Acórdão n.º 115/2008, de 01 de Abril de 2008

Acórdáo n. 115/2008

Processo n. 469/07

Acordam na 3ª Secçáo do Tribunal Constitucional

I - Relatório.

1 - No processo de instruçáo criminal n. 30/03, que segue termos no Tribunal judicial da comarca de Vieira de Minho, Rui Manuel Ferreira Carrito e António José Fernandes Pereira foram pronunciados pelo crime de infracçáo das regras de construçáo previsto e punido pelo artigo 277, n. 1, alínea a), do Código Penal.

Em fundamentaçáo do despacho de pronúncia, o juiz de instruçáo

diz, além do mais, o seguinte:

Nos termos do artigo 277 do Código Penal quem no âmbito da sua actividade profissional infringir regras legais, regulamentares ou técnicas que devam ser observadas no planeamento, direcçáo ou execuçáo de construçáo, demoliçáo ou instalaçáo ou na sua modificaçáo, e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, por negligência, é punido com pena de prisáo até cinco anos"

Acrescentando o artigo 285 do Código Penal, que do facto resultar a morte ou ofensa à integridade física grave de outra pessoa, o agente é punido com pena que ao caso caberia, agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo"

Ora sobejamente resultam indícios fortes de que os arguidos, ao procederem ao descalçamento da base do escombro, que ficou sem apoio seguro; ao ignorarem altura da coluna de água sobre o escombro, contra o método aprovado, náo informando do facto a equipa de segurança, nem a equipa que tinha aprovado o projecto; náo voltando a bombear a água que ia acumulando na CES, omitiram regras técnicas básicas criando deste modo perigo para a vida e integridade física de terceiros.

Pelo crime de vêm acusados aludido no artigo 277 do Código Penal, resultam, dos elementos de prova recolhidos na fase de inquérito e que náo foram postos em causa pela instruçáo, indícios seguros e suficientes para se poderem imputar aos arguidos, objectiva e subjectivamente, os elementos típicos de tal crime.

Assim, e nos ternos do artigo 307, n. 1 do Código Processo Penal, porque se verificam os pressupostos de que depende a aplicaçáo aos arguidos de uma pena, pronuncio os arguidos, pelos fundamentos de facto e de direito constantes da douta acusaçáo deduzida pelo Digno Magistrado do Ministério Público, reproduzida nos termos do artigo 207

n. 1 do Código processo Penal - Rui Manuel Ferreira Carrito, casado, engenheiro, nascido aos 25.10.61, natural da freguesia de Santo António dos Olivais, concelho de Coimbra, filho de Manuel José Carrito e de Maria Teresa Peneira, residente na Rua das Quintas, n14, Figueira da Foz e com domicílio profissional no Estaleiro da Venda Nova 11, CPEE, Lugar de Frades, Ruiváes, Inconformados com o assim decidido, os arguidos vieram interpor recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento no disposto na alínea b) do n. 1 do artigo 70 da lei do Tribunal Constitucional, definindo como objecto do recurso a inconstitucionalidade da norma do artigo 277. do Código Penal.

Notificados para completarem o requerimento de interposiçáo de recurso com a indicaçáo, designadamente, da peça processual onde fora suscitada a questáo da inconstitucionalidade, os recorrentes vieram declarar que haviam invocado a inconstitucionalidade da norma do citado artigo 277. do Código Penal nos artigos 484 a 488 do requerimento de abertura de instruçáo.

Estando em causa uma decisáo negativa de inconstitucionalidade, o juiz de instruçáo considerou que o recurso para o Tribunal Constitucional apenas poderia ser admitido após a exaustáo dos meios recursórios normais, pelo que o rejeitou por extemporaneidade. Porém, na sequência de reclamaçáo contra o despacho de náo admissáo do recurso, apresentada nos termos dos artigos 76 e 77 da lei do Tribunal Constitucional e que correu por apenso, foi este ulteriormente admitido com efeito suspensivo e subida imediata nos próprios autos.

Nada tendo obstado ao prosseguimento do recurso, no Tribunal Constitucional, os arguidos apresentaram as suas alegaçóes em que concluem do seguinte modo:

1 - Os ora Recorrentes foram pronunciados pela prática, em co-autoria material, de um crime de infracçáo de regras de construçáo, dano em instalaçóes e perturbaçáo de serviços, agravado pelo resultado,

previsto e punível nos termos das disposiçóes conjugadas constantes dos artigos 277., n. 1, alíneas a) e b), e n. 2, 285. e 144., alínea b), do Código Penal.

2 - O tipo incriminador em causa pressupóe a infracçáo a regras legais, regulamentares ou técnicas.

3 - Do despacho de pronúncia - bem assim como da acusaçáo, que mesmo reproduz - náo consta do enquadramento jurídico -criminal dos factos que constituem o objecto do processo específica referência quaisquer regras legais ou regulamentares.

4 - Pelo que aos Recorrentes apenas se poderá atribuir a infracçáo de regras técnicas, único entendimento possível, dada a manifesta - impossibilidade de subsunçáo de condutas à norma do artigo 277., n. 1, alíneas a) e b), do CP sem o concomitante apelo à infracçáo de regras de qualquer uma das categorias a que acima se aludiu.

