Acórdão nº 255/02 de Tribunal Constitucional (Port, 12 de Junho de 2002

Magistrado ResponsávelCons. Guilherme da Fonseca
Data da Resolução12 de Junho de 2002
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 255/02

Processo nº 646/96

Proc. n.º 624/99 (incorporado)

Plenário

Relator: Cons. Guilherme da Fonseca

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:

I

Objecto dos pedidos

  1. O Procurador-Geral da República, invocando o "uso da faculdade que lhe é conferida pelo artigo 281º, nº 1, alínea a) e nº 2, alínea e), da Constituição da República Portuguesa", requereu a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do nº 4 do artigo 8º do Decreto-Lei n.º 276/93, de 10 de Agosto, "que veio regular o exercício da actividade da segurança privada", aditada pelo artigo único do Decreto-Lei nº 138/94, de 23 de Maio, que alterou aquele diploma (pedido constante destes autos com o nº 646/96).

    A norma em causa dispunha o seguinte:

    "Ao pessoal de apoio técnico e de vigilância é sempre exigível a cidadania portuguesa".

  2. O citado Decreto-Lei n.º 276/93 viria a ser expressamente revogado pelo artigo 37º do Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho, diploma que procedeu a nova regulamentação do exercício da actividade de segurança privada. E, na sequência da publicação deste decreto-lei, o Provedor de Justiça, invocando o "uso da sua competência prevista no artigo 281º, nº 2, alínea d), da Constituição da República Portuguesa", requereu a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do seu artigo 7º, n.º 1, alíneas a) a h), e n.º 2, alíneas a) e b), e do seu artigo 12º, nºs 1 e 2 (pedido que deu origem ao Processo nº 624/99, que foi mandado incorporar nestes autos, por despacho do Presidente do Tribunal Constitucional "ao abrigo do disposto no artigo 64º da Lei do Tribunal Constitucional").

    Tais normas estabelecem o seguinte:

    "Artigo 7º

    Requisitos

    1 – Os administradores e gerentes de entidades que desenvolvam a actividade de segurança privada, os responsáveis pelos serviços de autoprotecção e o pessoal de vigilância e de acompanhamento, defesa e protecção de pessoas devem preencher cumulativamente os seguintes requisitos:

    1. ser cidadão português, de um Estado membro da União Europeia ou do espaço económico europeu, ou, em condições de reciprocidade, de país de língua oficial portuguesa;

    2. Possuir a escolaridade mínima obrigatória;

    3. Possuir plena capacidade civil;

    4. Não ter sido condenado, com sentença transitada em julgado, pela prática de crime doloso;

    5. Não exercer, a qualquer título, cargo ou função na administração central, regional ou local, bem como nos órgãos de soberania;

    6. Não exercer a actividade de fabricante ou comerciante de armas e munições, engenhos ou substâncias explosivas;

    7. Não ter sido membro dos serviços que integram o sistema de informação da República nos cinco anos precedentes;

    8. Não se encontrar na situação de efectividade de serviço, pré-aposentação ou reserva de qualquer força militar ou força ou serviço de segurança.

      2 – São requisitos específicos de admissão do pessoal de vigilância e de acompanhamento, defesa e protecção de pessoas:

    9. Possuir, no momento da admissão, a robustez física e o perfil psicológico necessários para o exercício das funções, comprovados por ficha de aptidão, acompanhada de exame psicológico obrigatório, emitida por médico de trabalho, o qual deverá ser identificado pelo nome clínico e cédula profissional, nos termos do Decreto-Lei n.º 26/94, de 1 de Fevereiro, e da Lei n.º 7/95, de 29 de Março;

    10. Ser aprovado em provas de conhecimentos e capacidade física de conteúdo programático e duração a fixar por portaria do Ministério da Administração Interna, após curso de formação inicial reconhecido nos termos do n.º 2 do artigo 8.º

      3 – [...]

      Artigo 12º

      Meios de vigilância electrónica, de detecção de armas e outros objectos

      1 – As entidades que prestem serviços de segurança privada previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 2º podem utilizar equipamentos electrónicos de vigilância e controlo;

      2 – As gravações de imagem e de som feitas por sociedades de segurança privada ou serviços de autoprotecção, no exercício da sua actividade, através de equipamentos electrónicos de vigilância visam exclusivamente a protecção de pessoas e bens, devendo ser destruídas no prazo de 30 dias, só podendo ser utilizadas nos termos da lei penal.

