Acórdão nº 498/03 de Tribunal Constitucional (Port, 22 de Outubro de 2003

Data22 Outubro 2003
Órgãohttp://vlex.com/desc1/2000_01,Tribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃ0 N.º 498/2003 Processo n.º 317/02 3ª Secção

Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

Acordam, na 3ª Secção

do Tribunal Constitucional:

  1. A.. reclamou a quantia de Esc. 67.056.279$00 em processo de reclamação de créditos apenso aos autos de falência instaurados contra a B., falência decretada por sentença transitada em julgado em 19 de Outubro de 2000.

    Por sentença do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira de 11 de Maio de 2001, constante de fls. 25 e seguintes, foi o crédito acima mencionado considerado verificado, reconhecendo-se que o pagamento de tal crédito se encontra garantido por hipoteca registada a favor da reclamante. Afirmou-se na mesma sentença que os créditos (resultantes de retribuições em atraso e de indemnizações por despedimento) reclamados pelos trabalhadores ?devem prevalecer sobre a referida hipoteca quanto ao produto da venda do bem imóvel, prevalecendo ainda quanto ao produto dos bens móveis?. E considerou-se, por fim, que ?após o pagamento das custas bem como das demais despesas de administração, dar-se-á pagamento aos créditos dos trabalhadores, de seguida ao crédito hipotecário (que goza de garantia unicamente pelo produto da liquidação desse mesmo prédio) e no final, simultânea e rateadamente, a todos os créditos considerados verificados?.

    Assim, decidiu-se ? considerando a sentença abrangido pelo n.º 1 do artigo 12º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, ?qualquer crédito emergente do contrato individual de trabalho, não devendo pois restringir-se a sua aplicabilidade aos créditos provindos de salários em atraso? ?, que se procedesse ao pagamento dos créditos reconhecidos pelo produto dos bens da massa falida da seguinte forma:

    ?1) Pelo produto da liquidação do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o n.º ----------------:

    1. Em primeiro lugar os créditos descritos de 5) a 110), 113) a 148), 153), 155) a 159), 163) e 164) e 166) a 211), com preferência sobre os restantes créditos até ao montante reclamado;

    2. Em segundo lugar, o crédito descrito em 2), no montante de Esc. 67.056.279$00, reclamado por A., e até esse montante;

    3. Em terceiro lugar, os restantes créditos supra-reconhecidos.?

  2. Inconformada, A.. interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto. Este Tribunal, por acórdão de 17 de Janeiro de 2002, de fls. 94 e seguintes, concedeu provimento ao recurso e, em conformidade, graduou, no que respeita ao produto da liquidação do bem imóvel hipotecado, em primeiro lugar, o crédito da recorrente e, em segundo lugar, os créditos dos trabalhadores, mantendo, no mais, a sentença recorrida.

    Na parte que agora releva, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto decidiu o seguinte:

    ?V ? A Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, dispõe, no artº 12º, n.º1, que os créditos emergentes de contrato individual de trabalho gozam de privilégio mobiliário e imobiliário geral, devendo, quanto a este serem graduados antes dos créditos referidos no artigo 748º do Código Civil.

    Por sua vez, o artº 686º, n.º 1, do Código Civil determina que a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiros, com preferência sobre os demais credores que gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.

    VI ? Aquela lei, ao arrepio do artº 753º, n.º 3, criou um privilégio imobiliário geral.

    Vista sob o prisma que aqui nos importa, é manifesta a sua similitude com o artº 11º do DL n.º 103/80, de 9.5, e com o artigo 2º do DL n.º 512/76, de 3.7

    Colocado perante a questão da inconstitucionalidade destes preceitos, na medida em que implicavam a graduação dos créditos antes do crédito garantido por hipoteca ? tendo como referência o bem hipotecado ? o Tribunal Constitucional entendeu que tais normas, enquanto tutelavam essa preferência, eram inconstitucionais por violação do artº 2º da Constituição (Acórdãos de 22.3.2000 e de 5.7.2000, publicados no Diário da República, II Série, de 10.10. 2000 e de 7.11.2000, respectivamente).

    Ponderou aquele Alto Tribunal que as normas em questão conferiam ao privilégio em causa ?a natureza de verdadeiro direito real de garantia munido de sequela sobre todos os imóveis existentes no património da entidade devedora,... com preferência sobre outros direitos reais de garantias (nomeadamente a hipoteca) e à margem do registo?. Ora, perante isto, o credor hipotecário ficaria gravemente lesado na confiança tutelada pelo mencionado artigo 2º, que o registo do seu direito lhe conferia.