5 - Da leitura atenta da acusaçáo/pronúncia, resulta que aos ora Recorrentes se atribui a inobservância da metodologia aprovada para a execuçáo dos trabalhos, o que só poderá ser entendido como uma alusáo à infracçáo de regras técnicas por parte dos ora Recorrentes.

6 - As normas constantes do artigo 277., n. 1, alíneas a) e b), in fine, do CP foram, assim, interpretadas e aplicadas com o sentido interpretativo segundo o qual a remissáo naquelas normas operada para o domínio das regras técnicas é susceptível de abranger métodos ou procedimentos ad hoc, concebidos e destinados à execuçáo de trabalhos concretos e singulares.

7 - As mencionadas normas sáo normas penais em branco, porquanto remetem, na sua previsáo, para fonte náo normativa, in casu, para regras técnicas.

8 - Estas regras sáo, entáo, chamadas a integrar a previsáo da norma penal, ao abrigo de uma remissáo dinâmica operada por esta norma para tais regras.

9 - Esta remissáo tem sido posta em causa pela Doutrina, nomeadamente por Bernd Shünemann, que nela vê uma inadmissível violaçáo dos princípios do Estado de Direito, traduzida numa verdadeira atribuiçáo de competência legislativa a círculos ou meios náo estaduais e, ainda, irreconciliável com o princípio fundamental dA publicaçáo das leis.

10 - Por outro lado, a mencionado remissáo é incompatível com o princípio nullum crimen, nulla poena sine lege stricta, consagrado no artigo 29., n.os 1 e 3, da CRP.

11 - O Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar -se sobre a conformidade das normas penais em branco com a Constituiçáo.

12 - Fê -lo nos Acórdáos n. 427/95, de 6 de Julho, e n. 534/98, de 7 de Agosto, os quais apreciaram, porém, normas legais que remetiam para normas regulamentares, o que náo sucede no caso em apreço nestes autos.

13 - No Acórdáo n. 427/95, de 6 de Julho, este Venerando Tribunal Constitucional elegeu como ratio decidendi o critério da concretizaçáo técnica, informativa e náo inovadora, segundo o qual a norma em branco conteria todo o conteúdo da incriminaçáo - o desvalor da acçáo proibida, o desvalor do resultado lesivo e a identificaçáo do bem jurídico protegido - náo deixando "[...] a descoberto qualquer elemento essencial para a compreensáo da conduta proibida ou para o controlo democrático da incriminaçáo".

14 - Já o Acórdáo n. 534/98, de 7 de Agosto, assenta no que pode denominar -se o critério do valor probatório da remissáo: a norma complementar - infralegal - é entendida como encerrando um (mero) juízo técnico análogo ao da prova pericial.

15 - A jurisprudência constante destes dois Doutos Acórdáos náo pode colher no caso ora sob recurso.

16 - Com efeito, o desvalor da acçáo típica no caso sub judice só logrará alcançar -se através da integraçáo da norma penal (em branco) pela regra técnica infringida - é o que decorre do teor literal quer da alínea a) quer da alínea b), in fine, do n. 1 do preceito legal em referência.

17 - Esta consideraçáo, à luz do critério de soluçáo acolhido no Acórdáo n. 427/95, de 6 de Julho, só pode conduzir à conclusáo de que, no caso vertente, a regra técnica complementar da norma penal se reveste de natureza inovadora, interferindo materialmente na delimitaçáo da conduta punível.

18 - Isso implica, consequentemente, que as normas constantes do artigo 277, n. 1, alíneas a) e b), in fine do CP, no segmento em que remetem a sua integraçáo para as regras técnicas, violam o princípio da legalidade e princípio da reserva de lei formal, consagrados, respectivamente, nos artigos 29, n. 1, e 165., n. 1, alínea c), ambos da CRP.19 - Também o critério do valor probatório da remissáo, subjacente ao juízo de constitucionalidade do Acórdáo n. 534/98, de 7 de Agosto, é inaplicável neste caso.

20 - Em primeiro lugar, inexiste preceito legal equivalente ao do artigo 71., n. 3, do Decreto -Lei n. 15/93, de 22 de Janeiro, expressamente invocado naquela decisáo.

21 - Em segundo lugar, náo se vê como, à luz da estrutura típica das previsóes constantes do artigo 277., n. 1, alíneas a) e b), in fine, do CP, possa entender -se o reenvio a que ali se procede para as regras técnicas como tendo um alcance de mera regra de valoraçáo de prova, com o sentido de uma prova pericial antecipada.

22 - Efectivamente, o reenvio tem necessariamente que operar em momento lógica e ontologicamente prévio ao da valoraçáo da prova, momento esse que é o do recorte da factualidade típica. O que redunda no que atrás se deixou afirmado: a regra técnica complementar da norma penal em branco - a regra técnica infringida interfere materialmente na delimitaçáo do ilícito típico, matéria reservada ao império da lei formal.

23 - Dever -se -á ainda sujeitar as normas constantes do artigo 277., n. 1, alíneas a) e b), in fine, do CP a um segundo grau de apreciaçáo de constitucionalidade.

24 - Os trabalhos a cuja execuçáo se procedia quando ocorreu o acidente que deu origem aos autos -crime...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT