Acórdão nº 10661/2008-5 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 03 de Fevereiro de 2009

Magistrado ResponsávelVIEIRA LAMIM
Data da Resolução03 de Fevereiro de 2009
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa: Iº 1. No processo nº374/06.0TALRS do 1º Juízo Criminal de Loures, os assistentes deduziram acusação particular que faz fls. 137 a 146 dos autos, onde imputam ao arguido A a prática de vinte crimes de difamação com calúnia, previsto e punível pelos art.

os 180º, n.º 1 e 183º, n.º 1, al. b), do Código Penal, e a cada um dos demais arguidos, individualmente, a prática de dezanove crimes de difamação com calúnia, previsto nas mesmas disposições legais.

O Ministério Público acompanhou a acusação particular, pese embora considere que aos arguidos apenas deve ser imputada a prática de um crime.

Os arguidos requereram a abertura da instrução, que terminou com despacho julgando improcedente a invocada nulidade da acusação particular e não pronunciando os arguidos.

Esse despacho, de 14 Julho 08, na parte que aqui interessa é do seguinte teor: "....

A instrução tem como finalidade comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento - art.º 286º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

Dispõe o art.º 308º do Código de Processo Penal que «se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos (...)».

Por sua vez, de harmonia com o estatuído no art.º 283º, n.º 2 do Código de Processo Penal, «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança».

Da análise destes preceitos legais ressalta a conclusão de que o conceito de "indícios suficientes" utilizado na acusação e na pronúncia tem o mesmo significado. Todavia, existem duas diferenças fundamentais: na instrução, a entidade que formulará tal juízo, necessariamente um Juiz de Direito, encontra-se totalmente desligada do processo investigatório e da dedução da acusação, pelo que reúne, objectivamente, superiores condições de imparcialidade e distanciamento face à decisão de acusar. Por outro lado, ao existir na instrução, pelo menos, uma fase contraditória, os indícios carreados para os autos são sujeitos a uma crítica anteriormente inexistente, pelo que, a subsistirem, adquirem uma maior consistência e credibilidade.

Entende o legislador português que só é legítimo ao Estado submeter alguém a julgamento pela prática de um crime havendo motivos suficientemente fortes para tal. Daí que toda a primeira etapa do processo penal - comportando obrigatoriamente o inquérito e facultativamente a instrução - vise investigar cabalmente a existência de um crime de que houve notícia, quem foram os seus autores e quais a provas que, podendo ser reproduzidas em audiência de julgamento, sustentam a imputação inerente à acusação ou pronúncia e permitam responder afirmativamente à pergunta sobre se existem indícios suficientes para submeter alguém a julgamento.

Daqui resulta claramente o carácter vinculado do sentido a dar ao conceito de indícios suficientes. Esses indícios devem ser avaliados segundo duas perspectivas autónomas: uma primeira, sobre a imputação propriamente dita dos factos ao arguido, no sentido de apurar se o mesmo pode ser responsabilizado jurídico-penalmente pelos mesmos; uma segunda, sobre a consistência do acervo probatório recolhido e da sua reprodutibilidade em audiência de julgamento, à luz da regra segundo a qual apenas a prova produzida e/ou susceptível de ser valorada na fase de julgamento pode fundar uma decisão de condenação.

Quanto ao grau de certeza compatível com os indícios suficientes, ela deve ser compatível com uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação. E é precisamente na interacção entre o juízo de probabilidade e o juízo de certeza que está a chave para o correcto entendimento do conceito de indícios suficientes.

O juízo de certeza, enquanto afirmação de conformidade de um enunciado de facto com a realidade ontologicamente considerada, assenta necessariamente numa avaliação subjectiva. Parte de um conjunto de indícios e traduz-se numa convicção, num íntimo convencimento sobre a solidez de tal conformidade. Como ensina CASTRO MENDES, toda a convicção humana é uma convicção de probabilidades.

[1] O mesmo se passa com o juízo de probabilidade, que assente sempre no subjectivismo de quem o formula, resultado da avaliação dos indícios apurados e da sua valia.

Ora, o que distingue fundamentalmente o juízo de probabilidade do juízo de certeza é a confiança que nele podemos depositar e não o grau de exigência que nele está pressuposta.

[2] Apenas depois de sujeitos a audiência de julgamento, pública e integralmente contraditória, assente na imediação e oralidade (mecanismos que não existem nas fases anteriores) e a ela "resistirem", é que os indícios que fundam a acusação ou pronúncia adquirem a consistência e credibilidade que permite o juízo de certeza e a concomitante condenação.

