Acórdão nº 123/07.5TBMIR.C1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 27 de Maio de 2014

Magistrado ResponsávelMARTINS DE SOUSA
Data da Resolução27 de Maio de 2014
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: I.

AA, Supermercados, Lda., intentou acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra BB e mulher CC, pedindo a condenação dos réus a pagarem-lhe a quantia de € 125 951,76, a título de lucros cessantes e de € 125 907,72, a título de danos emergentes, acrescendo a estes montantes juros legais desde a citação.

Argumentou a autora, para tanto e em síntese: que se dedica à exploração de uma unidade comercial, sob a insígnia DD, no lugar de ..., em Mira, cuja abertura estava prevista para Junho de 2005, mas não conseguiu fazê-lo nessa data devido à intervenção de um tal EE, que não existe em Portugal como cidadão nacional, nem como estrangeiro; com efeito, esse EE veio invocar na Câmara Municipal a caducidade do procedimento de licenciamento de obras, por atraso na entrega do projecto de especialidades, o que era falso; depois, em 17-06-2004, o EE deu entrada no Tribunal Judicial de Mira de uma acção que visava obter a propriedade do terreno, onde seria construído aquele estabelecimento, baseando-se num contrato-promessa falso; que em 14-10-2004, com recurso a fotografias de 12-10-2004, o mesmo EE alegou falsamente, junto da Câmara, que não tinham sido realizadas quaisquer obras até ao dia 26-06-2004; que com todas estas intervenções o dito EE logrou atrasar a abertura do DD de Junho de 2005 para Setembro de 2005; que os réus interpuseram, em Julho de 2005, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, uma providência cautelar para suspender aquela obra, até ao trânsito em julgado da acção a propor – que não foi instaurada –, mas a referida providência foi indeferida em 19-12-2005; que naquela providência, instaurada por mandatário colega de escritório do dito EE, os réus utilizaram os mesmos argumentos empregues pelo tal EE junto da Câmara e no Tribunal de Mira e anexaram as mesmas fotos apresentadas pelo EE no procedimento de licenciamento junto da Câmara, sendo todo o aduzido absolutamente falso e gerador de responsabilidade pelos danos causados à requerida e ora autora, nos termos do art. 390.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC); que o EE foi inventado ou pelos réus ou pelos seus mandatários; que a intenção dos réus não era obter vencimento de causa mas apenas a de, dolosamente, atrasar a abertura da UCDR (unidade comercial de dimensão relevante), o que conseguiram e em 10 meses; que o conjunto de comportamentos dos réus obstou a que o DD tivesse iniciado o seu funcionamento, primeiro, em Junho de 2005 e depois em Setembro de 2005, fazendo com que o estabelecimento fosse apenas inaugurado em 5 de Abril de 2006; os obstáculos colocados pelo alter-ego EE tornaram improvável a abertura do estabelecimento em Junho, passando a estar prevista para Setembro de 2005; que, em razão da conduta dos réus, a autora deixou de auferir os lucros que aponta de 1 de Julho de 2005 a 5 de Abril de 2006 e efectuou o conjunto de despesas (danos emergentes) de 1 de Setembro de 2005 a 31 de Março de 2006, que realizou na expectativa da abertura do estabelecimento em Setembro, ascendendo os prejuízos ao montante acima mencionado.

O réu marido contestou, impugnando a matéria da petição e alegando que a autora apenas se quer locupletar à custa dele, que nada sabe, nem tem de saber, sobre o dito EE, rejeitando as insinuações sobre o patrocínio do cidadão em causa, concluindo pela improcedência da acção.

Realizada audiência preliminar, não foi possível obter a conciliação das partes, pelo que foi elaborado despacho saneador, seguido de fixação da matéria assente e da base instrutória. Foi efectuada prova pericial.

Após audiência de discussão e julgamento, que culminou com a resposta à matéria de facto, sem reclamação, e apresentadas as alegações de direito pelos réus, foi proferida sentença na qual se epilogou: “Termos em que julgo parcialmente provada e procedente a presente acção, pelo que condeno os Réus, BB e mulher CC, a pagar à Autora, AA, Supermercados, Ld.ª, a indemnização global de duzentos e vinte e oito mil quinhentos e cinquenta e dois euros e cinquenta e um cêntimos (€ 228.552,51), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo reembolso.

Custas pela Autora e pelos Réus, na proporção das sucumbências.

Registe e notifique.” Não se resignando com esta decisão, dela recorreram os réus, para o Tribunal da Relação de Coimbra que julgou a apelação procedente e, consequentemente, decidiu: “a) revogar a sentença, na parte em que condena os réus a pagarem à autora a indemnização (no montante de € 27 989,28) correspondente aos lucros cessantes no período de 1 de Julho de 2005 a 1 de Setembro de 2005, absolvendo os réus dos pedidos, nessa parte; b) julgar o tribunal comum incompetente em razão da matéria para apreciar o pedido de indemnização por danos causados pela providência cautelar, revogar a sentença na parte em que condena os réus a pagarem à autora indemnização (no montante de € 200.563,23), correspondente aos danos emergentes e lucros cessantes do período de 1 Setembro de 2005 a 6 de Abril de 2006 e, nos termos dos art. 105º, 288º e 493º, todos do CPC, absolver os réus da instância relativamente aos pedidos subjacentes a tal condenação”.

