Acórdão nº 1391/20.2T9BRG.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 02 de Maio de 2023

Magistrado ResponsávelCRUZ BUCHO
Data da Resolução02 de Maio de 2023
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães: I- Relatório Nos autos supra identificados, após notificação do despacho proferido pelo Ministério Público de arquivamento do inquérito, AA, veio requerer a abertura de instrução “e, em consequência, proferido despacho de pronúncia dos Denunciados pelo crime de Branqueamento de Capitais (…)”.

Por despacho de 24-10-2022, proferido pela M.ª juiz de instrução do Juízo de Instrução Criminal ... foi indeferido aquele requerimento de abertura de instrução, “ao abrigo do disposto no art. 287, n. 3, do CPPenal”.

Inconformado com esta decisão, da mesma recorreu o assistente AA, apresentando as seguintes conclusões que se transcrevem 1. Como decorre da narração dos factos constantes das páginas 6 a 17 (itens 1 a 48), supra, o assistente invoca de forma sequencial e abundante os factos praticados pelos arguidos que integram o tipo legal de crime de branqueamento, p. e p. no art.º 368º - A do C. Penal, as circunstâncias de tempo e de lugar, os seus autores e a motivação da sua prática.

2. Estes factos estão inventariados nos artigos 22º, 36º, 37º, 52º, 53º, 54º, 55º, 56º, 57º, 58º, 59º, 60º, 62º, 63º, 79º, 80º, 84º, 85º, 86º, 89º, 90º, 92º, 93º, 96º, 100º, 106º, 109º, 110º, 111º, 112º, 113º, 114º, 115º, 133º, 143º, 146º, 147º, 148º, 149º, 152º, 153º, 154º, 157º, 158º do RAI.

3. Estes factos revestem a natureza de uma acusação, possibilitam a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório, e elaboração da decisão instrutória.

4. Deles resulta o conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias integradoras daquele tipo legal de crime, a livre determinação dos arguidos e as suas vontades de praticar os factos que praticaram com plena consciência do seu desvalor.

5. Os premeditados actos ilícitos culposos societários constituíram actos preparatórios necessários e indispensáveis para os arguidos atingirem os fins a que se propuseram: aquisição de PAC’s (Postos de Abastecimento de Combustíveis) com o dinheiro recebido como contrapartida dos CCE (Contratos de Compra e Venda Exclusiva), dinheiro que fizeram seu e que pertencia à herança e às sociedades que dela faziam parte integrante.

6. Se não se tivesse movido com a intenção de se apropriar das contrapartidas financeiras pagas pela B... e de se apropriar de oportunidades de negócios que constituíram as aquisições dos PAC’s à B..., os arguidos teriam cumprido o dever fundamental que sobre ele impendiam de informar e comunicar aos irmãos as negociações então em curso e teria convocado as assembleias gerais (art.º 5º dos pactos sociais) das sociedades familiares e da holding familiar para lhe darem autorização para negociar e depois para “fechar” os CCE e teriam feito intervir todos os herdeiros tal como sucedeu em 3 de Março de 2003, com a celebração do CCE com a mesma B..., relativo ao PAC de ... (fls 731 a 764) e em 31.12.2004 no CCE com a R... (fls. 1031 a 1042).

7. Os contratos de fls. 731 a 764 e 1031 a 1042, comprovam o dolo intensíssimo dos arguidos.

8. A leitura atenta dos artigos do RAI destacados nas conclusões 1 e 2, supra, permitem concluir que o mesmo obedece aos requisitos exigidos no art.º 287º, n.º 2 do CPP.

9. Os factos imputados aos arguidos são mais do que suficientes para uma vez provados conduzirem à aplicação duma pena.

10.O assistente teve o cuidado e o árduo trabalho de fundamentar a maioria desses factos nos documentos junto ao processo, indicando a numeração das folhas onde podiam ser consultados e examinados.

11.Como se procura demonstrar nas páginas 18 e seguintes das presentes alegações, o RAI contém ainda as razões de direito de discordância relativamente ao despacho de arquivamento do M. P., bem como a indicação dos actos de instrução que o assistente pretende que o Sr. Juiz leve a cabo, em especial as buscas propostas pelo Departamento de Investigação Criminal da Polícia Judiciária, dos meios de prova que não foram considerados no despacho de arquivamento, dos factos que, através de um e outros, se espera provar, tendo no final sido requerida diversa prova.

12.Deste modo, o RAI contém as razões de facto e de direito suficientes para indiciar a prática do tipo legal de crime imputado aos arguidos e fosse admitida a abertura da instrução.

13.Mas ainda que o RAI padecesse das irregularidades apresentadas no despacho recorrido, o que apenas se admite por mera hipótese de raciocínio, sem conceder, sempre a Meritíssima Sr.ª Juiz podia e devia convidar o assistente a corrigi-lo ou a completá-lo.

14.Esta solução decorre expressa e inequivocamente do n.º IV do sumário e dos dizeres do douto Acórdão da Relação do Porto, de 5.5.1993, de que a decisão recorrida utiliza para indeferir o RAI.