Com efeito, constitui o inquérito uma fase essencialmente escrita e não contraditória, pese embora já não seja reservada. A acusação apenas é deduzida após encerrado o inquérito e exauridas todas as diligências probatórias que permitam ao Ministério Público tomar uma decisão de mérito sobre o exercício da acção penal, acusado ou arquivando. Como tal, nesse momento, os meios de prova que fundamentam a acusação e que nela são discriminados não serão, em regra, reforçados até à audiência de julgamento. Ao invés, a tendência natural será até o seu esbatimento à medida que forem contraditados e sujeitos ao exercício da defesa. Pode então concluir-se que o momento do encerramento do inquérito é aquele em que os indícios, por não contraditados, serão mais fortes. Se a prova indiciária não atinge, no momento da acusação ou da pronúncia, a força necessária para formar a convicção razoável sobre a futura condenação, então não deverá o processo prosseguir, pois certamente essa convicção não será alcançada nas fases posteriores.

Solução oposta dificilmente seria compatível com o princípio do in dubio pro reo, enquanto corolário do princípio da presunção da inocência, que deve ter aplicação em todas as fases do processo penal[3], mormente na formulação do juízo de probabilidade de futura condenação. Deste princípio deve decorrer a proibição de submeter uma pessoa a julgamento imputando-lhe factos sobre os quais, findo o inquérito ou a instrução, subsistam dúvidas razoáveis. Como se escreve no Ac. TC n.º 439/2002, «se o Tribunal que pronunciar não demonstrar que ultrapassou as dúvidas sobre uma efectiva possibilidade de condenação através de um juízo probabilístico apoiado nos factos concretos constantes da acusação, estará a enfraquecer intensamente de conteúdo a garantia processual, suportada pelo contraditório, consistente em poder infirmar a sustentabilidade da acusação e anulará, na prática, a possibilidade de o arguido impedir a sua submissão a julgamento».

Traçado o critério que deverá orientar a presente decisão, cumpre agora apreciar concretamente os indícios apurados e se dos autos resultam indícios suficientes de os arguidos terem praticado as infracções pelas quais vêm particularmente acusados.

Vejamos quais as diligências empreendidas no inquérito e nas quais assentou a acusação particular.

Foram inquiridas as seguintes pessoas: · (C), na qualidade de arguido, o qual não prestou declarações - fls. 67; · (B), que se limitou a confirmar o teor da queixa apresentada, nos seus precisos termos - fls. 74; · (A), na qualidade de arguido, o qual declarou que considera a presente queixa como uma retaliação à que apresentou contra os ora assistentes (B), (N), (P) e ainda (O), que correu termos neste tribunal sob o n.º 3424/05.3TALRS, no qual os visados terão sido constituídos como autores de um crime de difamação. No que se refere à sonegação de documentos declarou que o assistente (B) admitiu em Tribunal, processo n.º 3674/05.2TALRS, ter cometido esse acto - fls. 92; · (H), na qualidade de arguido, o qual declarou que considera a presente queixa como uma retaliação à que o co-arguido A apresentou contra os ora assistentes (B), (N), (P) e ainda (O), que correu termos neste tribunal sob o n.º 3424/05.3TALRS, no qual os visados terão sido constituídos como autores de um crime de difamação. No que se refere à sonegação de documentos declarou que o assistente (B) admitiu em Tribunal, processo n.º 3674/05.2TALRS, ter cometido esse acto - fls. 98; · (D), na qualidade de arguido, o qual declarou que considera a presente queixa como uma retaliação à que o co-arguido A apresentou contra os ora assistentes (B), (N), (P) e ainda (O), que correu termos neste tribunal sob o n.º 3424/05.3TALRS, no qual os visados terão sido constituídos como autores de um crime de difamação. No que se refere à sonegação de documentos declarou que o assistente (B) admitiu em Tribunal, processo n.º 3674/05.2TALRS, ter cometido esse acto - fls. 104; · (Q), director-geral de uma das empresas do grupo Evicar há cerca de 24 anos, o qual declarou que entre 2003 e 2005 os arguidos A, (D) e (H) fizeram parte do conselho de administração da Garbecar. Nesse período recebeu um e-mail do arguido (A), onde os queixosos são caluniados, apercebendo-se, do seu teor, que existia um certo litígio entre o arguido (A) e os queixosos, embora desconheça os seus concretos termos. Declarou ainda que desde que trabalha no grupo Evicar nunca se apercebeu de atitudes menos correctas por parte dos arguidos - fls. 107 a 108; · (E), colaborador da Evicar há cerca de 26 anos, o qual declarou que teve conhecimento da documentação referente à providência cautelar proposta pela Garbecar contra a Norcar, na qual os queixosos são difamados pelos arguidos, em particular pelo arguido (C) - fls. 109; · (G), a qual declarou exercer a...

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