Acórdão nº 46/08 de Tribunal Constitucional (Port, 23 de Janeiro de 2008

Magistrado ResponsávelCons. Mário Torres
Data da Resolução23 de Janeiro de 2008
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 46/2008

Processo n.º 1055/07 2.ª Secção

Relator: Conselheiro Mário Torres

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional.

1. Relatório

O representante do Ministério Público junto da 3.ª Vara Cível do Porto interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra o despacho de 4 de Julho de 2007 do respectivo Juiz, que recusou, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), a aplicação do “Anexo à Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, conjugado com os artigos 6.º a 10.º da Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto, alterada pela Portaria n.º 288/2005, de 21 de Março, na parte em que determina que seja considerado para efeitos do cálculo do rendimento relevante do requerente do benefício de apoio judiciário o rendimento do seu agregado familiar nos termos aí rigidamente impostos, sem permitir em concreto aferir da real situação económica do requerente em função dos seus rendimentos e encargos”, e, consequentemente, julgou procedente o recurso interposto por A. da decisão do Centro Distrital de Segurança Social do Porto, de 2 de Maio de 2007, que, perante seu pedido de concessão de dispensa total do pagamento de taxa de justiça e dos demais encargos do processo e pagamento da remuneração do solicitador de execução designado pelo exequente, com vista a intervir em processo de execução em que era executada, apenas lhe concedeu os benefícios de pagamento faseado da taxa de justiça e demais encargos com o processo e de pagamento faseado da remuneração do solicitador de execução designado.

É o seguinte o teor da decisão recorrida, na parte que releva para apreciação do presente recurso:

“Como fundamento deste recurso, alegou a requerente que, face à sua situação económica em concreto, a Segurança Social deveria ter recorrido ao dispositivo legal previsto no n.º 2 do artigo 20.º, afastando os critérios definidos no Anexo à Lei n.º 34/2004, por forma a ser-lhe concedido o benefício do apoio judiciário.

A faculdade a que alude a requerente está prevista para a Segurança Social em sede de fase administrativa do procedimento em análise, momento em que então prevê a Lei directamente a possibilidade de ser afastada a aplicação dos critérios previstos no Anexo à Lei n.º 34/2004, para aferir da situação de insuficiência económica da requerente em concreto, através do recurso a uma Comissão para o efeito constituída expressamente.

Tal possibilidade não está todavia prevista na Lei em sede de recurso, por via judicial, sendo que então se deve apreciar a insuficiência económica alegada pelo requerente de acordo com os critérios estabelecidos e publicados em Anexo à Lei n.º 34/2004 (e Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto, que veio concretizar tais critérios, alterada pela Portaria n.º 288/2005, de 21 de Março), que o requerente através deste recurso pretende sejam afastados.

O recurso a estes critérios legais estabelecidos através de fórmulas matemáticas, porém, impossibilita o tribunal de aferir em concreto da situação económica do requerente do benefício do apoio judiciário.

Nos termos do artigo 20.º da CRP, «1 – A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos».

A garantia constitucionalmente consagrada de acesso ao direito a todas as pessoas para defesa da generalidade dos seus direitos e interesses legalmente protegidos constitui um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Direito este a ser concretizado através das leis, sobretudo processuais. Dependendo, pois, da estrutura processual global concretamente instituída a efectividade de muitos direitos, liberdades e garantias (cf. Direito Constitucional, Prof. Gomes Canotilho, 4.ª edição, p. 772).

Sendo o acesso aos tribunais o meio de defesa por excelência dos direitos referidos no artigo 20.º da Constituição, constituem os tribunais a instância última de defesa da liberdade e dignidade dos cidadãos (cf. Prof. José Carlos Vieira de Andrade, in Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3.ª edição, pp. 368/369).

O princípio do acesso ao direito pretende garantir, assim, não só o reconhecimento da possibilidade da defesa sem lacunas, como também o exercício efectivo deste direito, que se pode traduzir, por exemplo, e no que ora interessa, no direito a litigar com dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, incluindo pagamento da remuneração do solicitador de execução nomeado.

Sendo certo que todos os actos normativos devem estar em conformidade com a Constituição (cf. artigo 3.º, n.º 3, da CRP), temos como consequência que toda a norma que viole os preceitos constitucionais é inconstitucional.

Para efeitos de se controlar a constitucionalidade de um acto normativo «é a Constituição no seu todo – tanto, pois, no que toca às suas regras de competência e de procedimento legislativo, como aos seus princípios materiais e aos valores nestes incorporados – que é tomada como padrão do julgamento de constitucionalidade» (cf. Cardoso da Costa, A Justiça Constitucional no quadro das funções do Estado, p. 51, citado por Fernando Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, 4.ª edição, p. 389).

Sendo material a inconstitucionalidade quando se infringem os princípios materiais incorporados na Constituição (os vícios materiais são vícios das disposições), orgânica quando se desrespeitam normas de competência nela estabelecidas e é formal quando se transgridem regras de forma ou de procedimento por ela definidas (cf. o mesmo autor, p. 390).

Tecidos estes considerandos e tendo presente a garantia efectiva de acesso aos tribunais a todos consagrada no artigo 20.º da CRP, impõe-se analisar a constitucionalidade material do Anexo à Lei n.º 34/2004, conjugado com os artigos 6.º a 10.º da Portaria n.º 1085-A/2004, alterada pela Portaria n.º 288/2005, de 21 de Março.

