Acórdão nº 0942/08 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 02 de Julho de 2009

Magistrado ResponsávelCOSTA REIS
Data da Resolução02 de Julho de 2009
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

B... intentou no TAF de Braga acção administrativa especial contra o Ministério da Justiça - indicando como contra interessado o Instituto de Registos e Notariado, E.P - onde formulou os seguintes pedidos: a) que se declarasse nulo, ou se anulasse, o acto administrativo constante das al.ªs c) e d) do n.º 1 do art.º 15.º da Portaria 794-B/2007, de 23/07, ousubsidiariamenteb) se declarasse a ilegalidade, com efeito circunscrito ao caso concreto, das al.ªs c) e d) do n.º 1 do art.º 15.º da Portaria 794-B/2007, de 23/07, ou ainda subsidiariamente, como medidas minimizadoras do impacto do programa «Casa Pronta» c) 1. que se condenasse a Administração a permitir o acesso da Autora às bases de dados registrais e de identificação civil públicas 2. que se determinasse a liquidação do IVA na 1.ª e 2.ª Conservatórias Prediais de Braga, e cumulativamente d) que se declarasse a ilegalidade, com efeitos circunscritos ao caso concreto, do art.º 16.º da Portaria 385/2004, de 16/04.

Para o que invocou a violação da CRP, designadamente das normas que garantem o direito à escolha e ao exercício da profissão, do princípio da protecção da confiança e da violação das regras da concorrência.

O Ministério da Justiça contestou defendendo inexistirem as ilegalidades apontadas pela Autora.

Ambas as partes exerceram o direito de alegar.

A Autora formulou as seguintes conclusões:I. A Reforma e a Contra-Reforma1. No ano de 2004, através do Decreto-Lei n.º 26/2004, o Estado Português empreendeu uma reforma política, legislativa e administrativa de grande alcance: a privatização da função notarial.

  1. Os notários que não quisessem abdicar do exercício da sua própria profissão teriam necessariamente que aceitar a nova lógica privada e investir.

  2. Como é sabido, o Governo, no âmbito da concretização do XVII Programa lançou o programa de simplificação legislativa: o tão famoso Simplex, com que pretendeu uma desburocratização e uma simplificação transversal.

    1. A Desigualdade de Condições4. O Estado não se limitou a esvaziar o conteúdo das funções notariais que em outro momento tinha querido assegurar, mas vem efectivamente fazer-lhes concorrência, em contornos que tornam impossível o exercício efectivo da profissão.

  3. Entre tais contornos, encontram-se (i) o facto de os notários estarem sujeitos à prática de preços tabelados, enquanto o Governo oferece os seus serviços a um preço inferior; (ii) a diferença de habilitações exigida aos funcionários das conservatórias e aos notários; (iii) as quantias obrigatoriamente pagas pelos actos por si praticados, ao abrigo do art.º 16.º da Portaria n.º 385/2004; (iv) a omissão de liquidação de IVA por banda do Estado; (v) as burocracias (e seus custos) inerentes aos serviços prestados no cartório, que impedem os notários de oferecer os pacotes que o Governo oferece, e, no fim de tudo, (vi) o facto de os actos dos notários ainda estarem sujeitos ao controlo do conservador.

    1. A lnviabilidade da Subsistência da Profissão6. Perante a desleal actuação exposta, não haverá utente - por mais negligente ou pouco informado que seja - que continue a dirigir-se aos cartórios notariais, contra o que os notários nada podem.

  4. E à Autora apenas resta a exclusividade de pouquíssimos actos, ao contrário do que o Réu alegou na Contestação.

    1. O Acto Impugnado8. O acto/norma em crise determinou a prestação daqueles serviços nas Conservatórias do Registo Predial de Braga "tout court" e consiste o acto/norma pelo qual aquele procedimento foi definitivamente criado nas Conservatórias do Registo Predial de Braga.

    2. Das Invalidades9. As alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 15° da Portaria n.º 794-B/2007, de 23/07, ao procederem à aplicação do regime previsto no Decreto-Lei n.º 263-A/2007 a uma situação individual e concreta, violam o conteúdo essencial do direito fundamental ao exercício da profissão da aqui Autora e atentam, claramente, contra o princípio da protecção da confiança, princípio básico e incontornável de um Estado de Direito (cfr. art. 2.º da CRP).

  5. Do artigo 47°, n.º 1, da CRP decorre que todos têm o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho.

  6. Ao retirar o conteúdo da profissão notarial dos seus serviços administrativos e confiar essa tarefa a um notariado privado, o Estado vinculou-se a respeitar o direito, liberdade e garantia ao exercício desta profissão e a abster-se de adoptar quaisquer medidas que possam configurar uma concorrência desleal dos poderes públicos nas mesmas actividades.

  7. Ora, ainda que a Constituição autorize uma intervenção legislativa restritiva da liberdade do exercício e de escolha da profissão, há, no entanto, um limite absoluto que o Estado Português, através dos seus actos normativos e executivos, demonstra desconhecer: nenhuma profissão "[...] pode ser extinta, por via directa ou indirecta, sem salvaguarda daquele mesmo interesse colectivo e dos direitos e legitimas expectativas do que a escolheram e exercem." (cfr. parecer do Prof. Doutor Jorge Miranda, junto aos autos).

