Acórdão nº 517/99 de Tribunal Constitucional (Port, 22 de Setembro de 1999

Magistrado ResponsávelCons. Messias Bento
Data da Resolução22 de Setembro de 1999
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 517/99

Processo n.º 61/95

Messias Bento

Acordam no Pleno do Tribunal Constitucional:

  1. Relatório:

    1. O PROVEDOR DE JUSTIÇA vem, ao abrigo do disposto no artigo 281º, n.º 2, alínea d), da Constituição, requerer a este Tribunal a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das seguintes normas:

      (a). a título principal, das normas constantes dos artigos 1º, nºs 1, 2 e 3, e 3º do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, "na parte em que afectam situações jurídicas particulares, constituídas em momento anterior ao do início da vigência do citado acto legislativo, por violação directa dos artigos 2º, 18º, nº 3, 61º, nºs 1 e 2, da CRP (ex vi artigo 17º), bem como, independentemente da aplicação temporal, na parte em que violam o disposto no artigo 243º, nº 1, da CRP";

      (b). e, consequencialmente, de todas as restantes normas do dito decreto-lei, na mesma parte ou medida, "já que lhes escapa qualquer alcance e sentido útil, desprovidas que sejam das normas anteriormente [indicadas]".

      Fundamentou o pedido, dizendo, em síntese, o seguinte:

      (a). O disposto no art. 18º, nº 3, da CRP, em articulação com as normas constitucionais dos arts. 17º e 61º, nºs 1 e 2, no segmento que se reporta à proibição de retroactividade das restrições a direitos, liberdades e garantias, é violado pelas normas contidas nos art. 1º, nºs 1 e 3, e art. 3º do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, na parte em que estas se aplicam às licenças e aprovações emitidas em momento anterior ao do início da vigência do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro.

      (b). O princípio da tutela da confiança na congruência da ordem jurídica, extraído da formulação do art. 2º da CRP, ao submeter o Estado ao direito que ele próprio criou, é violado pelas normas enunciadas na alínea imediatamente precedente, na parte em que estas se aplicam a licenças e aprovações emitidas em momento anterior ao da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro.

      (c). O princípio da limitação da tutela administrativa do Estado sobre as autarquias locais, contido no art. 243º, nº 1, é colidido pelo disposto no art. 1º, nº 2, do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, porquanto do mesmo resulta uma reapreciação do conteúdo de actos válida e eficazmente praticados pelos municípios à luz de um bloco de legalidade supervenientemente estendido.

      (d). As restantes normas do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, padecem de inconstitucionalidade consequente, visto que lhes escapa qualquer alcance e sentido útil, desprovidas que sejam das normas anteriormente impugnadas, na medida em que o forem, ou seja, porque se reconhece a sua validade jurídico-constitucional, em tudo que não colida com os princípios e normas constitucionais supra invocados.

      O Provedor de Justiça, com o seu requerimento, juntou:

      (a). uma cópia de uma Recomendação que, sobre a matéria, dirigiu ao Ministro do Planeamento e da Administração Interna;

      (b). três pareceres jurídicos, da autoria, respectivamente, dos Professores Doutores Diogo Freitas do Amaral, Marcelo Rebelo de Sousa e Jorge Miranda.

      Posteriormente, veio requerer a junção de um outro parecer jurídico, da autoria do Professor Doutor José Manuel Sérvulo Correia.

    2. O PRIMEIRO-MINISTRO, notificado para responder, veio dizer, em síntese, o seguinte:

      (a). Nem as normas dos artigos 1º e 3º nem quaisquer outras do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, violam os artigos 17º, nºs 1 e 2, 18º e 61º da Constituição, pois não comportam in se qualquer vestígio, subtil que seja, de eficácia retroactiva ou mesmo retrospectiva, pelo que não podem ser percebidas como supostamente restringentes de quaisquer direitos;

      (b). Da mesma forma, e pelos mesmos motivos, também os citados dispositivos não ferem em circunstância alguma o princípio da tutela da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito constante do artigo 2º da Constituição, quer porque não se está perante qualquer direito fundamental – uma vez que a jurisprudência desse venerando Tribunal tem uniforme e constantemente perfilhado o entendimento segundo o qual o ius aedificandi não integra o conteúdo do direito de propriedade – quer ainda porque as soluções consignadas por tais normativos estão parametrizadas por critérios de equilíbrio, de proporcionalidade, de necessidade e de boa-fé;

      (c). Também o nº 2 do artigo 1º não viola em momento nenhum o princípio da limitação da tutela administrativa do Estado sobre as autarquias locais, contido no nº 1 do artigo 243º da Constituição, visto que não existe nunca qualquer acto ministerial, posto que meramente administrativo, susceptível de proceder à alteração ou revogação de actos administrativos praticados por órgãos municipais;

      (d). E tudo isto porque as situações que podem ser declaradas, isto é, reconhecidas, como estando caducadas, resultam da superveniente entrada em vigor do Prot com elas incompatível – porque superior – e não de qualquer juízo incidente sobre o teor material ou formal dos actos de aprovação ou licenciamento que fundaram tais situações;

      (e). De resto, e em suma, o despacho ministerial de confirmação, ou não, da compatibilidade mais não é do que uma mera certificação de uma situação que lhe é sempre, e em todos os casos, preexistente, qual seja a de reconhecer, também sempre de forma exclusivamente declarativa e jamais ablativa, se alguma anterior faculdade de construir caducou ou não face – única e exclusivamente – às normas dos Prots que determinam novas formas de uso, ocupação e transformação dos solos.

