Acórdão nº 08P1856 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 09 de Setembro de 2008

Magistrado ResponsávelGARCIA CALEJO
Data da Resolução09 de Setembro de 2008
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I- Relatório: 1-1- No Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, Z..., Companhia de Seguros S.A.

, com sede na Rua Barata Salgueiro, ..., 1200, Lisboa, propõe a presente acção com processo ordinário contra B..., Auto Estradas de Portugal, S.A.

, com sede na Quinta da Aguilha, Edifício B..., 2785-599, São Domingos de Rana, pedindo a condenação da R. no pagamento da quantia de 15.035,85 €, bem como dos juros, à taxa legal, contados desde a citação e até efectivo e integral pagamento.

Fundamenta este pedido, em síntese, alegando que no exercício da sua actividade de seguradora, celebrou com a empresa que identifica um contrato de seguros para cobertura da circulação rodoviária do veículo ligeiro de passageiros que indica. Sucede que no dia e hora referenciados, circulando a viatura por uma auto-estrada concessionada à R., em virtude do atravessamento da via por um canídeo, o veículo sofreu um acidente de que resultaram danos indicados que ela, seguradora, pagou à sua segurada. O animal entrou na via devido ao facto de a R. não ter vedado a auto-estrada no local de forma eficaz e apta a impedir a entrada aí de canídeos. A R. não cumpriu as suas obrigações de concessionária da auto-estrada, designadamente a que a obriga a manter a via vedada em toda a sua extensão.

A R. contestou negando qualquer responsabilidade pelo acidente e impugnando, por desconhecer, o montante do dano alegado pela A..

Termina pedindo a improcedência da acção.

Pediu a intervenção da Companhia de Seguros F..., S.A.

(com o fundamento de ter celebrado com ela um contrato de seguro de responsabilidade civil decorrente da concessão da auto-estrada onde ocorreu o acidente em questão) e da M..., Seguros Gerais S.A..

Por despacho judicial (de fls. 107 a 109) foi deferida a intervenção da Seguradora F..., mas indeferida a intervenção da M..., Seguros Gerais S.A.

Citada aquela Seguradora, a mesma contestou, reafirmando, de essencial, a posição assumida pela R. B....

Igualmente pede a improcedência da acção.

O processo seguiu os seus regulares termos com a elaboração do despacho saneador, após o que se fixaram os factos assentes e a base instrutória, se procedeu à audiência de discussão e julgamento, se respondeu à matéria de facto controvertida e se proferiu a sentença.

Nesta julgou-se improcedente a acção, absolvendo-se a R. do pedido.

Não se conformando com esta decisão, dela recorreu a A. de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, tendo-se aí, por acórdão de 29-1-2008, julgado improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida11 No acórdão, dada a confirmação da sentença de 1ª instância, considerou-se prejudicada a apreciação do agravo da apelada, de harmonia com o art. 710º nº 1 in fine do C.P.Civil, interposto do despacho judicial de fls. 261 que admitiu a substituição de testemunhas..

1-2- Irresignada com este acórdão, dele recorreu a A. para este Supremo Tribunal, recurso que foi admitido como revista e com efeito devolutivo.

A recorrente alegou, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões: 1ª- Na douta sentença de 1ª instância, foi reconhecida a existência do dano sofrido pela Autora, e também do nexo causal entre o facto e o dano, mas o pagamento da indemnização ficou dependente da verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, no caso das relações da B... com os simples utentes da Auto-Estrada.

  1. - A tese em causa é discriminatória. De facto, se o veículo que sofreu o dano fosse do Estado, com quem a B... celebrou o contrato de concessão, já tinha direito a ser indemnizado. Não pode ser! 3ª- Por outro lado, impõe um ónus excessivo ao comum utilizador de Auto-Estradas com portagens. O utente da auto-estrada, ainda que terceiro em relação ao contrato de concessão, não tem de provar todos os requisitos da responsabilidade civil por facto ilícito. Verifica-se, no caso concreto, uma inversão do ónus da prova.

  2. - No douto acórdão recorrido já foi admitida, sem reservas, a referida inversão do ónus da prova mas foi entendido que a "B..." elidiu a presunção que sobre si impende, pelo facto da rede de vedação ter a altura de 1,10 metros e se encontrar em perfeito estado de conservação.

  3. - Não se pode concordar com tal conclusão.

  4. - Nos casos de auto-estrada com portagem, existe um contrato inominado de utilização da via celebrada entre o utente que paga a taxa de utilização e a concessionária que tem a obrigação de fornecer ao utente um serviço com toda a segurança. A B... tem de assegurar ao utente uma utilização da via com plena segurança.