  8. Assim, os actos que instituem o "Casa Pronta", últimos actos de todo um processo de sucessiva descaracterização da profissão notarial, são nulos por vulneração da alínea d) do n.º 2 do artigo 133.º do Código do Procedimento Administrativo.

  9. O qual só não se revela ostensivamente inconstitucional aos olhos de qualquer leigo, pela adopção da chamada "táctica do salame" pela qual por pequenos passos se vai delapidando o exercício de uma profissão.

  10. De igual modo, os actos em causa reflectem uma violação do princípio da protecção da confiança, princípio fundamental do Estado de Direito.

  11. Do princípio da protecção da confiança, enquanto dimensão subjectiva do princípio da segurança jurídica, decorre a protecção das expectativas legítimas dos cidadãos que confiaram na manutenção de um determinado quadro legislativo (cfr. art. 2.º da CRP).

  12. E em particular quando essas expectativas foram estimuladas, geradas pelo próprio Estado.

  13. A protecção e tutela constitucional da confiança pressupõem, grosso modo, o preenchimento de quatro pressupostos: i) a criação de uma base de confiança gerada pelo poder público; ii) a confiança legitima do cidadão na continuidade da política estadual; iii) o investimento de confiança pelo cidadão através de actos que a concretizam; iv) a dignidade da protecção da confiança, ou dito de outro modo, que a mudança de atitude do poder público não seja exigida pela protecção de valores superiores.

  14. Ora, não podem subsistir dúvidas quanto à criação de uma base de confiança na manutenção da Reforma empreendida pelo Governo.

  15. Com base no diploma resultante de um "contrato normativo" celebrado entre o Estado e os profissionais do notariado, a Autora reorientou a sua actividade profissional e fundou toda uma série de decisões pessoais e profissionais, fazendo investimentos de vida.

  16. O que nos permite concluir com o Prof. Doutor Jorge Miranda que: "O interesse público de desburocratização (art. 267.º, n.º 1 da Lei Fundamental) e de desformalização e simplificação de uma gama numerosa de actos jurídicos não pode sobrepor-se, de qualquer maneira, lepidamente e sem condições, ao investimento de confiança realizado pelos notários." 22.

    E assim "[...] agindo como agiu (ou como parece continuar a agir) através do programa Simplex, o Estado faltou ao dever constitucional de boa fé, quebrou a confiança dos destinatários das suas normas e ofendeu o princípio da segurança jurídica" (cfr. Parecer junto aos autos), circunstância esta que, se não fere esses actos da invalidade mais forte (art. 133.º, n.º 1 do CPA), ao menos os infecta com a anulabilidade (art. 135.º do CPA).

  17. Finalmente, e como resulta de todo o exposto, a actuação do Estado constitui uma violação flagrante, do disposto no artigo 81.º, al. f), CRP, segundo o qual a defesa da concorrência é uma das incumbências prioritárias do Estado e um dos princípios jurídicos fundamentais do ordenamento jurídico comunitário (cfr. artigos 4°, n.º 1 e 86° e ss. do TCE).

  18. Não restam pois dúvidas - seja por violação da Constituição (concretamente do direito ao exercício e escolha da profissão, do princípio da protecção da confiança e do princípio da concorrência), seja pela violação do direito comunitário, seja pela violação da lei que os actos instituidores do programa Casa Pronta constantes das alíneas c) e d) do n.° 1 do artigo 15.º da Portaria n.° 794-B/2007, de 23 de Julho, são manifestamente inválidos! O Ministério da Justiça concluiu as suas alegações do seguinte modo: 1) Na petição inicial a Autora faz referência a um denominado "Relatório dos Factos", por si alegadamente elaborado que acompanhava o requerimento da providência cautelar por si apresentado como Doc. n.º 1, e que não foi junto à p..r. por motivos de economia de meios, dando-se, contudo, como reproduzido para todos os efeitos legais; 2) Trata-se de uma exposição de factos que não integra o articulado respectivo, e antes um documento da autoria da parte, não podendo, nem devendo, ser contraditado; 3) No processo conducente à privatização do notariado jamais se garantiu aos notários que viessem a transitar para o sector privado o direito à manutenção do existente grau de formalização dos actos; 4) Era pública e notória a adopção de uma política, publicamente referida e revelada, que ia no sentido da simplificação de procedimentos, desformalização dos actos e da eliminação da obrigatoriedade de celebração de escrituras; 5) As medidas simplificadoras previstas no Dec-Lei n.º 263-A/2007, de 23/07, reflectem-se, no essencial, na prática de actos que - maioritariamente - nunca foram da competência dos notários; 6) Aliás, já desde 1993, com o Dec.-Lei n.º 255/93, de 15/07, que muitas das transmissões e onerações constantes do Dec-Lei n.º 263-A/2007 não se encontravam sujeitas à forma obrigatória de escritura pública; 7) A mesma simplificação de procedimentos foi alcançada com o Dec.-Lei n.º 36/2000, de 14/03, Dec-Lei n.º 64-A/2000, de 22/04, Dec-Lei...

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