O Recorrente identificou um Ponto Prévio ao presente recurso nos termos do qual reconhece liminarmente a sua responsabilidade pela morte provocada, embora alerte para o facto de tal conduta típica ter ocorrido em (i) um contexto típico e em (ii) um contexto pertinente à culpa (enquanto elemento do conceito material de crime) que foram incorrectamente julgados quer pelo Tribunal de 1ª instância quer pelo Tribunal recorrido.

  2. O Recorrente identificou ainda a Questão Central do Caso Sub Judice. Que assume particular importância quando comprovadamente se percebe que a questão essencial em análise reconduz-se ao problema da culpa jurídico-penalmente relevante.

  3. Tal questão pressupõe uma correcta definição da personalidade do Recorrente, seu contexto sócio-económico e cultural à data dos factos, o que terá de ocorrer atentos os factos dados como provados pelo Tribunal de 1ª instância e acolhidos na decisão recorrida, razão pela qual fazem também parte dela.

  4. Pressupõe ainda três exercícios essenciais por fazer: i) saber qual o conceito material de culpa relevante; ii) avaliar a personalidade do Recorrente; iii) concluir pela tendência criminosa ou de pela mera pluriocasionalidade.

  5. E isto porque aquele conceito de culpa não se encontra correctamente espelhado na decisão recorrida. Também a consideração e avaliação da personalidade do Recorrente foi efectuada de forma errada, em grande medida porque não foram analisados todos os factos provados de 21) a 52), restringindo-se a sua análise a uma mera afirmação de que eles existem ou a uma análise dos mesmos cortada e absolutamente incompleta - o que se censura a ambas as decisões.

  6. Aquela conclusão foi possibilitada desde logo pela análise que se efectuou quanto aos identificados factos.

  7. Se a culpa é ter de responder pelas qualidades juridicamente desvaliosas da personalidade, é insofismável que, ao contrário do efectuado por ambos os Tribunais, a personalidade a considerar não é unicamente a revelada pela prática do facto ilícito-típico, mas também a sua liberdade de conformação antes desse facto e a forma como, durante 53 anos, actuou neste mundo concreto. Esta segunda vertente foi totalmente desconsiderada pela decisão recorrida, como ficou demonstrado.

    I. Não se verifica qualquer tendência criminosa por parte do Recorrente antes mera pluriocasionalidade. A questão é que aquele desvio à liberdade de conformação do Recorrente, ao sentido de vida que até então animava a conduta do Recorrente surge na discussão/conversa ocorrida no quarto do casal após deslocação da sua mulher à esquadra da polícia. Nada teve que ver com a questão pecuniária da divisão dos bens do casal. Como amplamente se demonstrou com recurso a todos os elementos legais a que se podiam aceder em virtude do texto da decisão recorrida.

  8. Afirmar, como resulta da decisão recorrida, que o que levou o Recorrente a matar a sua mulher foi a questão da partilha dos bens é: i) uma presunção inaceitável; ii) uma realidade que não encontra qualquer suporte na prova. É, enfim, ficcionar e fabricar contra-facti uma realidade inexistente.

  9. É errada a aferição da culpa agravada que consta da decisão recorrida, pelo que fica a mesma irremediavelmente prejudicada. Ao contrário do decidido, todo o passado relacional elencado nos factos provados e expressamente referido às condições pessoais do Recorrente e sua personalidade permite e impõe, precisamente, a conclusão contrária, no sentido de suportar, atento o conceito material de culpa jurídico-penalmente relevante, que a culpa em questão não é agravada e não resulta assim a imagem global do facto especialmente agravada.

    L. Acrescendo que aquela identificação da culpa agravada presente na decisão recorrida esquece que a imagem global do facto pressupõe uma avaliação conjunta em que são essenciais dois elementos, pois apenas se cuidou de se referir a um deles, ou seja, aos factos integrantes do exemplo-padrão. Falta, pois, em ambas as alíneas do homicídio qualificado consideradas, o outro elemento da equação, ou seja, as características relevantes do agente, a sua personalidade.

  10. O Recorrente identificou ainda, no plano da matéria de facto, vários vícios que resultam do texto da decisão recorrida, pelo que, nos termos do artigo 434.° e das alíneas a) e c) do n.° 2 do artigo 410.° do CPP, suscitou e requereu que tais vícios fossem corrigidos com as devidas consequências legais.

