Decreto-Lei n.º 26/2004, de 04 de Fevereiro de 2004
Decreto-Lei n.º 26/2004 de 4 de Fevereiro Consta do Programa do XV Governo Constitucional um plano alargado de reformas estruturais a levar a cabo na Administração Pública Portuguesa, com o propósito de a tornar mais moderna e eficiente, diminuindo o seu peso na economia nacional, sem prejuízo da garantia do exercício das funções de soberania que pela Constituição lhe estãocometidas.
É nesse âmbito que se insere a privatização do notariado, que o Governo elegeu como uma das reformas mais relevantes na área da Administração Pública em geral, e da justiça em particular, pelo significado que a mesma reveste. Na verdade, é a primeira vez que no nosso país uma profissão muda completamente o seu estatuto, passando do regime da função pública para o regime de profissão liberal.
O Governo concretiza com esta medida uma progressiva transferência de competências que, pela sua natureza, são comprovadamente exercidas com mais eficiência por profissionais liberais, que ao mesmo tempo prestam um serviço de melhor qualidade e com menores encargos para o erário público.
O notariado constitui um dos elementos integrantes do sistema da justiça que configura e dá suporte ao funcionamento de uma economia de mercado, enquanto instrumento ao serviço da segurança e da certeza das relações jurídicas e, consequentemente, do desenvolvimento social e económico. Com esta reforma, a actividade notarial não só ganha ainda maior relevância, pelo apelo constante ao delegatário da fé pública, consultor imparcial e independente das partes, exercendo uma função preventiva de litígios, mas também vê abrirem-se perante si novos horizontes, num espaço económico baseado na concorrência.
Desde a sua origem até à década de 40 do século passado, o notariado português acompanhou a evolução dos seus congéneres europeus integrados no sistema do notariado latino, que no entanto veio a ser interrompido em pleno Estado Novo, com a 'funcionarização' do notariado.
Desde então, Portugal constitui-se como excepção relativamente aos demais países da União Europeia que integram o sistema do notariado latino; o notário português outorga a fé pública por delegação do Estado e na sua subordinação hierárquica, enquanto no sistema latino o notário exerce a mesma função no quadro de uma profissãoliberal.
Cada sistema notarial deve traduzir o modelo de sociedade e o sistema de Direito vigentes. E tanto a fisionomia que a actual Constituição Portuguesa confere à primeira como a raiz romano-germânica do segundo impõem a consagração entre nós do modelo do notariado latino.
Parte integrante da política de justiça, o sector do notariado deve ser, pois, objecto de um processo de modernização e reforma, que há-de, em primeira linha, garantir a certeza e a segurança das relações sociais e económicas e assegurar o rigoroso cumprimento de elevados padrões técnicos e deontológicos.
Com a presente reforma, e consequente adopção do sistema de notariado latino, consagra-se uma nova figura de notário, que reveste uma dupla condição, a de oficial, enquanto depositário de fé pública delegada pelo Estado, e a de profissional liberal, que exerce a sua actividade num quadro independente. Na verdade, esta dupla condição do notário, decorrente da natureza das suas funções, leva a que este fique ainda na dependência do Ministério da Justiça em tudo o que diga respeito à fiscalização e disciplina da actividade notarial enquanto revestida de fé pública e à Ordem dos Notários, que concentrará a sua acção na esfera deontológica dos notários.
Como princípios fundamentais da reforma consagraram-se o numerus clausus e a delimitação territorial da função. Foram razões de certeza e segurança jurídicas que a função notarial prossegue que levou a optar-se por tal solução. Com efeito, no novo sistema, a par dos restantes países membros do notariado latino, o notário exercerá a sua função no quadro de uma profissão liberal, mas são-lhe atribuídas prerrogativas que o farão participar da autoridade pública, devendo, por isso, o Estado controlar o exercício da actividade notarial, a fim de garantir a realização dos valores servidos pela fé pública, que ficariam necessariamente afectados caso se consagrasse um sistema de livre acesso à função. Por outro lado, só por esta via se assegura a implantação em todo o território nacional de serviços notariais, ao determinar o número de notários existentes e respectiva localização e delimitação territorial da competência, assegurando em contrapartida uma remuneração mínima aos notários que, pela sua localização, não produzam rendimentos suficientes para suportarem os encargos do cartório, comparticipações essas realizadas através do fundo de compensação inserido no âmbito da Ordem dos Notários.
Previu-se também não só o exercício em exclusivo da actividade notarial, assente na elevada qualificação técnica e profissional dos notários, comprovada através de estágios, provas e concursos, mas também a independência e imparcialidade dos mesmos em relação às partes, mediante a definição de incompatibilidades para o desempenho da função.
