Acórdão nº 95/11 de Tribunal Constitucional (Port, 16 de Fevereiro de 2011

Magistrado ResponsávelCons. Ana Guerra Martins
Data da Resolução16 de Fevereiro de 2011
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 95/2011

Processo n.º 103/09

  1. Secção

Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins

Acordam, na 3ª Secção, do Tribunal Constitucional

I – RELATÓRIO

  1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, ao abrigo do artigo 280º, n.º 1, alínea b) da CRP e do artigo 70º, n.º 1, alínea b) da LTC, do acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido em 16 de Dezembro de 2008 (fls. 117 a 155).

  2. O requerimento de interposição de recurso (fls. 170) não indica expressamente quais as normas cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada. Contudo, das alegações que lhe foram anexadas, é possível concluir que o recorrente pretendeu fixar como objecto do recurso as seguintes normas e interpretações normativas:

    i) “O artigo 292. ° (Condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas) CP 2007, entendido enquanto “crime de perigo abstracto” e não como “crime de perigo abstracto-concreto”, é materialmente inconstitucional”;

    ii) “O artigo 69. ° CP, na sua (automática) articulação/aplicação com o artigo 292. ° CP, ao entender-se que a sanção acessória de “proibição de conduzir veículos com motor” é automática acarreta a violação dos princípios gerais de aplicação das penas acessórias do artigo 65. ° CP.”;

    iii) “O artigo 69. ° do CP é manifestamente inconstitucional, sempre que, ao arrepio do disposto no artigo 283.°, n.º 3 do CPP, 358.°, nºs 1 e 3 e 379.°, nº 1, alínea b) se entende desnecessária — como foi o caso —, em processo por crime de condução perigosa de veículo ou por crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, a sua não indicação na acusação ou pronúncia.”;

    iv) “Não operatividade e validade da confissão para a comprovação da verificação dos factos para efeitos do cometimento do crime do artigo 292. ° CP, dado que se trata de uma prova mista de exame e perícia (juízo pericial), 151. ° e 163.°, 171.° CPP 2007 que implica, sob pena de nulidade, 126. °, nºs 1 e 3 CPP 2007, um juízo técnico científico, mediatizado por aparelho, previamente aprovado, homologado.”;

    v) “Os artigos 152. ° e 153.° do Código da Estrada, no contexto da aplicação do artigo 292.° CP, são materialmente inconstitucionais e ilegais, por contenderem com o direito ao silêncio e o direito a calar o corpo, nos termos dos artigos 61. °, n.º 1, alínea d) e artigo 32.°, n.º 1, 2, 4 e 8 da CRP, que assiste a qualquer arguido em processo penal (artigo 126.°, nº 1, n.º 2, alínea a) e nº 3 CPP) e em processo contra-ordenacional, por força do artigo 42.°, n.º 2 do Regime Geral das Contra-Ordenações.”;

    vi) “Inconstitucionalidade do artigo 374. °, nºs 2 e 3, alínea b) e 4 do CPP, na interpretação que lhe é dada pelas instâncias ao condenarem o arguido em custas (de forma lacunar e sem invocação de qualquer norma específica e, consequentemente, justificação dos critérios adoptados) face ao constitucional dever de fundamentação expressa, acessível (artigo 205.°, 11.0 1 e 268.° CRP 1976) e proporcional (artigos 18.°, n.º 2 CRP 1976).”;

    vii) “A inadmissibilidade de recurso, para o STJ, por força do disposto nos artigos 400. °, n.º 1, alínea e) e 432.°, 1, alínea b), a contrario, do CPP, é manifestamente inconstitucional, à luz do “direito ao recurso” e “acesso ao direito e aos tribunais”, constante dos artigos 20. °, 32.°, n.º 1 e 202.° CRP 1976, visto que configura uma desproporcionada e inconstitucional limitação das garantias de defesa do arguido.” (fls. 171 e 172)

  3. Verificadas as circunstâncias processuais que obstavam ao conhecimento pleno das diversas interpretações normativas que constituem objecto do presente recurso – e ainda por ser possível decidir parte do recurso por mera remissão para jurisprudência anterior, em função da simplicidade de uma das questões –, a Relatora proferiu o seguinte despacho, nos termos dos quais proferiu decisão sumária parcial e notificou o recorrente para a apresentação de alegações restritas à questão da constitucionalidade da norma extraída do artigo 292º do Código Penal, enquanto crime de perigo abstracto.

  4. Na sequência deste despacho, o recorrente viria a produzir as seguintes alegações:

    “1.º O artigo 292. ° (Condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas) CP 2007, entendido enquanto “crime de perigo abstracto” e não como “crime de perigo abstracto-concreto”, é materialmente inconstitucional por violação do princípio da culpa (artigos 1º, 2°, 18°, n.º 2, 25°, 26° e 27° CRP 1976 e artigo 40° CP), do princípio da presunção de inocência (artigo 32°, n.º 2 CRP), do princípio da ofensividade, do principio da necessidade ou carência de criminalização “avançada” incompatível com a ideia de Estado de Direito Democrático.

