Acórdão n.º 229/94, de 23 de Abril de 1994

Acórdão n.° 229/94 - Processo n.° 174/92 Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional: I - Relatório 1 - O Procurador-Geral da República veio, ao abrigo do disposto no artigo 281.°, n.° 1, alínea a), e n.° 2, alínea e), da Constituição da República Portuguesa, requerer a este Tribunal que aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas do capítulo IV dos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (ou seja: dos seus artigos 25.° a 31.°) e, bem assim, do artigo 20.° do Regulamento do Departamento de Jogos (anexo II aos ditos Estatutos) - Estatutos e Regulamento aprovados pelo artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 322/91, de 26 de Agosto.

O requerente, para fundamentar o pedido, alegou, em síntese, o seguinte: a) As normas dos artigos 25.° a 31.° dos Estatutos e, bem assim, a do artigo 20.° do Regulamento do Departamento de Jogos contêm 'o regime jurídico-funcional dos trabalhadores' da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e esse regime é 'claramente inovador'; de facto, diz b) Até à publicação dos ditos Estatutos, 'o regime do pessoal da Misericórdia de Lisboa estava essencialmente moldado segundo um regime de direito público' e, nos Estatutos, ficou 'estruturado com base na disciplina do contrato individual de trabalho'; c) 'Os preceitos citados constituem inquestionavelmente 'legislação do trabalho', na medida em que alteram radicalmente o regime profissional até então vigente para os trabalhadores da Misericórdia de Lisboa, dispondo ainda sobre aspectos essenciais da relação jurídico-laboral, como sejam a fixação das remunerações e o estabelecimento de horários de trabalho'; d) Por isso, devia 'ter sido facultada às associações sindicais representativas dos trabalhadores interessados a possibilidade de participarem na sua elaboração, o que não se verificou'; e) Em consequência, as normas em causa (ou seja: as dos artigos 25.° a 31.° dos Estatutos e a do artigo 20.° do Regulamento) 'são formalmente inconstitucionais, por violação da alínea a) do artigo 56.° da Constituição'; f) 'Acresce que o artigo 25.° dos Estatutos não se limita a prescrever a aplicação pura e simples do regime geral do contrato individual de trabalho, estabelecendo a possibilidade de serem introduzidas certas 'adaptações''; g) Ora, ao abrigo da possibilidade aberta pelo dito artigo 25.°, o artigo 30.° dos Estatutos e o artigo 20.° do Regulamento introduzem 'adaptações' ao regime geral do contrato individual de trabalho que, para os trabalhadores da Misericórdia de Lisboa que optarem por esse regime jurídico, vai implicar 'que pontos essenciais de uma relação laboral, moldada segundo o direito privado, sejam definidos por acto unilateral da entidade patronal, em vez de o serem através do instrumento resultante dos processos de contratação colectiva'.

É o que sucede com as remunerações dos trabalhadores em regime de contrato individual de trabalho e com as remunerações complementares devidas pela não sujeição a horário determinado, que são fixadas (e revistas) pela mesa da Misericórdia (artigo 30.°, n.os 1 e 2, dos Estatutos), e, bem assim, com os horários de trabalho a praticar no Departamento de Jogos e suas modalidades, que - segundo o requerente supõe - são fixados pela direcção do mesmo, tendo em conta as especiais características e conveniências dos serviços (artigo 20.° do Regulamento citado); h) Essas normas (as do artigo 30.° dos Estatutos e do artigo 20.° do Regulamento) denegam, assim, 'aos trabalhadores em regime de contrato individual de trabalho e respectivas associações sindicais o direito de contratação colectiva, em pontos essenciais da relação laboral'; i) O Decreto-Lei n.° 322/91 - que aprovou os Estatutos e o Regulamento que contêm essas normas - configura-se, por isso, 'como 'lei restritiva' do direito conferido pelo n.° 3 do artigo 56.° da Constituição, ao mesmo tempo que vem consagrar desvios ou limitações sensíveis quanto ao âmbito de vigência do referido direito de contratação colectiva, tal como este é regulado pelo diploma que, em termos genéricos, desenvolve e concretiza o disposto no n.° 4 do artigo 56.° da Constituição' (no caso, o Decreto-Lei n.° 519-C1/79, de 29 de Dezembro, alterado pelo Decreto-Lei n.° 87/89, de 23 de Março).

