Acórdão nº 395/03 de Tribunal Constitucional (Port, 22 de Julho de 2003

Magistrado ResponsávelCons. Mário Torres
Data da Resolução22 de Julho de 2003
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 395/2003 Processo n.º 134/03 2.ª Secção

Relator: Cons. Mário Torres

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

  1. Relatório

    O Ministério Público deduziu acusação contra A., por existirem nos autos fortes indícios de que a mesma foi autora de factos susceptíveis de integrarem a prática de um crime de fraude fiscal, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 7.°, 9.°, 12.° e 23.°, n.°s 1, 2, alíneas a), b) e c), 3, alíneas a), e) e f), e 4, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro (doravante designado por RJIFNA), e pelas disposições conjugadas dos artigos 6.°, 7.º, 8.º, 103.°, n.° 1, alíneas a), b) e c), e 104.°, n.°s 1, alíneas d) e e), e 2, da Lei n.° 15/2001, de 5 de Junho,

    A A. requereu a abertura de instrução, alegando a inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei n.º 20-A/90, designadamente do seu artigo 7.°, bem como a inexistência de elementos de prova que permitissem imputar aos seus órgãos a prática do crime por que foi acusada.

    Essas questões foram apreciadas na decisão instrutória nos termos que a seguir se transcrevem:

    ?Suscitaram alguns arguidos a inconstitucionalidade do RJIFNA, invocando que o diploma que o aprovou, o Decreto-Lei n.° 20-A/90, de 15 de Janeiro, foi promulgado já depois de expirado o prazo concedido pela Lei de autorização legislativa para o Governo legislar, bem como pelo facto de ter estendido a punibilidade da ilicitude nele definida às pessoas colectivas. As questões não são novas.

    Vejamos em primeiro lugar a questão da inconstitucionalidade orgânica, por caducidade da autorização legislativa:

    A Assembleia da República concedeu autorização ao Governo para legislar em matéria de infracções fiscais através da Lei n.° 89/89, de 11 de Setembro, fixando o prazo de 90 dias para a utilização desta autorização (artigo 6.°).

    Em 28 de Setembro seria aprovado em Conselho de Ministros o Decreto-Lei n.° 20-A/90, de 15 de Janeiro.

    Para que se considere respeitado o prazo da autorização legislativa, concedida em matéria de reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República, basta, como tem sido considerado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, que ocorra dentro desse prazo a aprovação pelo Conselho de Ministros do decreto-lei emitido no uso dessa autorização legislativa. E a razão fundamental invocada para este entendimento consiste no facto de não constituir a promulgação um acto da competência do Governo, não sendo, pois, de exigir que ela ocorra dentro do prazo concedido ao Governo para legislar em determinada matéria (neste sentido, ver, por todos, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 672/95, in Diário da República, II Série, de 20 de Março de 1996, que se pronunciou precisamente pela conformidade constitucional da aprovação do RJIFNA, e mais recentemente o Acórdão n.° 168/00, do mesmo Tribunal, proferido no processo n.° 16/2000, pela 2.ª Secção, em 22 de Março de 2000).

    O mesmo entendimento tem sido sustentado em diversas outras decisões do Tribunal Constitucional, ainda que proferidas em sede de apreciação da constitucionalidade orgânica de outros diplomas. Com efeito, sobre esta matéria existe já uma reiterada e uniforme jurisprudência do Tribunal Constitucional no sentido de as autorizações legislativas serem tempestivamente utilizadas quando o Governo aprova o diploma delegado antes de expirar o prazo da sua duração, sendo irrelevante que as fases posteriores, consistentes na promulgação, referenda e publicação, venham a ocorrer depois de expirado aquele prazo. Também a doutrina, de modo geral, perfilha este entendimento (vide Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 213/95, in Diário da República, II Série, de 26 de Junho de 1995).

    Em face do exposto, nada mais se me afigura adiantar em sustentação da conformidade constitucional orgânica do RJIFNA, indeferindo-se a invocação da respectiva inconstitucionalidade suscitada pelos arguidos.

    O último acórdão do Tribunal Constitucional acima citado, apreciou também a questão da conformidade constitucional da norma inserta no Decreto-Lei n.° 28/84, de 20 de Janeiro, que prevê a responsabilidade criminal das pessoas colectivas pelas infracções definidas naquele diploma. Pode ler-se no citado acórdão: «Contrariamente ao que, décadas atrás, dispunha de um generalizado beneplácito doutrinal, hoje em dia a responsabilidade criminal das pessoas colectivos é admitida por grande parte dos autores nacionais e estrangeiros, dispondo também de consagração no nosso ordenamento». E, mais adiante, sublinha-se ainda que o Código Penal afirma «o princípio da individualidade da responsabilidade criminal, mas admite-se a existência de excepções, pensadas precisamente para o alargamento da responsabilidade criminal das pessoas colectivas.» Tal como ali se desenvolve com recurso a asserções doutrinárias que reúnem o consenso de vários autores, a propósito do artigo 11.° do Código Penal, então vigente, e hoje plenamente justificáveis também à luz do actual artigo 12.° do Código Penal, actualmente em vigor, a responsabilidade penal dos pessoas colectivas, operada pelo Decreto-Lei n.º 28/84, «não constitui qualquer inovação fora do sistema, traduzindo-se, ao contrário, em mera aplicação de um princípio vigente no âmbito da matéria a que aquele diploma se reporta», passando-se, de seguida, a desenvolver as razões para tal entendimento.

