Acórdão nº 597/09 de Tribunal Constitucional (Port, 18 de Novembro de 2009

Magistrado ResponsávelCons. João Cura Mariano
Data da Resolução18 de Novembro de 2009
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 597/2009

Processo n.º 981/08

  1. Secção

Relator: Conselheiro João Cura Mariano

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

Relatório

Em 21 de Janeiro de 2005, A. L.da e B. instauraram acção contra C., SA, no Tribunal Judicial de Penafiel, peticionando a condenação da Ré no pagamento de indemnizações pelos danos provocados pelo acidente ocorrido na auto-estrada A4, pelas 3h20 do dia 24 de Junho de 2003, quando o veículo automóvel, propriedade da Autora e conduzido pelo Autor embateu num canídeo de grande porte que atravessava essa via concessionada à Ré.

Por sentença de 20 de Abril de 2007 a acção foi julgada parcialmente procedente e a Ré C. foi condenada:

- a pagar à Autora as quantias de € 12 500,00 a título de indemnização por perda do veículo, de € 15 050,00 a título de perda de rendimentos, e de € 1140,00, acrescida do que se vier a apurar desde Janeiro de 2005, à razão de € 60,00 por mês, até ao trânsito em julgado da decisão, pelas despesas decorrentes da recolha do veículo, quantias acrescidas de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento;

- e a pagar ao Autor a quantia de € 2 500,00, por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento.

A Ré C. e a chamada Companhia de Seguros D., SA, recorreram desta sentença para o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão de 11 de Março de 2008, concedeu provimento à apelação, revogou a sentença recorrida e absolveu a Ré do pedido.

Os Autores interpuseram recurso de revista deste acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça, que, por acórdão de 23 de Setembro de 2008, lhe concedeu provimento, revogando o acórdão recorrido e “ficando a prevalecer a condenação da C., nos precisos termos decididos na sentença da 1.ª instância”.

Notificada deste acórdão, veio a Ré C. arguir a sua nulidade, o que foi indeferido pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Novembro de 2008.

Notificada deste último acórdão veio a ré C. interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), referindo no respectivo requerimento de interposição:

“2. Normas cuja inconstitucionalidade se pretende seja apreciada: as que se obtêm pela interpretação do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho (define direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como auto-estradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares) e, ainda, as constantes dos artigos 4.º a 12.º da mesma Lei, na medida em que, com as normas directamente visadas, tenham relações sistemáticas de implicação.

3. Preceitos constitucionais violados: consideram-se violados os artigos 2.º (Estado de direito democrático), 13.º, n.º 1 (Princípio da igualdade), 20.º, n.º 4 (Acesso ao direito e tutela efectiva), e 62.º, n.º 1 (Direito de propriedade privada), todos da Constituição. Mais precisamente:

– o artigo 2.º, na parte em que, fixando a República Portuguesa como um Estado de direito baseado na separação de poderes, não permite que o Parlamento, por via de leis formais, interfira na livre negociação de contratos e em processos pendentes perante os Tribunais;

– o artigo 13.°, n.º 1, na medida em que, excluindo o arbítrio, os privilégios e os encargos diferenciadores injustificados, afasta quer as leis ad hominem, quer as regras contrárias ao sistema e quer, finalmente, os regimes de desigualdade com base em meras aparências de tipo populista;

– o artigo 62.°, n.º 1, na área em que protege os direitos de crédito legitimamente constituídos («propriedade» em sentido amplo) e em que veda a imputação, ex novo e sem compensação justa, aos titulares de direitos patrimoniais privados, de riscos que, a ele, não eram inerentes, aquando da sua aquisição.”.

No Tribunal Constitucional, a recorrente apresentou alegações, que terminam com a formulação das seguintes conclusões:

“I – Quanto à matéria em discussão:

1.ª – No dia 24 de Junho de 2003, o veículo XR, na sequência de um embate com um cão, despistou-se, na A4, tendo sido, depois, abalroado por outro veículo; houve danos materiais, sendo demandada a concessionária C..

2.ª – Verificou-se que a auto-estrada estava devidamente vedada e que a C. fizera as patrulhas regulamentares, nada tendo detectado de anormal.

3.ª – A 1.ª Instância entendeu que a C., enquanto ré, não ilidira uma presunção de culpa que, sobre ela, impenderia, condenando-a; a Relação do Porto julgou que, não havendo qualquer presunção, os autores não teriam feito prova da culpa da ré, absolvendo-a.

4.ª – O Supremo Tribunal de Justiça, fazendo aplicação retroactiva da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, entretanto publicada, entendeu que a discussão perdera o interesse, condenando a C..

II – Quanto à Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho:

5.ª – A C. é urna sociedade concessionária da construção, manutenção e exploração de auto-estradas, caindo nos deveres previstos nas bases anexas ao Decreto-Lei n.º 247-C/2008, de 30 de Dezembro.