      Nestes termos, reafirma-se a plena conformidade constitucional das normas constantes dos nºs 1, 2 e 3 do artigo 1º, e do artigo 3º do Decreto-Lei nº 351/93, de 17 de Outubro, que "estabelece o regime da caducidade dos pedidos e dos actos de licenciamento de obras, loteamentos e empreendimentos turísticos",

      devendo ser julgado integralmente improcedente o presente pedido de declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade daquelas normas.

      O Primeiro-Ministro solicitou a junção aos autos de um parecer jurídico da autoria do Dr. Mário Esteves de Oliveira.

    3. Discutido o memorando elaborado nos termos do artigo 63º, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional, e fixada a orientação do Tribunal sobre as questões a resolver, foram os autos distribuídos a um relator.

      Cumpre, agora, decidir.

  2. Fundamentos:

    1. Observações prévias:

      4.1. Convém começar por recordar que o objecto do pedido é constituído pelas normas que se contêm nos artigos 1º, nºs 1, 2 e 3, e 3º do Decreto-Lei nº 351/93, de 7 de Outubro, mas (salvo quanto à do nº 2 do artigo 1º, cuja constitucionalidade é questionada considerando mesmo a sua aplicação para o futuro) tão-só na parte ou na medida em que elas afectam as licenças e aprovações (de loteamento, de obras de urbanização ou de construção) já concedidas à data da sua entrada em vigor. (A declaração de inconstitucionalidade das restantes normas do mencionado decreto-lei, essa – recorda-se – apenas é pedida a título consequencial).

      De recordar é, igualmente, que, tal como se sublinhou no memorando, ao pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, está subjacente, "antes de mais, o entendimento de fundo de que, de harmonia com os princípios gerais de aplicação das leis no tempo (nomeadamente, do artigo 12º, nº 1, do Código Civil), a legalidade das ‘licenças’ e ‘aprovações’ em causa só pode e tem de aferir-se pelas normas urbanísticas – maxime, as dos planos regionais de ordenamento do território (PROT’s) ou a estas relativas – vigentes no momento da sua emissão (dessas licenças ou aprovações): doutro modo, teremos aplicação necessariamente ‘retroactiva’ de tais normas". E acrescentou-se aí: "Por outro lado, mas ainda em consonância com este entendimento, considera o Provedor de Justiça que, muito embora o legislador opere com a noção de ‘caducidade’ dos direitos titulados pelas licenças e aprovações em causa (em consequência da incompatibilidade com PROT posterior), tal figura, no seu sentido próprio (tendo a ver com a extinção de direitos pelo decurso do tempo), não cabe ao caso [...]. Do que se trata é de pôr em causa certos actos de licenciamento ou de aprovação – ressalvada a excepção prevista no nº 1 do artigo 4º do diploma legal em apreço -, com base naquela incompatibilidade [...], ou seja, de prever a ‘revogação’, com essa base, de ‘actos administrativos constitutivos de direitos’, a qual tanto pode assumir a forma de ‘revogação ope legis’ (se os interessados não requererem a confirmação de compatibilidade), como de ‘revogação administrativa’ (se, requerida a confirmação, ela vier a ser recusada)".

      Lembra-se também que o Primeiro-Ministro, na sua resposta, contestou um tal entendimento de fundo; tal como se sintetizou no memorando, ele sustentou que "as normas dos PROT’s, enquanto ‘leis de ordem pública’ e também enquanto normas que, como se diz no artigo 12º, nº 2, do Código Civil, dispõem sobre o conteúdo de situações jurídicas abstraindo dos factos que lhes deram origem [...], são ‘de aplicação imediata’, atingindo, por isso, as situações anteriormente constituídas, com fundamento em actos de licenciamento praticados antes da sua entrada em vigor. No Decreto-Lei nº 351/93 não está, pois, em causa – diz-se – a ‘validade’ destes ’actos’ ou a sua ‘revogação’: está só o reconhecimento da consequência da ‘caducidade’ – pois que é ainda, efectivamente, de uma modalidade deste instituto que se trata – das ‘situações jurídicas’ criadas com base neles, em consequência da sua incompatibilidade com as normas de um PROT subsequente [...]". E o memorando continua:

      "Nesta conformidade – continua-se na resposta do Primeiro-Ministro – o objectivo do Decreto-Lei nº 351/93 é, afinal, o de facultar aos interessados a possibilidade de obterem a confirmação de que as situações jurídicas entretanto constituídas não caducaram; e, para além disso, o de, através do mecanismo do nº 4 do artigo 1º, e da presunção ou ‘ficção’ de compatibilidade que aí se...

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