Novamente inconformada com esta decisão, veio a autora interpor o presente recurso de revista, concluindo sua alegação, nos seguintes termos: “1.ª Existe coincidência com o decidido quanto ao âmbito da norma do art. 4.º, 1 do ETAF, por si, ou conjugada com a norma do art. 1.º, 1 do mesmo Estatuto, art. 2.º CPTA, ou ainda com a do art. 212.°, 3 CRP, nos termos dos quais o litígio entre particulares é expressamente afastado da jurisdição administrativa.

  1. A interpretação da norma do art. 126.° CPTA há-de reflectir não só o seu carácter excepcional, como o seu correcto alcance.

  2. Ora, enquanto o n.° 1 mais não é que a concretização da tutela jurisdicional efectiva prometida constitucionalmente no art. 20.° CRP, consagrando, outrossim, o princípio geral da responsabilidade civil, com o acrescento de exigir, na mera culpa, que a negligência seja grosseira.

  3. Já o n° 2 refere que os lesados podem solicitar no processo a indemnização que lhes seja devida ao abrigo do disposto no número anterior. Ora, sendo a norma uma excepção às regras de competência dos tribunais administrativos, a verdade é que a conjugação verbal podem solicitar, parece, salvo melhor opinião, transmitir muito mais a ideia de uma faculdade concedida às partes (por comodidade e economia processual) do que uma obrigação. De facto, se o legislador quisesse obrigar as partes a serem ressarcidas nesses autos teria empregue formas verbais imperativas como devem peticionar ou devem pedir.

  4. Acresce que se alguma dúvida restasse, veja-se a consequência estatuída no n.° 3 para o esgotamento do prazo definido no n.° 2 do mesmo artigo: “Decorrido o prazo referido no número anterior sem que tenha sido pedida qualquer indemnização, é autorizado o levantamento da garantia, quando exista”.

    Ou seja, nem mesmo em matéria de tempo parece o legislador ter pretendido alterar os efeitos e regime típicos da prescrição da responsabilidade civil em geral. O não cumprimento do prazo apenas dá lugar ao levantamento da garantia, quando exista.

  5. A própria jurisprudência, nomeadamente administrativa, admite que a responsabilidade civil decorrente de interposição de providência cautelar administrativa infundada pode ser apurada em acção de responsabilidade civil diversa dos autos que dão causa aos danos produzidos.

  6. A norma do art. 126.° CPTA não só não obsta a que os lesados particulares (quando o lesante também o seja) possam peticionar o ressarcimento dos seus danos na jurisdição comum, como, com referência ao regime geral da responsabilidade civil, apenas se exige acrescida medida quanto à negligência.

  7. Inexiste, pois, qualquer incompetência em razão da matéria dos tribunais comuns para apreciarem a questão dos autos, de onde decorre que a norma do art. 101.° CPC foi violada por indevida aplicação.

  8. Pese a interposição de recurso em matéria de facto pelos ora recorridos, nos termos do disposto no art. 690.°-A CPC (que ainda regula o processo atenta a data da sua entrada em juízo), a análise concretamente efectuada no acórdão de que se recorre foi, nas suas extensão e abordagem, em tudo semelhante àquela que o Venerando Supremo Tribunal de Justiça pode exercer, ex vi o disposto na última parte do n.° 3 do artigo 722.° CPC (cfr. também art. 729.° 1 e 2 CPC). Ou seja, no douto acórdão recorrido efectuou-se o julgamento da presunção judicial extraída pelo Tribunal de 1.ª instância quanto à matéria dos quesitos 7.º e 8.º (na parte coincidente com o âmbito do questionado no referido quesito 7.º), censurando, em termos de pura apreciação lógica, o resultado alcançado pela referida 1.ª instância.

  9. Não existe, pois, qualquer discordância entre as instâncias quanto ao material probatório sobre que ambas discorreram. A divergência apenas surge quando o Venerando Tribunal recorrido exerceu censura quanto aos factos que a 1.ª instância deu como provados em resultado de presunção judicial (cfr. art. 351.° CC). E tal percurso intelectual tendente à verificação da correcção do método discursivo de raciocínio, é precisamente aquele que o Venerando Supremo Tribunal de Justiça se encontra legalmente autorizado a, também ele operar (ex vi o disposto na última parte do n.°3 do artigo 722.° CPC como anteriormente se expôs).

  10. Pelo que, a questão que aqui será colocada resume-se a apurar, em 1.ª linha se a censura exercida no douto acórdão recorrido ao uso da presunção judicial que logrou associar o ente EE aos recorridos efectuada pelo Mm.° Juiz de 1.ª instância foi adequada, ou não. Na 2.ª linha; se o raciocínio lógico material que substitui, revogando, o primeiro é ele mesmo discursivamente correcto. Sempre com salvaguarda do devido respeito e em jeito de antecipação, dir-se-á que não só o referido método discursivo de raciocínio empregue pelo Mm.° Juiz de 1.ª instância é...

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