15.Tanto mais que a própria decisão recorrida considera que “o RAI apresentado não satisfaz, integralmente, o cumprimento dos requisitos formais …”. Consequentemente, reconhece que em parte os cumpre.

16. Acresce que os factos concretos imputados aos arguidos são extraordinariamente graves, consubstanciam a apropriação de uma quantia da ordem dos vinte milhões de euros, utilizados pelos arguidos em benefício próprio, em desfavor da herança e das sociedades familiares, melhor identificadas nos presentes autos, factos amplamente sustentados em abundante prova documental e nos meios de prova requeridos pelo Departamento de Investigação Criminal da Polícia Judiciária, no final do relatório intercalar de fls. 1523, 1524 e 1526.

17.O despacho recorrido é totalmente insensível à gravidade dos factos imputados aos arguidos e dá mais importância e total prevalência às alegadas razões de forma em detrimento dos factos concretos da vida real, o que é inaceitável e inadmissível em face das finalidades do processo penal.

18.Tal como o despacho de arquivamento o despacho recorrido traduz uma actuação destituída de qualquer preocupação com a realização da justiça e a descoberta da verdade material.

19. O despacho recorrido viola frontalmente o n.º 3 do art.º 287º do CPP, segundo o qual: “3 - O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.” 20.“Na realidade, como pondera Souto de Moura, Jornadas de Direito Processual Penal, 120-121, se o assistente requer a abertura da instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será inexequível, ficando o juiz sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver provados. (…) Cremos que nestes casos o juiz deverá proceder do seguinte modo: Quanto ao assistente notificá-lo-á para que complete o requerimento com os elementos que omitiu e que não devia ter omitido (art.º 287º, n.º 3)” – Cfr. Manuel Lopes Maia Gonçalves in “Código de Processo Penal”, Anotado 1998, Almedina página 541 21. “A insuficiência dos factos, suas consequências e seus autores não integra o conceito de inadmissibilidade legal, a que se refere o n.º 2 do art.º 287º do CPP e por isso a sua apreciação está vedada ao juiz para justificar a recusa da instrução. (Ac. RL de 12 de Julho de 1995; CJ, XX, Tomo 4, 410)” – Cfr. Manuel Lopes Maia Gonçalves in “Código de Processo Penal”, Anotado 1998, Almedina página 543.

22. Se as irregularidades referidas no despacho recorrido relativamente ao RAI não permitissem a sua correcção através de um despacho de convite ao aperfeiçoamento, a norma do n.º 2 do artigo 287º do CPP violaria o artigo 20º da Constituição da República (Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva).

O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado. Para o efeito apresentou as seguintes conclusões que igualmente se transcrevem:

  1. Os factos que no entender do assistente constam do RAI não passam de uma amálgama, sem grande nexo, tal como as alegações que nos ocupam evidenciam, nos seus pontos 1 a 43.

  2. Trata-se de uma descrição fragmentária, de leitura agreste, sem um fio condutor que permita perceber a racionalidade que lhes está subjacente, donde a custo se vão extraindo algumas conclusões.

  3. Mesmo dando de barato que estamos perante uma acusação alternativa, parece evidente a falta dos chamados elementos subjectivos do tipo, designadamente o dolo e o conhecimento das proibições.

  4. Foi, por conseguinte, correcta a rejeição do RAI.

  5. Não reconhecendo essas deficiências do, entende o recorrente que ainda assim deveria haver um convite ao seu aperfeiçoamento; F) Acontece que tal decisão não se encontra prevista na lei processual penal, nem se harmoniza com os princípios constitucionais do processo penal português; G) No Rai, o assistente deve deduzir a chamada “acusação alternativa”, que fixa o objecto do processo, com a mesma exigência de rigor que é aplicável ao despacho de acusação formulado pelo Ministério Público; H) Essa exigência de rigor estende-se à narração dos factos, não apenas em sentido naturalístico, mas também quanto aos factos relativos ao sentido de desvalor da actuação imputada aos arguidos; I) Não constando tal narração do RAI apresentado, a sua rejeição por inadmissibilidade legal da instrução não merece censura; J) Acresce que o RAI enferma de múltiplas insuficiências, para além da apontada pela M.ª JIC, que sempre conduziriam à rejeição.

  6. Assim, do RAI resulta que se entende indiciar-se um crime de branqueamento de capitais, o qual teria por fundamento um ou vários crimes de burla qualificada, um ou vários crimes de falsificação de documento e um ou vários crimes de fraude fiscal, mas não se individualizou cada um desses crimes, nem se percebe se se pretende que os arguidos sejam, a final, pronunciados por esses crimes, se por alguns ou se apenas pelo crime de branqueamento.

  7. Tão pouco se referem quais os arguidos que se pretende ver responsabilizados por que concretos crimes, bem como o grau de participação de cada um e se todos os arguidos comungam no mesmo dolo.

  8. Isto tem a ver com o facto de o RAI entender a instrução como um prolongamento do...

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