Acórdão nº 180/22 de Tribunal Constitucional (Port, 16 de Março de 2022

Magistrado ResponsávelCons. António José da Ascensão Ramos
Data da Resolução16 de Março de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 180/2022

Processo nº 227/2022

Plenário

Relator: Conselheiro António José da Ascensão Ramos

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I - Relatório

1. O Representante da República para a Região Autónoma dos Açores requereu, ao abrigo do disposto no artigo 278.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, e dos artigos 57.º e seguintes da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por LTC), ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva, e a consequente pronúncia pela inconstitucionalidade, das normas constantes das alíneas b) e f) do n.º 2 do artigo 4.º e do artigo 13.º do Decreto n.º 1/2022 da Assembleia Legislativa, da Região Autónoma dos Açores, que estabelece o Regime Jurídico da Atividade de Transporte Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados a Partir de Plataforma Eletrónica na Região Autónoma dos Açores (TVDERAA), aprovado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores em 11 de janeiro de 2022 e recebido, no seu Gabinete, no dia 11 de fevereiro de 2022.

2. Parâmetros da constitucionalidade invocados

O requerente alega que as normas objeto do pedido violam o artigo 47.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa que consagra a liberdade de escolha de profissão (direito, liberdade e garantia) - ao estabelecerem inovatoriamente determinados requisitos para o acesso à profissão de motorista de TVDE - e o artigo 61.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, que consagra a liberdade de iniciativa económica privada (“direito económico (…) e direito de natureza análoga a direito, liberdade e garantia, por força do artigo 17.º da Lei Fundamental.”) - ao estabelecer um regime de contingentação do número de averbamentos ou licenças a emitir pelo serviço público competente - e consequentemente tais normas são:

i) - Organicamente inconstitucionais, por violação conjugada da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º e da parte final da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição, por manifesta invasão da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República;

ii) - Materialmente inconstitucionais porque violam o princípio da proporcionalidade na restrição dos direitos aludidos, nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

3. O pedido assenta nos seguintes fundamentos

Os fundamentos apresentados no pedido para sustentarem as inconstitucionalidades das normas impugnadas são os seguintes:

II

2. O regime jurídico constante do Decreto ora em apreciação – abreviadamente TVDE – visa disciplinar o exercício na Região Autónoma dos Açores de uma atividade económica e profissional que se encontra regulada, no plano nacional, pela Lei n.º 45/2018, de 10 de agosto, introduzindo aí algumas adaptações – algumas de natureza orgânica e procedimental, mas outras de natureza substantiva – destinadas a acautelar um conjunto de interesses regionais, que são sumariamente identificados no preâmbulo do próprio diploma e dos quais se destaca a sustentabilidade ambiental.

No essencial, o regime regional aprovado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores não só não afasta a aplicação ao território insular da Lei n.º 45/2018, de 10 de agosto – cujo regime, aliás, o n.º 5 do artigo 1.º do Decreto nº 1/2022 declara de aplicação supletiva –, como preserva o modelo regulador básico de exercício da atividade em causa. Isto é, um modelo tripartido de licenciamento:

a) dos operadores de TVDE, que são as empresas detentoras (e que registam) as viaturas utilizadas no exercício da atividade;

b) dos motoristas de TVDE, que conduzem os utilizadores do serviço de transporte do ponto A para o ponto B e se encontram vinculados contratualmente a um dos operadores;

c) das plataformas eletrónicas, que são as empresas titulares ou que exploram as infraestruturas eletrónicas que prestam o serviço de intermediação entre os utilizadores aderentes e os operadores de TVDE.

Antes de mais, do ponto de vista jurídico-constitucional, relevante é assinalar que as regras legais de acesso e exercício da atividade de motorista de TVDE devem ser equacionadas à luz da liberdade de escolha de profissão – direito, liberdade e garantia consagrado no n.º 1 do artigo 47.º da Constituição –, ao passo que o regime legal regulador do acesso e exercício da atividade das operadoras de TVDE e das plataformas eletrónicas constitui precipuamente um problema de liberdade de iniciativa económica privada – direito económico previsto no nº 1 do artigo 61.º da Constituição e direito de natureza análoga a direito, liberdade e garantia, por força do artigo 17.º da Lei Fundamental.