    Idêntica ordem de razões se aplica à previsão da responsabilidade penal das pessoas colectivas no âmbito do Decreto-Lei n.° 20-A/90, de 15 de Janeiro, que agora nos ocupa. Com efeito, são os mesmos os fundamentos que se impõe afirmar em defesa da responsabilização criminal das pessoas colectivas em qualquer área do direito penal secundário.

    Valem aqui também as considerações tecidas por Alberto Remédio, in Revista do Ministério Público, n.° 53, pág. 63 e seguintes, a propósito da responsabilidade criminal das pessoas colectivas e equiparadas, relativa a infracções contra a economia e contra a saúde pública: «A exteriorização de novas formas de criminalidade, o incremento da participação que nelas vão tendo entes colectivos, sobretudo nos campos da criminalidade económica e social, e a necessidade de as prevenir e reprimir (cf. Figueiredo Dias e Costa Andrade, ?Problemática geral das infracções anti-económicas?, Boletim do Ministério da Justiça, n.° 262, pág. 5 e seguintes), levou a que, um pouco por toda a parte, se fosse questionando o dogma da individualidade da responsabilidade criminal e admitindo a consagração da responsabilidade criminal das pessoas colectivas.

    Neste sentido, merece destaque, ao nível das organizações internacionais, a intervenção do Conselho da Europa, que recomendou aos Estados membros o reexame dos princípios da responsabilidade criminal, de modo a viabilizar-se, em certos casos, a responsabilização de pessoas colectivas (Resolução n.° (77)28, de 27 de Setembro de 1977, sobre a contribuição do direito penal para a protecção do ambiente), e o estudo da possibilidade de instituir a responsabilidade criminal das pessoas colectivas (Recomendações n.°s R (81)12, de 25 de Junho de 1981, R (88)18, de 20 de Outubro de 1988, sobre criminalidade económica, e R (82)15, de 24 de Setembro de 1982, sobre o papel do direito penal na protecção dos consumidores) (cf. Castro e Sousa, obra citada [As pessoas colectivas em face do direito criminal e do chamado direito de mera ordenação social, Coimbra Editora, Coimbra, 1985], págs. 204-205; e Lopes Rocha, obra citada [«A responsabilidade penal das pessoas colectivas ? Novas perspectivas», Direito Penal Económico, Centro de Estudos Judiciários, Coimbra, 1985], págs. 113-115).» Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, se decide também não atender a invocada inconstitucionalidade do artigo 7.° do RJIFNA suscitada por alguns arguidos.

    Aliás, também à questão da conformidade constitucional da punição simultânea de pessoas singulares que actuam como órgãos e representantes da pessoa colectiva, nos termos do artigo 6.º do RJIFNA, e a própria pessoa colectiva, no sentido de não constituir qualquer violação do princípio constitucional ne bis in idem (na modalidade de dupla punição indevida pelo mesmo facto), já foi dada resposta pelo Tribunal Constitucional em jurisprudência ainda recentemente retomada (ver Acórdão n.° 389/01, proferido no processo n.° 284/01, 2.ª Secção, em 26 de Setembro de 2001).

    (...)

    A prova produzida na instrução, a requerimento dos arguidos A. e B., incidiu especialmente sobre o facto de esta empresa não ter pedido reembolsos de IVA. Para além de documentação que foi junta, foi inquirido o director financeiro da A. (fls. 56621/56623). Referiu que a A. nunca solicitou reembolsos de IVA ou fez qualquer adiantamento a fornecedores. As negociações eram feitas pelo director comercial, B., o director-geral da A., o qual aufere remuneração fixa e variável. Como a A. cresceu, ele aumentou a sua remuneração. O director-geral reporta a uma direcção, tendo funções de gestão. Não faz compras. Foi por ordem de B. que não foram pagas as mercadorias apreendidas nos autos e foi também na sequência dessa apreensão que foram proibidas as compras directas. As notas de crédito são prática corrente. Servem para esconder os preços, mas constituem prática comercial corrente.

    Foi também inquirida uma advogada que actualmente presta serviços à A., tendo prestado depoimento em tudo coincidente com o prestado pela testemunha anterior (fls. 56 624/56 625).

    Finalmente, em 20 de Dezembro, foram recolhidos esclarecimentos adicionais à Sr.ª Perita, C., designadamente no que respeitava à conclusão de a A., através das práticas acusadas nos autos, se ter constituído como credora de IVA ao Estado, tendo a mesma esclarecido que foram diversos os factores em que assentou aquele juízo: desde logo o facto de a A. ter revendido mercadoria a preços facturados substancialmente abaixo dos preços pelos quais adquirira a mesma...

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