      3 –[...]"

      II

      Fundamentos dos pedidos

  3. O pedido do Procurador-Geral da República

    O pedido referente ao nº 4 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 276/93 (introduzido pelo Decreto-Lei nº 138/94) assenta, em síntese, na seguinte fundamentação:

    - o artigo 15º, nº 1, da Constituição (doravante CRP) estabelece o princípio da igualdade de direitos e deveres entre cidadãos nacionais e estrangeiros

    - o nº 2 do mesmo artigo ressalva importantes restrições àquele princípio da igualdade de direitos

    o direitos políticos

    o exercício de funções públicas de carácter não predominantemente técnico

    o direitos e deveres reservados exclusivamente a cidadãos portugueses pela CRP e pela lei

    - no caso vertente, é indubitável que se não trata de direitos políticos, nem do exercício de funções públicas, nem de direitos reservados a portugueses pela CRP

    - a lei não é livre no estabelecimento de excepções ao princípio da equiparação entre nacionais e estrangeiros, devendo essas excepções ser justificadas e constar sempre da lei formal da Assembleia da República, por constituírem matéria de direitos, liberdades e garantias ("A reserva de competência legislativa da Assembleia da República vale não só para as restrições (artigo 18º, nºs 2 e 3) mas também para toda a intervenção legislativa no âmbito dos direitos, liberdades e garantias" – é como se expressa o requerente)

    - quer o Decreto-Lei nº 276/93, quer o Decreto-Lei nº 138/94, foram editados pelo governo sem se encontrar munido de autorização legislativa, pelo que a norma questionada é organicamente inconstitucional

    - tal norma é ainda materialmente inconstitucional por constituir uma restrição desproporcionada e sem fundamento razoável à liberdade de escolha de profissão, garantida no nº 1 do artigo 47º da CPR

    E termina como se segue o requerimento do Procurador-Geral da República:

    "Assim, tal restrição, com a amplitude que oferece, ofende o principio da proporcionalidade, não assentando em desigualdades reais entre as pessoas. Não estão aqui em causa pressupostos subjectivos relevantes, como seria, porventura, o caso da qualificação pessoal, da capacidade, das habilitações ou, até, do treino anteriormente adquirido. Com efeito, não se vê, à partida, que a nacionalidade seja razão ou critério de exclusão dos candidatos, ou dos profissionais seleccionados, relativamente à escolha ou ao exercício daquelas actividades. Nessa medida, não se julga que tal restrição seja imposta pelo interesse colectivo ou que seja inerente à sua própria capacidade".

  4. O pedido do Provedor de Justiça

    Por seu turno, o Provedor de Justiça fundamentou, em síntese, o seu pedido referente a normas do Decreto-Lei nº 231/98, editado "pelo Governo ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artº 198º da Constituição, ou seja, no âmbito do exercício da sua competência legislativa em matéria não reservada à Assembleia da República", pela forma que seguidamente se expõe:

    2.1. – O artigo 7º, nº 1, alínea d)

    - a norma contida na alínea d) do nº 1 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 231/98 estabelece que as pessoas mencionadas no corpo desse artigo não podem ter sido condenadas, com sentença transitada em julgado, pela prática de crime doloso

    - o dispositivo em apreço viola frontalmente a regra inscrita no artigo 30º, nº 4, da Lei Fundamental, segundo a qual "nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos"

    - ora, o que o diploma em análise faz é precisamente estipular em sentido contrário à CRP, estabelecendo automaticamente uma pena acessória à pena resultante da condenação por decisão judicial, atingindo desta feita o gozo de um direito fundamental, qual seja a liberdade de profissão

    - será porventura razoável que a Administração, habilitada pela lei, pondere no caso concreto a idoneidade moral e cívica de cada candidato que pretende exercer funções no âmbito da actividade de segurança privada, mas não é de todo admissível a previsão mecânica que a lei faz no normativo em foco, desencadeando os efeitos precisamente contrários aos que a Constituição pretende salvaguardar com o teor do nº 4 do seu artigo 30º

    - por outro lado, "ao constituir uma restrição ao exercício da liberdade de acesso a profissão", a norma em causa é organicamente inconstitucional por ser atinente a direitos, liberdades e garantias

    2.2. – O artigo 7º, nº 1, alínea a...

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