Acórdão nº 09A0065 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 19 de Março de 2009

Magistrado ResponsávelPAULO SÁ
Data da Resolução19 de Março de 2009
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I.

AA intentou, no Tribunal Judicial de Gondomar, acção declarativa de condenação, sob a forma comum, com processo ordinário contra o Estado Português, pedindo a condenação do réu no pagamento da quantia de € 50 000,00, acrescida de juros de mora contados, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.

Para tanto, alegou sumariamente: No dia 3 de Dezembro de 2004, pelas 16 h 25 m, nas instalações do Tribunal Judicial da Comarca de Gondomar, foi detido em cumprimento de mandado de detenção, emitido, dias antes, pelo Magistrado do Ministério Público, no âmbito do processo de inquérito que aí corria os seus termos, sob o n.º 220/03.6TAGDM.

Desde esse momento e até às 19 h 30 m, permaneceu numa dependência do Tribunal Judicial da Comarca de Gondomar, sem possibilidade de se ausentar livremente, guardado por dois colaboradores da Polícia Judiciária, altura em que foi conduzido à presença da Mma. Juíza de Instrução Criminal, que o restituiu à liberdade.

O A. apresentara-se, de forma livre e espontânea, naquele tribunal, na sequência de acordo entre o seu mandatário e o Procurador-Adjunto, o que fez por ter tomado conhecimento da realização de busca domiciliária à sua residência, e por considerar que seria suspeito da prática de crime.

Entende que, desde as 16 h e 45 m desse dia, cessara a fundamentação da medida cautelar de detenção fora de flagrante delito, atenta a livre e espontânea comparência do autor em tribunal, pelo que a detenção efectuada era ilegal e visou dar tratamento vexatório ao autor.

A sua detenção foi alvo de numerosas notícias nos diversos meios de comunicação social, tendo sido entendida como indiciadora de forte possibilidade da prática de actos gravemente lesivos de interesses fundamentais da comunidade, fundamentadora de juízo de suspeita grave sobre a personalidade do autor.

A detenção, noticiada como foi, traduziu-se em lesão do seu direito à honra e bom-nome, e, acima de tudo, do princípio da plenitude da liberdade.

O Autor é pessoa de elevada sensibilidade, tendo sentido afectado o nome da sua família, sentindo ainda revolta pelo tratamento a que foi sujeito, designadamente porque foi detido na véspera do lançamento de um livro de autobiografia.

Citado, contestou o Réu, defendendo a legalidade da emissão e da execução do mandado de detenção e impugnando os factos invocados pelo autor como causadores de lesão na sua honra e bom-nome, e o valor pretendido, a título de compensação pela sua privação de liberdade.

Não houve réplica.

Foi proferida decisão que, em primeira instância, julgou o tribunal incompetente em razão da matéria, absolvendo o réu da instância, mas, interposto o competente recurso pelo autor, pelo Tribunal da Relação do Porto foi decidido revogar a decisão inicialmente proferida, declarando a competência material dos tribunais judiciais.

Foi proferido novo despacho saneador. Procedeu-se à elaboração do elenco dos factos assentes e da base instrutória, tendo sido apreciada a reclamação apresentada pelo autor e parcialmente deferida.

Instruída a causa, realizou-se a audiência de julgamento, após o que foram dadas respostas às questões de facto enunciadas na base instrutória, não tendo as partes apresentado qualquer reclamação.

A final, foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu o Estado Português do pedido.

Desta decisão recorreu o Autor de apelação, tendo a Relação do Porto vindo a proferir acórdão que julgou a acção parcialmente procedente, e condenou o R. a pagar, ao A, a quantia de 20.000,00 Euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Desta decisão recorre, ora, o Estado, de revista, para este STJ.

O recorrente conclui as suas alegações do seguinte modo: 1ª O douto acórdão recorrido condenou o Estado Português a pagar ao recorrido AA uma indemnização de € 20 000,00 (vinte mil euros), para indemnização por danos não patrimoniais, por ter estado detido, durante 3 horas e 5 minutos, numa dependência do Tribunal Judicial de Gondomar, para ser presente à M.ma juiz de instrução criminal, a fim de lhe ser aplicada medida de coacção, no âmbito de um dos processos do denominado "Apito Dourado, interpretando os arts. 254.º e 257.º do CPP, à luz da redacção destes preceitos, introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29-08.

  1. O douto acórdão recorrido esqueceu que, em face do estatuído no art. 225.º, n.º 1 do CPP, que consagra o direito de indemnização por privação de liberdade manifestamente ilegal ou injustificada, só a detenção manifestamente ilegal pode fundamentar esse direito.

  2. É pacífico que só um erro judiciário grosseiro, crasso, palmar, quanto à legalidade da privação de liberdade pode fundamentar o dever de indemnização por parte do Estado.

  3. Ora, a detenção do recorrido para lhe ser aplicada pela M.ma JIC medida de coacção não integra um erro judiciário grosseiro, porque, no caso concreto, se verificavam os pressupostos previstos nos arts. 254.º, al. a) e 257.º, nºs 1 e 2 do CPP, na redacção aplicável ao tempo (no primeiro caso, a introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25-08).