Não se ignora que os dois direitos não são propriamente isentos de relação: com efeito, “a liberdade de empresa (…) apresenta importantes afinidades com a liberdade profissional stricto sensu (…). Nos dois casos, o seu exercício constitui um modo de vida, ou um modo de ganhar a vida, e de realização pessoal e profissional; e, nessa medida, ambas representam a projeção no domínio económico do valor do livre desenvolvimento da personalidade (Evaristo Mendes, in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, 2.ª ed., Lisboa, 2017, p. 856, e também pp. 876-877). Desde logo, uma regulamentação muito restritiva da liberdade de iniciativa económica num determinado setor de atividade – v.g., limitando o acesso ao mercado de novos operadores, mais inovadores ou com um diferente modelo e negócio – redunda, naturalmente, em menores oportunidades de acesso e exercício das profissões correspondentes.

Não obstante, considerando a diversidade dos regimes constitucionais de proteção das duas liberdades em causa, julga-se que uma análise separada das questões tornará mais clara a discrepância entre as novas exigências regulatórias especificamente aduzidas pelo Decreto n.º 1/2022 – no confronto com o regime definido pela Assembleia da República – e os parâmetros orgânicos e materiais decorrentes da Constituição.

III

3. Estabelece o artigo 47.º da Lei Fundamental que “todos têm o direito de escolher livremente a profissão e o género de trabalho, salvas as restrições legais impostas pelo interesse coletivo ou inerentes à sua própria capacidade”.

Neste quadro, o legislador nacional regulou de forma particularmente detalhada e exigente – ao longo dos extensos artigos 10.º e 11.º da Lei n.º 45/2018, de 10 de agosto – as condições de acesso e exercício da profissão de motorista de TVDE. Os eventuais candidatos a motoristas de TVDE que não preencham a totalidade dos requisitos elencados pela lei – ou que, porventura, deixem de os preencher supervenientemente – não podem pura e simplesmente exercer essa profissão. Por outras palavras, terão de encontrar outro modo de vida e de procurar assegurar a sua subsistência num outro setor do mercado de trabalho. Não estão em causa, aqui, apenas normas conformadoras de uma atividade económica, mas sim verdadeiras e próprias restrições legais a um direito, liberdade e garantia – um direito que, sublinhe-se, é crucial para a realização profissional e pessoal dos indivíduos. Em última análise, um direito através do qual cada um projeta o livre desenvolvimento da sua personalidade.

A segunda parte do n.º 1 do artigo 47.º não podia ser mais clara a este respeito: nela se autoriza expressamente o legislador ordinário – em sintonia com a letra do n.º 2 do artigo 18.º, que limita as restrições aos “casos expressamente previstos na Constituição – a restringir o acesso a determinadas profissões quando tal seja necessário para salvaguardar o “interesse coletivo” ou quando as pessoas não tenham “capacidade” – física, intelectual, conhecimentos, habilitações – para desempenhar a profissão a que aspiram.

Não obstante a exaustiva regulação feita pela Assembleia da República – no sentido de acautelar o interesse coletivo (v.g. requisitos relativos à idoneidade dos motoristas) e de evitar o acesso à profissão de motorista de TVDE a pessoas sem a necessária capacidade (v.g., carta de condução adequada e curso de formação rodoviária) –, o artigo 4.º do Decreto n.º 1/2022 vem acrescentar mais dois requisitos – inovadores – que restringem ainda mais o acesso à profissão em causa. Com efeito, para se obter um “certificado regional de motorista de TVDE” é ainda essencial “cumprir o requisito de escolaridade obrigatória” (alínea b)) e ter “domínio da língua portuguesa” (alínea f)) – domínio que, por princípio, abrange compreensão e expressão oral e compreensão e expressão escrita.

Consequentemente, estas duas alíneas do n.º 2 do artigo 4.º são organicamente inconstitucionais, por violação conjugada da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º e da parte final da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição, por manifesta invasão da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República. Ainda muito recentemente, aliás, no seu Acórdão n.º 429/2020, o Tribunal Constitucional foi claro, ao afirmar:

“Se o artigo 12.º do Decreto em apreciação proibisse em absoluto os operadores de TVDE de exercer serviços de turismo, isso constituiria uma limitação inovadora ao desempenho daquela atividade, que não encontraria cobertura no regime consagrado na Lei mencionada. Essa limitação traduzir-se-ia numa restrição originária ao direito à livre iniciativa económica privada previsto no artigo 61.º da Constituição, pois, a liberdade de empresa constitui uma dimensão essencial desse direito fundamental, suscetível de ser considerada análoga à categoria dos direitos, liberdades e garantias. De igual forma, a limitação em questão implicaria ainda uma restrição originária à liberdade de escolha de profissão consagrada no artigo 47.º da Constituição, na medida em que impediria um motorista de...

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