Acórdão nº 374/03 de Tribunal Constitucional (Port, 15 de Julho de 2003

Magistrado ResponsávelCons. Mário Torres
Data da Resolução15 de Julho de 2003
EmissorTribunal Constitucional (Port

Acórdão n.º 374/03 Processo n.º 480/98

  1. Secção

Relator: Cons. Mário Torres

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

1. Relatório

J... intentou, em 11 de Janeiro de 1990, no Tribunal Judicial de Setúbal, contra E... e mulher, acção pedindo a condenação dos réus a pagar-lhe, por incumprimento de contrato-promessa de compra e venda da fracção autónoma designada pela letra “P”, correspondente ao 4.º andar, “A”, do prédio urbano sito em ..., Setúbal, a indemnização de 4 000 000$00 com juros compensatórios desde a citação, e o reconhecimento, para garantia de tal crédito, do direito de retenção sobre a fracção em causa. Aduziu, em suma, que: (i) por contrato-promessa celebrado em 4 de Abril de 1986, os réus prometeram vender-lhe e ele comprar-lhes a dita fracção, pelo preço de 3 850 000$00, tendo entregue de sinal a quantia de 850 000$00; (ii) na sequência da celebração desse contrato, os réus facultaram-lhe o gozo desse andar, onde o autor habita, desde há anos, com a sua família, tendo-o mobilado, requisitado água, luz e gás e suportado as despesas do condomínio, tendo, assim, ocorrido a tradição do andar para o autor; (iii) apesar de várias insistência do autor, os réus protelaram a outorga da escritura, tendo aquele tomado a iniciativa de a marcar para 27 de Dezembro de 1989, no 2.º Cartório Notarial de Setúbal, convocando os réus, que não compareceram; (iv) esta não comparência será devida ao facto de o prédio estar hipotecado à C..., que moveu execução contra os réus, na qual o imóvel foi penhorado; (v) tendo os réus violado culposamente o contrato e tendo o autor perdido interesse na execução específica, tem este direito a indemnização correspondente ao valor do andar ao tempo do incumprimento (7 000 000$00, em Dezembro de 1989), deduzido do preço convencionado (3 850 000$00) e acrescido do sinal (850 000$00), ou seja, de 4 000 000$00.

Citados pessoalmente a ré mulher e editalmente o réu marido, ausente em parte incerta, e o Ministério Público, nos termos do artigo 15.º do Código de Processo Civil, não foram apresentadas contestações.

O autor veio requerer a intervenção principal de C..., nos termos do artigo 869.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, por, sem dispor de título executivo, ter requerido a sustação da graduação de créditos na execução movida por C... contra os réus, na qual foi penhorada a fracção negociada.

Admitida a intervenção e apresentada contestação pelo C..., o processo seguiu seus regulares termos, tendo, por sentença de 24 de Outubro de 1994, sido a acção julgada procedente e os réus condenados a pagarem ao autor a quantia de 4 000 000$00 e juros legais vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento, reconhecendo-se ao autor o direito de retenção sobre o imóvel como garantia do seu crédito.

Contra esta sentença interpôs C... recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, sustentando, em suma, que em 11 de Janeiro de 1990 ainda não existia incumprimento definitivo por parte dos promitentes-vendedores, pelo que não podia o autor intentar a presente acção nem ser-lhe reconhecido direito de retenção.

Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10 de Julho de 1997, foi a apelação julgada improcedente. Para tanto, entendeu-se que a mora dos promitentes-vendedores, acompanhada de justificada e razoável perda de interesse do promitente-comprador, equivale a não cumprimento definitivo (artigo 808.º do Código Civil), imputável àqueles e gerador do direito deste a resolver o contrato e a reclamar a devida indemnização (artigo 801.º do mesmo Código), para além de que, tendo havido tradição do imóvel, como garantia do pagamento do crédito do autor, assiste a este direito de retenção (artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do citado Código).

Contra este acórdão interpôs o C... recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, insistindo na inexistência de incumprimento definitivo gerador dos direitos de resolução, indemnização e retenção reconhecidos pelas instâncias, e suscitando, pela primeira vez nos autos, a questão da inconstitucionalidade material e orgânica das normas constantes do n.º 3 do artigo 442.º e da alínea f) do n.º 1 do artigo 755.º do Código Civil, na redacção que lhes foi dada pelos Decretos-Leis n.ºs 236/80, de 18 de Julho, e 379/86, de 11 de Novembro, “que vieram conceder o direito de retenção ao promitente-comprador de prédio urbano ou de uma sua fracção autónoma, no caso de ter havido tradição da coisa objecto do contrato promessa (...), porquanto tal direito ofende os direitos e interesses patrimoniais legitimamente constituídos (no caso presente – o direito de hipoteca), em data anterior ao aparecimento de tal direito” (sublinhado acrescentado). A inconstitucionalidade material radicaria na violação do princípio da segurança do comércio jurídico imobiliário, que poria em causa o princípio constitucional da confiança, ínsito no artigo 2.º da CRP, pois as normas questionadas ofenderiam “direitos patrimoniais do credor, titular de uma hipoteca existente anteriormente ao reconhecimento de tal direito de retenção” (sublinhado acrescentado). A inconstitucionalidade orgânica resultaria de a matéria em causa, regulada por decretos-leis emitidos pelo Governo sem autorização legislativa, respeitar a direitos e garantias patrimoniais, integrada na reserva de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 168.º, n.º 1, alínea b), da CRP, na versão então vigente).