Contemplou-se igualmente um elenco de direitos, em que se realça a prerrogativa do uso do selo branco enquanto símbolo da fé pública delegada, a definição de uma tabela remuneratória dos actos a praticar no exercício da actividade e a definição de um regime de substituição dos notários. Paralelamente, procedeu-se à enumeração dos deveres a que o notário fica adstrito, como seja o de obediência à lei e ao Estatuto do Notariado, de deontologia, de sigilo, por forma a assegurar a respectiva função social como servidor da justiça e do Direito, criando-se ainda a obrigação de subscrição de seguro profissional como forma de garantia concedida aos particulares.
Tratando-se de uma reforma de grande complexidade e inovação, geradora de naturais perturbações no meio notarial, impõe-se que a mesma se concretize de modo progressivo, por forma que a transição do sistema em vigor para novo modelo notarial se faça sem atropelos a direitos e expectativas legítimas dos notários e funcionários a ela afectos.
Assim, estabeleceu-se um período transitório de dois anos, durante o qual coexistirão notários públicos e privados, na dupla condição de oficial público e profissional liberal, no termo do qual só este último sistema vigorará. Durante este período transitório, os notários terão de optar pelo modelo privado ou, em alternativa, manter o vínculo à função pública, sendo, neste caso, integrados em conservatórias dos registos.
Quanto aos funcionários, estes poderão, com o acordo do notário titular da licença, aderir ao regime privado ou, em alternativa, manter o vínculo à função pública e, tal como os notários, integrados em conservatórias dos registos. Ao transferirem-se para o regime privado, poderá ser concedida aos oficiais uma licença sem vencimento por cinco anos, no termo da qual poderão regressar à função pública, com garantia do direito à integração em conservatórias dos registos.
Foram cumpridos os procedimentos da Lei n.º 23/98, de 26 de Maio.
Foram ouvidas a Associação Nacional de Municípios Portugueses, a Comissão Nacional de Protecção de Dados, a Ordem dos Advogados e a Câmara dos Solicitadores.
Assim: No uso de autorização legislativa concedida pelo artigo 1.º da Lei n.º 49/2003, de 22 de Agosto, e nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, o Governo decreta o seguinte: Artigo único Aprovação do Estatuto do Notariado É aprovado o Estatuto do Notariado, que consta de anexo ao presente diploma e que dele faz parte integrante.
Visto e aprovado em Conselho de Ministros de 17 de Dezembro de 2003. - José Manuel Durão Barroso - Maria Manuela Dias Ferreira Leite - Maria Celeste Ferreira Lopes Cardona - António José de Castro Bagão Félix - Amílcar Augusto Contel Martins Theias.
Promulgado em 23 de Janeiro de 2004.
Publique-se.
O Presidente da República, JORGE SAMPAIO.
Referendado em 27 de Janeiro de 2004.
O Primeiro-Ministro, José Manuel Durão Barroso.
ANEXO ESTATUTO DO NOTARIADO CAPÍTULO I Disposições gerais SECÇÃO I Notário e função notarial Artigo 1.º Natureza 1 - O notário é o jurista a cujos documentos escritos, elaborados no exercício da sua função, é conferida fé pública.
2 - O notário é, simultaneamente, um oficial público que confere autenticidade aos documentos e assegura o seu arquivamento e um profissional liberal que actua de forma independente, imparcial e por livre escolha dos interessados.
3 - A natureza pública e privada da função notarial é incindível.
Artigo 2.º Classe única de notários No território da República Portuguesa há uma classe única de notários.
Artigo 3.º Dependência O notário está sujeito à fiscalização e acção disciplinar do Ministro da Justiça e dos órgãos competentes da Ordem dos Notários.
Artigo 4.º Função notarial 1 - Compete, em geral, ao notário redigir o instrumento público conforme a vontade dos interessados, a qual deve indagar, interpretar e adequar ao ordenamento jurídico, esclarecendo-os do seu valor e alcance.
2 - Em especial, compete ao notário, designadamente: a) Lavrar testamentos públicos, instrumentos de aprovação, depósito e abertura de testamentos cerrados e de testamentos internacionais; b) Lavrar outros instrumentos públicos nos livros de notas e fora deles; c) Exarar termos de autenticação em documentos particulares ou de reconhecimento da autoria da letra com que esses documentos estão escritos ou das assinaturas nelesapostas; d) Passar certificados de vida e identidade e, bem assim, do desempenho de cargos públicos, de gerência ou de administração de pessoas colectivas; e) Passar certificados de outros factos que tenha verificado; f) Certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos; g) Passar certidões de instrumentos públicos, de registos e de outros documentos arquivados, extrair públicas-formas de documentos que para esse fim lhe sejam presentes ou conferir com os respectivos originais e certificar as fotocópias extraídas pelosinteressados; h)...
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