Acórdão nº 644/98 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Novembro de 1998

Magistrado ResponsávelCons. Bravo Serra
Data da Resolução17 de Novembro de 1998
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 644/98

Processo nº 43/97.

  1. Secção.

    Relator: Conselheiro Bravo Serra

    I

    1. Após ter transitado em julgado o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 30 de Junho de 1994, o qual, por entre o mais, veio a condenar o arguido A. na pena de quatro anos e seis meses de prisão pela autoria de um crime continuado de furto qualificado, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 297º, nº 1, alínea a), 30º, nº 2, e 78º, nº 5, todos do Código Penal, e de um crime de burla agravada, previsto e punível pelas combinadas disposições dos artigos 313º e 314º, nº 1, alínea c), 30º, nº 2, e 78º, nº 5, estes também daquele corpo de leis, fez o mesmo arguido juntar aos autos requerimento por intermédio do qual, em síntese, solicitou que - ponderando que as alterações introduzidas no Código Penal pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, vieram a estabelecer molduras penais menos gravosas para os tipos de ilícito pelos quais ele foi condenado - viesse a ser efectuado julgamento "com vista a decidir quais as disposições penais mais favoráveis ao arguido, se as vigentes no momento da prática dos factos puniveis ou as posteriores, as introduzidas pelo Decreto-Lei nº 48/95 de 15/3, e a decidir em conformidade".

    O assim peticionado veio a ser indeferido por despacho de 12 de Julho de 1996, prolatado pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, essencialmente com base no argumento segundo o qual, estando já transitado o acórdão proferido por aquele Supremo, não tinha aplicação o disposto no nº 4 do artº 2º do Código Penal, sendo certo ainda, por um lado, que, aquando da data do proferimento do acórdão do mesmo Alto Tribunal, ainda não se encontravam em vigor as alterações introduzidas naquele Código pelo D.L. nº 48/95 e, por outro, que a "ressalva da parte final do nº 4 do artº 2º CP, se confrontada com o disposto no artº 666º, nº 1, do Cod. Proc. Civil, tem de ser entendida como com ela não entrando em colisão".

    Desse despacho reclamou o arguido para a conferência vindo, de entre o mais, a sustentar que a norma constante do nº 4 do artº 2º do Código Penal é materialmente inconstitucional na parte em que ressalva o trânsito em julgado, visto ofender o nº 4 do artigo 29º da Lei Fundamental, outrossim ofendendo esta última disposição a norma constante do nº 1 do artº 666º do Código de Processo Civil "se interpretada no sentido de o trânsito em julgado da decisão ter de ser aferido ao momento da prolação do acordão e de que a partir daí o poder jurisdicional do juiz se esgota".

    2. O aludido Supremo Tribunal, por acórdão de 14 de Novembro de 1996, manteve o despacho impugnado, em face das razões nele aduzidas, acrescentando que "[q]uando o artº 29º, nº 4 da CRP dispõe que se aplicam «retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido» de forma alguma pretende pôr em causa o valor do caso julgado e do esgotamento do poder jurisdicional do juiz (artºs 666º, nº 1 e 671º, nº 1 CPC e 4º CPP)".

    É deste aresto que vem, pelo A., interposto recurso para o Tribunal Constitucional, visando a apreciação da desconformidade com o Diploma Básico de que enfermarão, na sua óptica, as normas do nº 4 do artº 2º do Código Penal - "na interpretação segundo a qual o Supremo Tribunal de Justiça, quando há alteração das leis penais, não tem que, oficiosamente, proceder a novo julgamento para aferir da aplicação ou não da lei nova, mesmo que entretanto tenha transitado em julgado a decisão anterior sem ter havido julgamento para aferir qual a lei concretamente mais favorável", e "na interpretação segundo a qual para julgar qual a lei mais favorável, se a vigente no momento da prática dos factos se a posterior, não é necessário ouvir o Mº Pº e os arguidos, apresentar motivação de recurso e efectuar novo julgamento" - e do nº 1 do artº 666º do Código de Processo Civil - "se interpretada no sentido de o trânsito em julgado da decisão ter de ser aferido ao momento da aplicação da lei, ou seja, ao momento da prolação do acordão e de que a partir daí o poder jurisdicional do juiz se esgota".

    3. Determinada a feitura de alegações, produziram-nas o recorrente e o Ministério Público.

    O primeiro concluiu a peça processual por si apresentada do seguinte modo:-

    "1 - A norma do artº 2º nº 4 do Código Penal, ao limitar a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável aos casos em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença - ou acordão - colide frontalmente com a norma do artº 29º nº 4 da CRP, pelo que é materialmente inconstitucional;

    2 - A norma do artº 29º nº 4 da CRP está inserida no título II da Parte I, Capítulo I, Direitos Liberdades e Garantias, pelo que é aplicável directamente vinculando entidades públicas e privadas, por força da norma do artº 18º nº 1 da CRP;