    Este raciocínio é válido também para a norma aqui em causa, de sorte que a temos, enquanto interpretada como foi feito na 1ª instância ? e se mácula da devida consideração ao Sr. Juiz a quo ? como materialmente inconstitucional.

    Com isto estamos, aliás, a acolher a orientação do STJ no acórdão de 3 de Abril de 2001 (que, cremos, não foi publicado) em que se discutia precisamente um caso igual ao presente.

    (...)

    IX ? Temos, então, que aplicar o regime do artº 749º, sempre do Código Civil ? O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente.?

  3. O Ministério Público recorreu então para o Tribunal Constitucional deste acórdão do Tribunal da Relação do Porto, ?nos termos dos artigos 280º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, 70º, n.º 1, alínea a), e 72º, n.ºs 1, alínea a), e 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro?. Como se afirma no requerimento de interposição do recurso, o ?acórdão recorrido recusou aplicar a norma do artigo 12º, n.º 1, da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, com o fundamento que tal norma é inconstitucional, porque viola o princípio da confiança consignado no artigo 2º da CRP?.

  4. Admitido o recurso, as partes foram notificadas para alegar.

    O Ministério Público apresentou as suas alegações, tendo concluído da seguinte forma:

    ?1 ? A norma constante do artigo 12º, n.º 1, da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, interpretada em termos de o privilégio imobiliário geral, outorgado aos trabalhadores da entidade declarada falida com vista à garantia dos ?salários em atraso? e indemnizações por despedimento devidas, prevalecer, ao abrigo do disposto no artigo 751º do Código Civil, sobre a hipoteca, mesmo que anteriormente registada, não é materialmente inconstitucional.

    2 ? Na verdade, a restrição à tutela da confiança do credor hipotecário na prioridade, emergente das regras do registo, na satisfação do crédito ? puramente patrimonial ? de tal credor, encontra justificação constitucionalmente adequada na circunstância de o direito dos trabalhadores à remuneração do trabalho prestado e à indemnização por despedimento se configurar como expressão de um direito fundamental, susceptível de legitimar a referida ?compressão? do direito de credor hipotecário.

    3 ? Termos em que deverá proceder o presente recurso.?

    Quanto à recorrida, formulou as seguintes conclusões:

    ?1 ? O crédito da recorrida está garantido por hipoteca constituída por escritura pública de 24/11/1992 e registada em 07/01/1993;

    2 ? Os créditos dos trabalhadores reportam-se a 2000, são no seu grosso referentes a indemnizações por despedimento, apenas 4.815.996$00 respeitando a salários não pagos pontualmente;

    3 ? A hipoteca registada confere ao credor o direito de ser pago pelo valor do imóvel do devedor com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (artigos 686º e 687º do C. Civil);

    4 ? As regras que definem os privilégios creditórios e estabelecem a sua preferência constam do Código Civil, que preceitua que os privilégios imobiliários são sempre especiais, e só estes o legislador do Código Civil teve em conta (artigo 735º, n.º 3, do C. Civil);

    5 ? Só os privilégios imobiliários, que são sempre especiais, prevalecem sobre a hipoteca, mas já não os privilégios gerais (artigos 749º e 751º do C. Civil);

    6 ? O artigo 12º da Lei n.º 17/86 fala num ?privilégio imobiliário geral?, que gradua antes dos créditos referidos no artigo 748º do C. Civil e dos créditos de contribuições devidas à segurança social, mas que não é um privilégio especial;

    7 ? E os privilégios gerais não valem contra terceiros titulares de direitos que recaiam sobre as coisas abrangidas pelo privilégio e oponíveis ao exequente (artigo 749º do C. Civil);

    8 ? Às hipóteses que possam verificar-se de privilégios imobiliários gerais, criadas posteriormente ao Código Civil, aplica-se o regime dos correspondentes privilégios mobiliários (artigo 749º do C. Civil);

    9 ? Por força da hipoteca que garante o crédito da recorrida, esta é terceiro e sendo-o, o privilégio imobiliário ?geral? não vale contra ela (artigo 749º do Código Civil);

    10 ? Os créditos dos trabalhadores não gozam de um privilégio...

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