Acórdão nº 76/02 de Tribunal Constitucional (Port, 26 de Fevereiro de 2002

Magistrado ResponsávelCons. Sousa Brito
Data da Resolução26 de Fevereiro de 2002
EmissorTribunal Constitucional (Port

Acórdão nº 76/02 Proc. nº 647/98 3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito

Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:

I – Relatório.

  1. Por despacho proferido nos autos de inquérito NUIPC 557/93.OTAALM, da 2ª Secção dos serviços do Ministério Público da Comarca de Almada, foi indeferido o requerimento de constituição de assistente formulado por M... (ora recorrente), viúva do queixoso D... (entretanto falecido) e, consequentemente, foi também indeferida a abertura de instrução por ela requerida. É o seguinte, na parte ora relevante, o teor daquele despacho:

    “M... veio a fls. 41/41 e 244/246 requer a sua constituição como assistente nos presentes autos.

    Veio também a fls. 247/252 requerer a abertura da instrução, considerando haver indícios da prática da arguida C... de crimes de falsificação de documentos (art.s 228º, nº1, al. d) e 233º, nº 1 do Cód. Penal de 1982) e de denegação de justiça (art5. 416º, nº 1).

    (...).

    Do art. 68º, nº 1, al. a) do Cód. Proc. Penal decorre que podem constituir-se assistentes “os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação...”.

    Ofendido em processo penal será assim unicamente a pessoa que, segundo o critério que se retira do tipo preenchido pela conduta criminosa, detém a titularidade do interesse jurídico-penal por aquela violado ou posto em perigo (cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 1984, pág. 505).

    Segue-se, por conseguinte, um conceito “estrito, imediato ou típico” de ofendido, de harmonia, aliás, com a doutrina que já decorria do art. 11º do Cód. Proc. Penal de 1929 e do art. 4º, nº 2 do Dec. Lei nº 35.007.

    Há, deste modo, que indagar qual o interesse ou bem jurídico que efectivamente é visado pela esfera de protecção da norma penal respectiva.

    Ou, analisando as disposições penais acima referidas - art.s 228º, nº1, al. d), 233º, nº 1 e 416º do Cód. Penal de 1982 – fácil é constatar que em todos estes casos estamos perante crimes públicos, natureza que de resto mantém no actual Código de 1995.

    A legitimidade para promover o processo penal pertence, assim, ao Ministério Público, de acordo com o estatuído no art. 48º do CPP.

    Concretizando agora relativamente a cada um dos ilícitos:

    No crime p.p. pelo art. 228º, nº 1, al. d), o bem jurídico protegido é a segurança do tráfico probatório, a verdade intrínseca do documento enquanto tal (...).

    Por seu turno, no crime previsto no art. 233º, nº 1, visa-se proteger a fé pública contra o perigo dos funcionários públicos, nessa qualidade, falsificarem documentos que fazem prova plena (...).

    Por fim, no crime previsto no art. 416º, o interesse protegido é a boa administração da justiça.

    Em suma: em nenhum destes tipos penais relativamente aos quais a requerente se pretende constituir como assistente tem esta, ou melhor dizendo o seu falecido marido, a qualidade de ofendido para efeitos do art. 68º, nº 1, al. a) do CPP.

    Com efeito, nestes tipos criminais estão em causa interesses exclusivamente públicos, pelo que não se pode conceber um ofendido particular no sentido estrito que vigora em matéria especificamente penal.

    Como tal, não se poderá deferir o pedido de constituição de assistente formulado pela requerente e, concumitantemente, também não se poderá aceitar o seu pedido de abertura de instrução (...)”.

  2. Inconformada com esta decisão a requerente recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo, a concluir a sua alegação, formulado as seguintes conclusões:

    “1ª - A participação e o requerimento de abertura de instrução abarcam os crimes de desobediência, de dano e de corrupção, pelo que a 1ª instância cometeu erro de julgamento ao restringir a sua análise jurisdicional apenas aos crimes de viciação/falsificação da paginação dos autos e de denegação de justiça.

    1. - Os crimes invocados são manifestos no caso dos autos por estarem todos documentados.

    2. - Mas o MP ficou inerte perante os referidos crimes, dado o carácter corporativo de que os mesmos se revestem e protegeu a denunciada, na sua qualidade de funcionária pública.

    3. - Assim o MP, neste caso, entrou em férias criminais, não perseguindo as infracções e impedindo a queixosa e o tribunal de reprimir a violação da legalidade democrática.

    4. - Para tanto, o Tribunal apoiou-se num conceito restritivo, redutor e de conveniência corporativa, dos artigos 48º, 68º/1/a e 287º do CPP para não exercer a sua função jurisdicionalizada, o que briga e afronta os artigos 18º e 205º/2 da Lei Fundamental.

    5. - O balanceamento interpretativo de tal norma inconstitucional, neste caso concreto, revela-se arbitrário, desproporcionado e desadequado às circunstâncias concretas das infracções criminais em causa, deixando a queixosa completamente desamparada legal e constitucionalmente.

    6. - O despacho recorrido ofendeu a extensão prática do conceito de ofendido e a consequente atribuição ampla e alargada do direito de a queixosa se constituir assistente, pois a própria sociedade tem interesse, por razões de eficácia, de chamar a denunciante a colaborar no perseguimento dos crimes de desobediência, dano e eventual corrupção por favorecimento indevido.

    7. - Por isso, a restrição técnica do conceito de ofendido, relativamente a este...

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