  5. - Por força de contrato a B... é obrigada a garantir permanentemente a segurança da circulação rodoviária da A1 (Dec-Lei nº 294/97).

  6. - A R. "B..." deverá ser sempre condenada, quer se considere que estamos perante um contrato inominado de utilização quer se considere que os diplomas de concessão de exploração à B... consagram a responsabilidade aquiliana desta perante o utente.

  7. - Na realidade, nos acidentes com animais (ou com outros objectos) em auto-estradas quem mais facilmente pode provar a proveniência do animal é a concessionária. Só ela tem, pode ou deve ter os meios idóneos à monitorização do tráfego, da circulação viária e da segurança.

  8. - O utente, pelo contrário, depara-se com uma dificuldade congénita em recolher meios ou elementos de prova: ele percorre mais ou menos conjunturalmente a AE, não pode permanecer no seu interior para além de certos limites horários, não tem (a não ser muito excepcionalmente) equipamentos técnicas de recolha de prova.

  9. - A concessionária assume, através do contrato de concessão, o dever de garantir permanentemente a segurança da circulação rodoviária na AE; daí que deva usar meios tecnológicos idóneos a tal desiderato que, com frequência, servirão também de meios de prova da sua diligência.

  10. - No diploma de 1991 que regulava a concessão conferida à B... pela exploração da A1 (D.L. nº 315/91 de 20/8), esse dever de segurança já nos aparece concretizado em diversos itens nomeadamente (no que agora importa) no dever de realização de um determinado leque de obras acessórias (cfr. bases XXIII nºs. 8 e 11 e XXIX). Mas no diploma seguinte (D.L. nº 294/97 de24/10) tal dever aparece-nos reforçado num conjunto mais especificado de deveres de cuidado e de obras acessórias que aprofundam em intensidade a segurança que cabe à B... garantir.

  11. - Assim, não só se impõe à concessionária a vedação total das passagens superiores em casos que ocorrem frequentemente (base XXII, n°5) como se prevê a monitorização do tráfego, detecção de acidentes e sistema de alerta ao utente através de equipamento técnico adequado (base XXXVI). O que aqui se consagra não é um modelo que serve tão só para reforçar a segurança da circulação em AE; é também algo que obviamente serve de meio de prova à concessionária porque quem monitoriza, detecta e alerta o utente fica simultaneamente com a comprovação do que realizou através do sistema tecnológico que domina e detém, como aliás expressamente se prevê na base XVIII, nº 6 quanto a certas infracções.

  12. - A maior facilidade de prova neste tipo de acidente cabe à B.... Deve ser ela, pois, a acarretar com o ónus da prova, atentos os princípios acima enunciados.

  13. - A B... deverá ser sempre responsabilizada quer se siga a via da responsabilidade contratual, quer a da extra-contratual.

  14. - Caso a responsabilidade seja contratual por estarmos perante um contrato inominado de utilização, cabendo à B... provar a ausência de culpa por força da presunção constante do art. 799º; caso a responsabilidade seja extra-contratual a situação é similar porquanto a base XXXIX, n°.2, do D.L. n°315/91 consagra uma presunção de culpa (mantida nos mesmos termos pelo diploma de 1997) na sequência, aliás, da filosofia já constante de normas que regulam a responsabilidade aquiliana por omissão (arts. 486º e 491º 17ª- A utilização das AE por utentes que para tanto pagam uma taxa de portagem proporcional à dimensão da utilização e do serviço que lhes é prestado, configura um contrato inominado de utilização nos termos exactos em que ele é definido no Acórdão de 22/6/04 do Supremo Tribunal de Justiça (relatado por Afonso Correia).

  15. - Trata-se de um contrato bilateral, oneroso, em que à prestação de utilização de uma via com segurança e comodidade reforçadas (e onde é possível atingir patamares de velocidade e de ganho de tempo impensáveis em estradas normais) corresponde, da parte do utente, o pagamento de um preço variável em função da extensão quilométrica da utilização.

  16. - Por conseguinte, nas AE com portagem estamos perante contrato inominado, mediante o qual o utente utiliza a via com segurança pagando determinado preço e a concessionária assegura um conjunto de deveres que vão desde a assistência ao utilizador até à comodidade e à segurança permanente na circulação.

  17. - O incumprimento deste contrato rege-se pelas normas gerais da lei civil quanto à matéria, daí que - verificado o incumprimento de uma das partes - o contraente fiel possa exigir o cumprimento em espécie ou em sucedâneo presumindo-se a culpa do faltoso nos termos do art. 799º do Código Civil.

  18. - Por força do contrato referido a R. era obrigada a garantir permanentemente a segurança da circulação rodoviária na A1 e o trânsito de veículos...

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