De facto, os ditos artigos (o 30.° dos Estatutos e o 20.° do Regulamento) 'excluem um círculo perfeitamente determinável de trabalhadores (os que hajam optado nos termos e prazos referidos no artigo 26.° dos Estatutos da Misericórdia) ao serviço de certa entidade patronal (a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa) do âmbito de aplicação do diploma que, em consonância com o disposto nos n.os 3 e 4 do artigo 56.° da Constituição, conforma o direito de contratação colectiva'; j) Os referidos artigos 30.° dos Estatutos e 20.° do Regulamento violam, pois, o n.° 3 do artigo 18.° da Constituição, que impõe que 'as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias' revistam 'carácter geral e abstracto'; l) Mas, 'mesmo que, porventura, assim se não entenda, as referidas normas não podem deixar de se configurar como organicamente inconstitucionais, por violação do preceituado na alínea b) do n.° 1 do artigo 168.°, conjugado com os artigos 18.°, n.° 2, e 56.°, n.° 3, da Constituição', pois as restrições dos direitos, liberdades e garantias devem 'necessariamente constar de acto legislativo com a forma de lei da Assembleia da República ou de decreto-lei autorizado pelo Governo', e 'o Decreto-Lei n.° 322/91 surge editado nos termos da alínea a) do artigo 201.° da Constituição'; 2 - O Primeiro-Ministro, notificado para se pronunciar, querendo, sobre o pedido, veio sustentar 'a plena conformidade constitucional dos preceitos' legais que constituem objecto do pedido.

Alegou ele, em síntese: a) Com o Decreto-Lei n.° 322/91, de 26 de Agosto, o que se pretendeu (conforme se lê no respectivo preâmbulo) foi reorganizar a actividade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, através da aprovação de 'uns estatutos que, definindo a sua identidade, a reconduzam à pureza original, ainda que permitam actuar sem as limitações que, em crescendo, foram afectando a sua acção'; b) 'Com esse escopo' (e entre outras diversas alterações), nos novos Estatutos 'subordinou-se a actividade dos trabalhadores da Santa Casa da Misericórdia a um diverso paradigma jus-laboral, instituindo como regime-regra o aplicável ao contrato individual de trabalho - sem, todavia, afectar a situação dos que eram já trabalhadores desta instituição. A estes foi dada a possibilidade de opção por um dos dois regimes, sem dar azo a qualquer ofensa ou perigo de lesão de quaisquer posições jurídicas adquiridas.' Estamos, assim, 'perante um procedimento não inovador, no que concerne à definição das regras aplicáveis ao contrato de trabalho'.

'Consequência natural desta opção político-organizativa é a de permitir que uma pessoa colectiva de direito público fique, no que concerne à gestão do seu pessoal, subordinada a regras de direito privado'; c) Mas daí a necessidade de 'adaptação dos critérios e regras da pessoa colectiva pública - isto é, cuja natureza implica a intervenção dos princípios da legalidade e da competência - ao funcionamento de um regime criado para ser aplicado a organizações de natureza muito diversa: empresas'.

É isto que explica que, no artigo 25.° dos Estatutos, se disponha que a aplicação do contrato individual de trabalho ao pessoal da Misericórdia de Lisboa se fará com as 'adaptações decorrentes' dos mesmos Estatutos; d) 'Tais adaptações não se reportam', porém, 'à disciplina substancial da relação de trabalho, mas sim, conforme transparece do preâmbulo, à necessidade de salvaguardar os 'direitos e regalias que as acções e omissões legislativas do passado integraram na esfera jurídica dos seus trabalhadores com vínculo definitivo, considerando-se como tal os trabalhadores com a situação jurídico-laboral regularizada e sem termo'.' 'A primeira razão de ser destas adaptações radica, obviamente, na instituição da faculdade de opção pela manutenção de um regime de emprego público'; e) Daí que 'se afigura aberrante pretender que a modificação do enquadramento jurídico-laboral dos trabalhadores da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, produto de uma opção político-organizativa, de um acto de gestão, seja susceptível de recondução ao conceito de 'legislação do trabalho''.

De facto, 'o Estado, ao criar uma pessoa colectiva de direito público não integrada na administração central do Estado, é livre de determinar qual o regime laboral aplicável, se o do direito público, se o do direito privado.

Obviamente, quando tal aconteça, não se tratará de 'legislação do trabalho', antes de um novo procedimento de organização dos serviços.' 'Ora, podendo fazê-lo ab initio, é-lhe, do mesmo modo, permitido que o faça noutro qualquer momento, desde que não ocorra lesão de quaisquer posições jurídicas suficientemente subjectivadas (o que não acontece no presente diploma, no qual se confere aos actuais trabalhadores uma faculdade de opção)'; f) Os preceitos legais sub iudicio não assumem, pois, a natureza de legislação do trabalho, já que neles 'não ocorre a conformação da esfera jurídica dos trabalhadores, apenas se opta por um dos regimes possíveis, em sede de organização da pessoa colectiva em causa'.

'Quer dizer, os preceitos em causa não assumem a natureza de 'legislação do trabalho', como não a possuem os actos internos de uma qualquer empresa nos quais se institua o regime de trabalho por turnos ou se defina o esquema de organização de férias'; g) 'Este simile adquire, aliás, reforçada pertinência no caso em apreço, relativamente à imputação de que se visariam estabelecer adaptações substanciais à lei do trabalho.' A fixação do horário de trabalho cabe, na verdade, à entidade patronal, integrando-se no seu poder de direcção. 'Daí que o lugar próprio do horário de trabalho seja o regulamento de empresa.' 'Parece evidente que os Estatutos da Santa Casa da Misericórdia funcionam, na parte...

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