Por acórdão de 16 de Abril de 1998, o Supremo Tribunal de Justiça negou a revista, tendo, a propósito das questões de constitucionalidade suscitadas, expendido o seguinte:

“III – Inconstitucionalidade

  1. Inconstitucionalidade orgânica

    Há matéria cuja competência para legislar pertence exclusivamente à Assembleia da República, constituindo a chamada reserva exclusiva de competência legislativa – artigo 164.º, este e os mais que se indicarem neste número III sem indicação especial são da Constituição da República Portuguesa; e há outras matérias que a Assembleia da República pode autorizar o Governo a legislar, ou seja, a chamada reserva relativa de competência legislativa – artigo 165.º

    Invoca a recorrente como violado o artigo 168.º, n.º 1, alínea b), mas que na data das alegações já era, por força da revisão constitucional (artigo 198.º da Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro), o artigo 165.º, n.º 1, alínea b), o qual diz assim: «1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização do Governo: b) Direitos, liberdades e garantias».

    Mas é evidente que tal alínea não contempla a totalidade dos direitos, liberdades e garantias, mas apenas aqueles que se revestirem de natureza fundamental para a generalidade dos cidadãos.

    Se fosse de outro modo, então acabava por ser letra morta o artigo 198.º, que em certos casos atribui competência legislativa ao Governo.

    Ora, é claro que a simples criação de um direito de retenção não assume por si só relevo suficiente para que se possa considerar que interfere com algum interesse fundamental enquadrável na alínea b) transcrita.

    Por isso, o Governo podia legislar nesse sentido. O que significa que não se considerem organicamente inconstitucionais as normas dos artigos 442.º, n.º 3 (na redacção do Decreto-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho), e 755.º, n.º 1, alínea f) (na sua actual redacção – Decreto-Lei n.º 179/86, de 11 de Novembro).

  2. Inconstitucionalidade material

    E serão tais normas do Código Civil materialmente inconstitucionais?

    Para já, não podemos deixar de expressar a nossa opinião de que se mostra efectivamente injusto que quem é titular activo de uma hipoteca tenha posteriormente de se confrontar com um direito desta origem, com o qual não contava e que lhe diminuiu a sua garantia patrimonial, podendo, inclusivamente, ir até ao ponto de a anular completamente (já será diferente se o direito de retenção resultar de despesas feitas por causa da coisa ou de danos por ela causados – artigos 754.º e 759.º do Código Civil).

    Todo o cidadão tem a legítima confiança em que o Estado respeite e garanta os seus direitos fundamentais. Assim, impunha-se que de seguida verificássemos se o invocado prejuízo resultante para a recorrente era qualificável naquele tipo de direitos.

    Porém, não é necessário entrar nessa fase.

    Efectivamente, e como é obvio, a eventual inconstitucionalidade só ocorreria se a hipoteca em causa fosse anterior à situação de que derivou o direito de retenção. Na verdade, nada obsta que uma qualquer disposição legal se considere inconstitucional quando aplicada a uma determinada situação concreta, mas já o não seja relativamente à generalidade das situações.

    A hipoteca adquiriu relevância para com terceiros a partir da data do seu registo; o direito de retenção nasceu quando ocorreu a tradição para o autor da fracção autónoma prometida vender.

    Acontece, todavia, que não está devidamente provado nos autos tal registo e a respectiva data.

    Era, naturalmente, à recorrente que competia o ónus de fazer essa prova, na medida em que se trata de um facto impeditivo do direito do autor – artigo 342.º, n.º 2, do Código citado.

    Mas, estranhamente, a recorrente nada disse sobre o assunto na sua contestação; continuou a olvidá-lo nas alegações para a Relação, onde ainda podia provar o dito registo – artigo 706.º do Código de Processo Civil; para só agora, nas alegações para este Tribunal, se limitar a alegar o facto.

    Falhando esta premissa, consequentemente que prejudicada fica logo, e irremediavelmente, a eventual conclusão da pretendida inconstitucionalidade.” (sublinhados acrescentados).

    Notificado deste acórdão, veio o interveniente C... do mesmo interpor recurso para este Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de...

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