    1. Ao ser configurado como um crime de perigo abstracto, o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, do artigo 292. ° CP 2007, surge-nos como um crime em que o perigo não é elemento do tipo, mas simplesmente motivo da proibição.

      O comportamento seria tipificado no tipo em nome da sua perigosidade típica para um bem jurídico (segurança rodoviária), mas sem que ela necessite de ser comprovada no caso concreto: há como que uma presunção in[i]lidível de perigo e, por isso, a conduta do agente é punida independentemente de ter criado ou não um perigo efectivo para o bem jurídico. O perigo é presumido iuris et iure pela lei, Ora, isto bastaria para confrontar e colidir com o princípio da presunção de inocência, princípio da culpa e, acima de tudo, princípio da proporcionalidade ou necessidade, no sentido de que a tutela penal surge como ultima ratio e somente deve entrar em acção quando disso careça a protecção dos bens jurídicos essenciais à sobrevivência da vida em sociedade.

    2. Os crimes de perigo abstracto, como é o do artigo 292.º CP, ao não permitir a prova de que, em concreto — como foi o caso! — o perigo não se verificou ou o bem jurídico “segurança rodoviária” não foi posto em causa, encurta de forma insuportável a possibilidade de defesa do arguido e contende em alta escala com o princípio da culpa, subjacente à ideia de Estado de Direito Democrático e ao princípio da proporcionalidade em matéria de medidas restritivas da liberdade pessoal (artigos 1º, 2°, 25°, 32°, n.º 2 CRP).

    3. O artigo 292. ° CP 2007 deve ser visto, hoje, como um crime de perigo abstracto-concreto, de tal modo que provando-se que não existiu, de forma absoluta, perigo para o bem jurídico, ou que o agente tomou todas as medidas necessárias para evitar que o bem jurídico fosse colocado em perigo, não deveria ter lugar a punição. E o que ocorre nos presentes autos onde não se fez prova de que o agente fosse, ao conduzir, a colocar, em concreto, de forma absoluta, em causa o bem jurídico “segurança rodoviária”.

    4. Com vista a evitar a inconstitucionalidade do artigo 292.° CP 2007 deve considerar-se que se trata de crime de perigo abstracto-concreto, de tal modo que o perigo abstracto não é só critério interpretativo e de aplicação, mas deve também ser momento referencial da culpa e, por isso, admite a “possibilidade de a perigosidade ser objecto de juízo negativo” (TAIPA DE CARVALHO) ou não ser verificar uma conduta concretamente perigosa (BOCKELMANN). Deve entender-se que não sendo o perigo apto a colocar em causa o bem jurídico subjacente ao artigo 292. ° CP 2007, o agente não deveria ser punido.

    5. Os crimes de perigo abstracto são uma tutela demasiado avançada do bem jurídico que coloca em crise o princípio da legalidade e o princípio da culpa. A tudo isto acresce o facto de que não se está perante um bem jurídico de grande importância, nem o mesmo se pode identificar com um grau de concretude compatível com o princípio da legalidade e a conduta não se encontra descrita de forma precisa e minuciosa, já que se alude à conduta de forma genérica com a indexação de uma culpa in re ipsa, isto é, presumida e agarrada ao volante do que conduz com um grau de alcoolemia superior a 1,2 g/l, sem que tal quantidade possa significar, em termos científicos, uma incapacidade automática para a condução, já que a absorção pelo organismo do álcool varia com a massa corporal, idade, se é com ou fora das refeições entre outros factores».

    6. Num verdadeiro Estado de Direito Democrático, fundado na dignidade da pessoa humana e na protecção mais elevada dos direitos fundamentais (artigos 1º, 2°, 7°, n.º 1, 8°, 9º, alínea b), 13°, 16°, 17°, 18°, n.º 1, 19°, n.º 1, 202°, n.º 1 e 204° CRP 1976), nenhuma norma pode desrespeitar a CRP 1976, que possui seus princípios, e entre os quais, destaca-se o da ofensividade (ou Lesividade para ZAFFARONI e FERRRAJOLI): a conduta praticada pelo agente (guiar veículo a motor embriagado) deve afectar concretamente o bem jurídico tutelado pela norma, e na direcção embriagada, a objectividade jurídica é a segurança rodoviária, portanto, mesmo que tenha ingerido razoável quantidade de bebida alcoólica, se o condutor não afectar efectivamente a segurança rodoviária (bem jurídico), a conduta será atípica, pois, não pode existir crime sem lesão ou perigo concreto de lesão à objectividade jurídica, por força do reconhecido princípio do nullum crimen sine iniuria.

    7. Os critérios da validade para a construção de todos os concretos e específicos tipos legais de crime, aí incluídos os de perigo abstracto, implicam que a protecção de bens jurídicos apenas deva ocorrer face a condutas violadoras de bens jurídicos (-penais) com analógica referência axiológico-constitucional.

    8. A consistência teorética da punibilidade da criminalização das concretas situações de pôr-em-perigo, no caso do perigo surgir como «motivação do legislador» — como é caso no tipo legal de crime do artigo 292. ° CP —, implica, na prática, a inexistência de qualquer «ofensividade» relativamente a um concreto bem jurídico, daí que o apelo aos bens jurídicos-penais da paz jurídica ou da...

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