  4. Aliás, à data em que ocorreu a detenção do recorrido, o entendimento de que, se se verificassem os pressupostos da detenção fora de flagrante delito previstos no art. 257.º do CPP, era legal a detenção para o detido ser apresentado ao juiz de instrução criminal competente, para aplicação de uma medida de coacção, correspondia a uma interpretação acolhida pelos teóricos de referência no processo penal português, 6ª Havendo mesmo uma corrente jurisprudencial (e não só em Portugal, como também na Alemanha) que entendia que a lei impunha a prévia detenção de um arguido que devesse ser presente ao juiz de instrução para efeitos de aplicação de medida de coacção.

  5. Acresce que - ao contrário do que se entendeu no douto acórdão recorrido -, mesmo hoje, o MP não pode apresentar um arguido não detido ao JIC, para este lhe aplicar uma medida de coacção, porque, no processo penal português, ao juiz de instrução incumbe o papel de garante dos direitos e da liberdade.

  6. Destarte, como a detenção do recorrido foi determinada seguindo uma corrente jurisprudencial que então se achava sedimentada, não devia o douto acórdão a quo ter condenado o Estado, nos termos previstos no art. 225.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a pagar uma indemnização por privação de liberdade manifestamente ilegal.

  7. Atenta a matéria de facto assente, a adequação e a proporcionalidade da detenção do recorrido terão de se aferir considerando, ainda, que se tratou do encaminhamento por uma funcionária judicial para uma dependência do Tribunal Judicial de Gondomar, onde o detido permaneceu apenas durante 3 horas e 5 minutos, o tempo necessário para ser apresentado à M.ma juiz de instrução criminal que iria interrogar o detido, estando este guardado por dois inspectores da PJ, e tendo o detido sido de imediato restituído à liberdade, findo esse curto lapso de tempo, na sequência da apresentação à M.ma JIC.

  8. E, quanto à necessidade da detenção, é de ponderar que, apesar do detido haver comparecido voluntária e espontaneamente no tribunal, quando foi detido, há 7 dias que haviam sido emitidos mandados de detenção do arguido; que este estava ausente do país, tendo tido conhecimento da realização de uma busca domiciliária à sua residência; e que o arguido, dando conhecimento destes factos ao MP, solicitara a designação de dia e hora para a sua inquirição, dizendo-se disposto a contribuir para a descoberta da verdade e a colaborar com a justiça, não comparecendo, porém, para ser inquirido, na data e hora que logo lhe foi indicada.

  9. Um operador judiciário experiente sabe que, se fosse promovida a aplicação de medida de coacção ao arguido não detido, como o processo não tinha natureza urgente, decorreriam semanas, desde que o arguido compareceu voluntariamente em tribunal, até ao mesmo ser notificado o despacho a aplicar-lhe medida de coacção, ficando, entretanto, por cumprir as finalidades legais visadas pelas medidas de coacção.

  10. Ademais, o recorrido conformou-se com o despacho que validou a sua detenção, dele não recorrendo; ora, o disposto no art. 13.º, n.º 2, da Lei n.º 67/2007 - diploma que aprova o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, sendo inaplicável ao caso, mas onde se lê que a indemnização por erro judiciário deve ter por fundamento a prévia revogação pela jurisdição competente da decisão danosa - é consagração legal de um princípio vigente em matéria de indemnização por erro judiciário.

  11. O ónus de alegar e provar os factos em que fundamentava o pedido de indemnização contra o Estado, por detenção manifestamente ilegal, nos termos do art. 225.º, n.º 1, do CPP, incumbia ao A. e ora recorrido (art. 342.º, n.º 1, do CC).

  12. O A. não satisfez esses ónus, porque, atenta a matéria de facto assente, não provou que a sua detenção foi manifestamente ilegal.

  13. Porém, ainda que se entendesse que a detenção do recorrido tinha sido manifestamente ilegal, ter-se-ia de entender que a indemnização arbitrada no douto acórdão recorrido é claramente excessiva.

  14. Na verdade, atendendo aos danos provados, apenas os vertidos nos n.ºs 17, 28 e 29 da fundamentação de facto da sentença de 1.ª instância - a saber, a detenção causou vexame e revolta ao autor - estão ligados por nexo de causalidade com a detenção, 17ª Ao passo que os factos vertidos na fundamentação de facto da sentença de 1.ª instância sob os n.ºs 15, 16, 20 a 27 são danos que não resultam, em abstracto, da detenção, mas resultam do facto do requerido ser uma figura pública, facto notório este que o STJ pode considerar, até porque o recorrido o admitiu expressamente, no requerimento certificado a fls. 344, do 2.º volume dos autos.

  15. Ao assumir o estatuto de figura pública, restringindo voluntariamente a esfera da sua privacidade, para beneficiar dos frutos que a notoriedade lhe...

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