  11. O Recorrente suscitou ainda, junto do Tribunal da Relação de Évora, a nulidade do Acórdão proferido pelo Tribunal de Setúbal, nos termos do disposto na alínea b) do n.° 1 do artigo 379.° conjugado com o disposto no artigo 359.°, ambos do CPP, isto porque no decurso da audiência ocorreu inequívoca alteração substancial dos factos, sendo que o Tribunal a quo não deu cumprimento ao disposto no artigo 359.° do CPP, violando, pois, a norma em questão, e não se tendo verificado o disposto no n.° 3 deste artigo.

  12. Esta questão não mereceu acolhimento mas o Recorrente continua a defender a verificação daquela nulidade. A acusação imputava ao arguido a prática do crime de homicídio qualificado em virtude de considerar indiciado o preenchimento das alíneas b) e j) do n.° 2 do artigo 132.° do CP. Contudo, o Tribunal de Setúbal e o Acórdão recorrido condenam o Recorrente fundando tal condenação nas alíneas b) e e) daquele artigo.

  13. Esta condenação não assenta em uma diferente leitura dos factos que faziam já parte integrante do objecto do processo. Não se tratando, pois, de uma mera diferente qualificação jurídica dos factos, ou seja, convolação. O que se trata, in casu, é, efectivamente, de factos novos. Factos exteriores ao objecto do processo.

  14. Pelo que tais factos novos configuram, de forma inequívoca, uma alteração substancial dos factos e não mera alteração não substancial. Trata-se, para os efeitos previstos na alínea f) do artigo 1.° do CPP de "crime diverso", como resulta do defendido pela doutrina e jurisprudência pacíficas. Atento o caso sub judice, haverá que concluir ser diferente provocar a morte de outra pessoa motivado por questões patrimoniais - o que, de qualquer forma, como se demonstrou, não aconteceu, e que apenas se admite desta forma como dever de patrocínio - ou simplesmente não o ter feito por tais razões. São diferentes as imputações objectivas, são diferentes as imputações subjectivas, são diferentes as relevâncias decorrentes dos dois conceitos de culpa pressupostas em tais diferentes situações, desde logo uma dirigida à especial censurabilidade, outra à especial perversidade.

  15. Trata-se, além disso, de factualidade nova que põe em causa a defesa e o princípio do contraditório que teria que ser respeitado quanto à específica alteração substancial. Trata-se de uma decisão surpresa, que afecta as garantias de defesa e põe em causa as garantias de um due processo of law, assim como a imprescindível total da confiança, como elemento de um processo equitativo.

  16. Verifica-se, pois, a nulidade prevista nos termos da alínea b) do n.° 1 do artigo 379.°, conjugada com o disposto no artigo 359.°. Nulidade que, desde já, se invoca, requerendo-se, em consequência, que se verifiquem todos os efeitos legais daí decorrentes.

  17. Interpretação contrária das normas identificadas, ou seja, interpretação que não considere o supra exposto e que, neste sentido, acolha a interpretação das normas tal como efectuada pelo Tribunal a quo é, desde logo, inconstitucional, por violação dos n.°s 1 e 5 do artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa (CRP), o que desde já se invoca - e, concomitantemente, requer-se uma concreta tomada de posição do Tribunal ad quem quanto ao ora invocado - para efeitos de contencioso constitucional.

  18. Em um outro prisma, não se pode concluir, porque ilegal, pela aplicação ao presente caso da alínea b) do artigo 132.° do CP. Adicionalmente, a subsunção jurídica atenta a alínea e) do n.° 2 do artigo 132.° do CP é, também ela, considerados os vários argumentos de facto e de direito, errada, devendo ser corrigida.

    V. Deve reconhecer o Supremo Tribunal de Justiça a possibilidade de aplicação ao caso da norma contida no artigo 133.° do CP, na medida em que a actuação do Recorrente ocorreu em desespero, encontrando-se preenchidos todos os outros requisitos W. Ou, como amplamente descrito no presente recurso, a aplicação do instituto da imputabilidade duvidosa, para a qual concorrem as razões de facto e de direito aduzidas e a prova existente nesse sentido.

    X. Mesmo que assim não se entenda, deverá pelo menos reconhecer-se a existência de circunstâncias que diminuem de forma acentuada a culpa do agente no quadro da atenuação especial da pena - artigo 72.° do CP, em especial atenta a parte final da alínea b) do n.° 2.

  19. Falecendo todas estas considerações do Recorrente, o que se concebe por dever de patrocínio, deve a sua punição...

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