6.ª – Na sequência de obras de alargamento na A1 (auto-estrada do Norte), a Assembleia da República aprovou a Resolução n.º 14/2004, de 31 de Janeiro (DR, I Série-A, n.º 137, de 31 de Janeiro de 2004, p. 550), na qual pede ao Governo a alteração das bases da concessão, de modo a suspender as portagens nas vias em obras e a melhor informar os utentes da sua ocorrência.

7.ª – Seguiram-se negociações entre o Governo e as concessionárias: inconclusivas, por falta de disponibilidades orçamentais.

8.ª – Posto o que foram, no Parlamento, apresentados dois Projectos de Lei: Projectos n.º 145/X (PCP) e n.º 164/X (BE); veio a ser aprovado o primeiro (Decreto n.º 122/X), o qual deu azo à Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, destinada, no fundo, a conseguir, sem contrapartidas, o que não fora possível pela negociação.

9.ª – A Lei n.º 24/2007 veio, no essencial, fixar um esquema mais denso e mais gravoso, para as concessionárias, na hipótese de obras nas auto-estradas: sem compensação.

10.ª – Além disso, adoptou um sistema que pode conduzir, na hipótese de obras, à suspensão das taxas e ao afastamento do princípio do equilíbrio financeiro: também sem compensação.

11.ª – Finalmente e perante um certo tipo de acidentes (entre os quais os derivados do atravessamento de animais) estabeleceu uma denominada «presunção de incumprimento», contra as concessionárias: igualmente sem compensação.

III – Quanto aos juízos de inconstitucionalidade:

A – Primeiro fundamento: violação dos princípios do Estado de direito democrático e da separação de poderes (artigo 2.º).

12.ª – A Lei n.º 24/2007 vem invadir os poderes nucleares do Governo enquanto órgão superior da administração pública – artigo 182.º – incumbido da direcção da administração directa do Estado – artigo 199.º, alínea d).

13.ª – Com efeito, cabe apenas ao Governo negociar os contratos públicos de concessão, tanto mais que apenas ele tem os meios técnicos e humanos necessários para o efeito; nesse sentido, de resto, o próprio Parlamento adoptou a já referida Resolução n.º 14/2004.

14.ª – A Lei n.º 24/2007 traduz, logo por aí, uma intromissão do Parlamento na área própria do Governo, pondo em crise o princípio da separação dos poderes e violando o artigo 2.º da Constituição.

15.ª – Além disso, a Lei n.º 24/2007, designadamente através do seu artigo 12.º, n.º 1, veio interferir na composição de litígios já em curso, surgidos entre particulares.

16.ª – Tais litígios só podem ser dirimidos pelos tribunais (artigo 202.º, n.º 2), sob pena de se pôr também em causa o direito de acesso aos mesmos, para defesa dos direitos (artigo 20.º, n.º 1).

17.ª – A Lei n.º 24/2007 equivale a uma intromissão do Parlamento no núcleo do poder judicial; põe em causa, num ponto estruturante do nosso ordenamento, o princípio da separação de poderes, violando, também por aqui, o artigo 2.º da Constituição.

18.ª – Também o principio da protecção da confiança, num outro aspecto, seria violado por aquela Lei, enquanto põe em causa o particular mundo das empresas que planeiam a longo prazo com o maior rigor os proveitos que vão obter e os custos em que vão incorrer.

B – Segundo fundamento: violação do princípio da igualdade (artigo 13.º).

19.ª – O Direito assenta no postulado básico de tratar o igual de modo igual e o diferente de modo diferente, de acordo com a medida da diferença: a essa luz, as soluções desarmónicas são, já por si, contrárias ao princípio da igualdade.

20.ª – O Direito civil, na sequência de um esforço milenário de equilíbrio, distingue a responsabilidade obrigacional da aquiliana: a obrigacional, emergente da violação de deveres concretos pré-existentes, prevê uma presunção de culpa, perante o incumprimento (mais severo); a aquiliana, correspondente à inobservância de deveres gerais de respeito, não comporta tal presunção (mais leve): artigos 799.º, n.º 1, e 487.º, n.º 1, do Código Civil.

21.ª – A cominação de um ou outro tipo de responsabilidade não é arbitrária: depende da materialidade em jogo, sob pena de atingir a igualdade.

22.ª – No caso de acidentes em auto-estrada, mostrando-se cumpridos os deveres específicos a cargo da C., apenas queda verificar se, com violação do dever genérico de respeito, foram violados direitos dos utentes: a responsabilidade é, pela natureza das coisas, aquiliana.

23.ª – A «presunção de incumprimento», ao interferir (e na medida em que interfira) nessa questão, viola o artigo 13.º, n.º 1, da Constituição. Sem conceder,

24.ª – A igualdade constitucional projecta-se no princípio da igualdade rodoviária: nas diversas vias e aos vários utentes aplicam-se regras genéricas e nunca ad hominem.

25.ª Daí que não seja compaginável, nas auto-estradas, uma regra de maior protecção (ou menor risco) dos utentes, em função de gerar coordenadas jurídicas...

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