Acórdão nº 506/08 de Tribunal Constitucional (Port, 22 de Outubro de 2008

Magistrado ResponsávelCons. José Borges Soeiro
Data da Resolução22 de Outubro de 2008
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 506/2008

Processo n.º 565/08

  1. Secção

Relator: Conselheiro José Borges Soeiro

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I – Relatório

  1. A., Recorrente nos autos, foi acusado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto então pelo artigo 24.º, n.ºs 1, 2 e 5, do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção do Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, ora previsto no artigo 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pelo artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho. Na sequência de requerimento de abertura de instrução, foi proferida decisão instrutória, tendo o arguido sido pronunciado pela prática do tipo indicado.

    Remetidos os autos para julgamento, foi apreciada pelo Juiz de julgamento questão prévia atinente à entrada em vigor, em 1 de Janeiro de 2007, da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, que, tendo aprovado o Orçamento de Estado para 2007, introduziu várias alterações ao RGIT tendo, nomeadamente, modificado a redacção do artigo 105.º, n.º 4. Pode-se ler no despacho então proferido:

    “Confrontado o regime anterior (RGIT) com aquele que entrou em vigor no transacto dia 1 de Janeiro para que se verifique um crime de abuso de confiança fiscal, é sempre necessário, para além do decurso do prazo de 90 dias, sobre o termo do prazo legal da entrega da prestação, existir o não pagamento na sequência de uma notificação para que o agente, em 30 dias, proceda ao pagamento da prestação comunicada à administração fiscal, acrescida de juros e o valor da coima aplicável.

    No RGIT tal faculdade só era concedida se o valor do imposto não excedesse 2000 euros (artº 105º nº 6 na redacção da Lei 60-A/2005, de 30/12).

    Está-se assim, face a esta nova redacção da alínea b) do nº 4 do artº 105º perante a existência de uma verdadeira sucessão de leis penais impondo-se assim a aplicação do disposto no artº 2º nº 4 do Cod. Penal.

    […]

    Pelo exposto, por força desta sucessão de leis penais e do princípio da aplicação da lei mais favorável, plasmado no artº 2º nº 4 do Cod. Penal, ordena-se a notificação dos arguidos para os termos da al.b) do nº 4 do artº 105º do RGIT alterado pela Lei 53-A/2006 de 29/12 que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2007.”

  2. O arguido A., não se conformando com o despacho anterior, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, ao abrigo do artigo 427.º, do Código de Processo Penal, com base em argumentação sintetizada nas seguintes conclusões:

    “I. Não existe fundamento legal para o tribunal do julgamento ordenar a notificação do Arguido, ora Recorrente, para os termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT.

    1. É manifestamente ilegal, por violação dos mais elementares e historicamente importantes princípios estruturantes do Estado de Direito (designadamente, da separação de poderes, da independência dos tribunais e do acusatório), constitucionalmente consagrados e com expressão legal, o entendimento segundo o qual o tribunal do julgamento pode ordenar a realização da notificação prevista na alínea b) do n.º 4 da versão actual do artigo 105.º do RGIT, comportando-se como um órgão acusador ou que supre as lacunas da acusação ou da pronúncia.

    2. É inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais do acusatório (art. 32.º, n.º 5, da CRP), da plenitude das garantias de defesa dos arguidos (art.32.º, n.º 1, da CRP), da separação de poderes (art. 2.º da CRP) e da independência dos tribunais (art. 203.º da CRP), a norma, que se retira da interpretação conjugada da anterior e da actual versão do artigo 105.º, n.º 1 e 4, do RGIT e 311.º, n.º 1, do CPP, segundo a qual, nos casos em que o sujeito tributário passivo deu cumprimento às suas obrigações declarativas e não foi notificado para pagar a prestação tributária, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, não constando da acusação ou da pronúncia que tenha sido notificado para esse efeito, pode o tribunal do julgamento ordenar a realização de tal notificação.

    3. É inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais do acusatório (art. 32.º, n.º 5, da CRP), da plenitude das garantias de defesa dos arguidos (art.32.º, n.º 1, da CRP), da separação de poderes (art. 2.º da CRP) e da independência dos tribunais (art. 203.º da CRP), a norma, que se retira da interpretação conjugada da anterior e da actual versão do artigo 105.º, n.º 1 e 4, do RGIT e do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, segundo a qual, nos casos em que o sujeito tributário passivo deu cumprimento às suas obrigações declarativas e não foi notificado para pagar a prestação tributária, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, não constando da acusação ou da pronúncia que tenha sido notificado para esse efeito, o arguido não deve ser absolvido ou o processo arquivado.

    4. Conforme resulta da interpretação subjectiva, sistemática e teleológica, a nova versão do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29.12, revogou a versão anteriormente em vigor, descriminalizando os casos de não entrega da prestação tributário quando o sujeito tributário passivo deu cumprimento às suas obrigações declarativas previstas na primeira parte da alínea b) do referido número e não foi notificado nos termos da parte final da mesma alínea.

    5. A factualidade histórica actualmente existente imputável ao Arguido, ora Recorrente, não integra todos os pressupostos de punibilidade previstos na actual versão do artigo 105.º, n.ºs 1 e 4, do RGIT, uma vez que, como reconhece o douto despacho recorrido, o mesmo não foi notificado para proceder ao pagamento da prestação tributária, respectivos juros de mora e valor da coima aplicável.

    6. A factualidade imputada e a factualidade actualmente existente imputável ao Arguido, ora Recorrente, não preenche o tipo legal (designadamente, de garantia) do crime de abuso de confiança fiscal previsto na actual versão do artigo 105.º da RGIT, não constituindo a prática de um crime, tendo, designadamente, em conta as noções legais previstas nos artigos 1.º, n.º 1, do Código Penal e 1.º, alínea a) do Código de Processo Penal.

    7. Não se pode considerar consumada a prática do referido crime, uma vez que não se encontra preenchido aquele novo elemento do respectivo tipo legal.

    8. O douto despacho recorrido assenta, assim, numa errada interpretação e aplicação das normas consagradas na anterior e na actual versão do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, nos n.ºs 2 e 4 do artigo 2.º do Código Penal, violando flagrantemente, entre outros, os princípios constitucionais da não retroactividade da penalização (art. 29.º, n.º 1, da CRP), do acusatório (art. 32.º, n.º 5, da CRP), da plenitude das garantias de defesa (art. 32.º n.º1, da CRP), da separação de poderes (art. 2.ºda CRP), da independência dos tribunais (art. 203.ºda CRP) e do exercício da acção penal pelo Ministério Público (art. 219.º n.º1, da CRP).

    9. É inconstitucional, por violação do princípio constitucional da não retroactividade da penalização (art. 29.º n.º1, da CRP) a norma, que resulta da interpretação conjugada da anterior e da actual versão dos n.ºs 1 e 4 do art. 105.º do RGIT e do n.º 4 d artigo 2.º do Código Penal, segundo a qual constitui crime a não entrega da prestação tributária por sujeito tributário passivo que cumpriu a obrigação de declaração constante da alínea b) do mencionado n.º 4 mas não foi notificado para proceder ao pagamento previsto nesta alínea.

    10. Não existe, pois, fundamento legal para ordenar o prosseguimento dos autos e não absolver os arguidos ou determinar o arquivamento dos autos.

    11. O douto despacho recorrido deve ser revogado, absolvendo-se os arguidos ou determinando-se a sua substituição por outro que determine...

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