    3 - A norma do artº 2º nº 4 do Cód. Penal é restritiva de direitos, liberdades e garantias, pelo que viola também a norma do artº 18º nº 3 da CRP, uma vez que diminui a extensão e o alcance do conteúdo essencial da norma do artº 29º nº 4 da CRP, colidindo com o princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, com o princípio da máxima restrição da pena, da igualdade;

    4 - Por força da norma do artº 18º nº 2 da CRP a lei ordinária só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na constituição, pelo que a norma do artº 2º nº 4 do Cód. Penal só poderá ser conforme à constituição se outra norma, ou princípio constitucional, permitir ao legislador ordinário restringir a extensão e alcance da norma do artº 29º nº 4 da CRP;

    5 - O STJ invoca em apoio da sua tese de conformidade constitucional da norma do artº 2º nº 4 do Cód. Penal, o princípio da intangibilidade do caso julgado e o princípio 'ne bis in idem' mas não lhe assiste razão;

    6 - O princípio da intangibilidade do caso julgado não tem consagração constitucional hoje, como também não a tinha na versão originária da CRP/76, no sentido de impedir a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável.

    7 - Mesmo no domínio da versão originária do artº 281º nº 2 da CRP/76, a boa doutrina defendia e a Comissão Constitucional julgou que não estava consagrado constitucionalmente o princípio intangibilidade do caso julgado;

    8 - Após a revisão de 1982, o limite imposto no artº 281º nº 2 da CRP originária desapareceu e o artº 282º nº 3 da CRP veio dispôr que, desde que a norma da lei nova respeite a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social, e for de conteúdo mais favorável ao arguido, não ficam ressalvados os casos julgados;

    9 - Por sua vez o princípio 'ne bis in idem' não pode obstar à aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, porque este princípio, contido na norma do artº 29º nº 5 da CRP, não conflitua nem colide com o do artº 29º nº 4, porquanto é um direito subjectivo fundamental, é uma norma de protecção do indivíduo contra o Estado, uma garantia política, uma segurança jurídico-penal individual face ao 'jus puniendi' do Estado, não proibindo novo julgamento para aplicação da lei penal mais favorável, mas sim que quem tenha sido definitivamente absolvido, torne a ser julgado pela prática do mesmo crime, ou que haja dupla punição pela prática do mesmo crime;

    10 - O princípio do caso julgado cede sempre que são publicadas leis de amnistia, ou que por alteração da lei penal, disciplinar ou de mera ordenação social, deixe de ser crime ou infracção disciplinar ou contraordenacional, um determinado comportamento, havendo necessidade de reformular as penas, ou mesmo nos casos em que há necessidade de efectuar cúmulos jurídicos supervenientes;

    11 - Se no domínio do direito penal, disciplinar ou de mera ordenação social, o caso julgado ou o princípio 'ne bis in idem' fossem intransponíveis para a aplicação da lei penal mais favorável, verificava-se violação do princípio da igualdade e da máxima restrição da pena, consagrados no artº 13º nº 1 e 18º nº 1 da CRP/76, porque aconteceria que individuos que tivessem praticado o mesmo crime, mas fossem julgados com decisões transitadas, uma na vigência da lei velha e outro na vigência da lei nova mas mais favorável, teriam penas diferentes;

    12 - A aplicação retroactiva da lei penal mais favorável não colocará especiais problemas de ordem processual em Portugal, não será o 'descalabro', o 'caos', como alguns querem fazer crer, pois é tudo uma questão de coragem, de vontade política, na medida em que países como o Brasil e a Espanha o fazem;

    13 - De igual forma o facto de a norma do artº 29º nº 4 da CRP conter a palavra 'arguido' e não de 'condenado', a exemplo do que acontece com a norma do artº 282º nº 3 da CRP, não significa que tivessem querido excluir do seu campo de aplicação os casos em que 'hic et nunc' o cidadão já não teria o estatuto de arguido mas sim o de condenado;

    14 - Porque a norma do artº 29º nº 4 da CRP já na versão originária tinha a palavra arguido e a do artº 282 nº 3, desde a revisão constitucional de 1982, no momento, portanto, em que o CPP/29 estava em vigor e não continha tal terminologia, uma vez que a palavra arguido apenas substituiu a de réu - CPP/29 - desde a entrada em vigor do CPP/87, tratando-se pois de argumento meramente formal;

    15 - O STJ sustentou que o trânsito em julgado de uma decisão tem de ser aferido em relação ao momento da aplicação da lei, ou seja, ao momento da prolação do acordão, esgotando-se o poder jurisdicional do juíz a partir daí por força da norma do artº 666º nº 1 do CPC, mas não lhe assiste razão, porque da mesma forma que uma lei de amnistia, v.g., pode conduzir a que o S.T.J., ou outro tribunal, tenha que modificar a sentença ou o acordão, reformulando a pena, ou tenha a necessidade de efectuar cúmulo jurídico, também a superveniência de uma lei penal mais favorável determinará a reformulação da pena, com a consequente alteração da sentença ou do acordão;

    16 - De qualquer das formas, a norma do artº 666º nº 1 do CPC não pode sobrepor-se ou limitar o sentido e a extensão da...

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