Nos termos do artigo 1.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, o sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos. Compreendendo o acesso ao direito a informação jurídica e a protecção jurídica, revestindo esta última as modalidades de consulta jurídica e de apoio judiciário (cf. artigos 2.º, n.º 2, e 6.º, n.º 1, da citada Lei).

Definindo quem tem direito à protecção judiciária, dispõe o artigo 7.º, n.º 1, da mesma Lei que a esta têm direito «(...) os cidadãos que demonstrem estar em situação de insuficiência económica». Esclarecendo o artigo 8.º que se encontra em situação de insuficiência económica aquele que, tendo em conta factores de natureza económica e a respectiva capacidade contributiva, não tem condições objectivas de suportar pontualmente os custos de um processo.

Sendo a prova e a apreciação da insuficiência económica feitas de acordo com os critérios estabelecidos em Anexo à presente Lei (n.º 5 deste artigo 8.º e n.º 1 do artigo 20.º).

Neste Anexo, por sua vez, é dito que a insuficiência económica é apreciada pelo rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica do agregado familiar do requerente, nos termos que aí são indicados no n.º 1. Definindo-se ainda, no n.º 3 do ponto 1 do Anexo, que para efeitos desta Lei se considera pertencerem ao mesmo agregado familiar as pessoas que vivam em economia comum com o requerente de protecção jurídica.

Visando concretizar os critérios de prova e de apreciação da insuficiência económica, foi publicada a Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto, alterada pela Portaria n.º 288/2005, de 21 de Março, onde, e para além do mais, foi concretizada a fórmula de cálculo do valor do rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica a que se refere o critério de avaliação da insuficiência económica do requerente previsto na Lei, nos termos dos artigos 6.º a 10.º desta Portaria.

Por base tendo sempre o rendimento líquido completo do agregado familiar. Resultando este da soma do valor da receita líquida do agregado familiar (ou seja, o rendimento depois do imposto sobre o rendimento, das contribuições obrigatórias dos empregados para os regimes da segurança social e das contribuições dos empregadores para a segurança social) com o montante da renda financeira implícita calculada com base nos activos patrimoniais do agregado familiar.

Da conjugação destes normativos resulta que a concessão da protecção jurídica passou a depender do valor do rendimento relevante para esses efeitos, determinado a partir do rendimento das pessoas que vivam em economia comum com o requerente desta protecção jurídica e independentemente de este auferir em concreto um qualquer rendimento, ou ainda de em concreto ele ter de suprir outras despesas que tal fórmula não prevê sejam consideradas. É o caso dos autos, em que, fruto da aplicação de tais fórmulas matemáticas, para além de uma penhora sobre o vencimento do cônjuge da requerente, viu-se a requerente obrigada, juntamente com seu marido, a pagar em três processos o montante de 90 € em cada processo (45 € para cada cônjuge), num total de 270 € mensais.

Para além de que, mesmo em relação às despesas que a fórmula prevê sejam consideradas, como é o caso da dedução de encargos com a habitação do agregado familiar, resulta esta dedução também da aplicação de um coeficiente determinado em função de diversos escalões de rendimento, implicando na prática a não consideração directa do valor em concreto que é despendido pelo agregado familiar.

Se levarmos em...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO
2 temas prácticos
  • Acórdão nº 11/19 de Tribunal Constitucional (Port, 08 de Janeiro de 2019
    • Portugal
    • 8 Enero 2019
    ...se não podem subtrair e que efetivamente diminuem a sua capacidade económica» (neste sentido, vide Acórdão do Tribunal Constitucional nº 46/2008). Contudo, apesar das semelhanças, o regime de concessão do benefício do apoio judiciário não se manteve totalmente idêntico d......
  • Decisões Sumárias nº 473/08 de Tribunal Constitucional (Port, 21 de Outubro de 2008
    • Portugal
    • 21 Octubre 2008
    ...decorre da confrontação entre os diplomas a que supra fizemos referência. ________________ 2 Cfr. a título de exemplo os Acs. TC n°s 46/2008, 125/2008, 126/2008, 127/2008 e O objecto do recurso de constitucionalidade interposto pelo Ministério Público, em representação do Estado, é, pois, o......
2 sentencias
  • Acórdão nº 11/19 de Tribunal Constitucional (Port, 08 de Janeiro de 2019
    • Portugal
    • [object Object],Tribunal Constitucional (Port
    • 8 Enero 2019
    ...se não podem subtrair e que efetivamente diminuem a sua capacidade económica» (neste sentido, vide Acórdão do Tribunal Constitucional nº 46/2008). Contudo, apesar das semelhanças, o regime de concessão do benefício do apoio judiciário não se manteve totalmente idêntico d......
  • Decisões Sumárias nº 473/08 de Tribunal Constitucional (Port, 21 de Outubro de 2008
    • Portugal
    • [object Object],Tribunal Constitucional (Port
    • 21 Octubre 2008
    ...decorre da confrontação entre os diplomas a que supra fizemos referência. ________________ 2 Cfr. a título de exemplo os Acs. TC n°s 46/2008, 125/2008, 126/2008, 127/2008 e O objecto do recurso de constitucionalidade interposto pelo Ministério Público, em representação do Estado, é, pois, o......

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT