Acórdão nº 395/04 de Tribunal Constitucional (Port, 02 de Junho de 2004

Magistrado ResponsávelCons. Benjamim Rodrigues
Data da Resolução02 de Junho de 2004
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 395/2004

Processo n.º 916/03

  1. Secção

Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues

Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:

A – O relatório

1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no art.º 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que, concedendo provimento ao recurso, revogou o despacho proferido pelo Juiz do 5º Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, de 16 de Maio de 2003, que julgara verificada a nulidade de insuficiência de inquérito e de omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade e, decorrentemente, inválido o despacho de encerramento de inquérito, bem como todo o processado subsequente, excepto na parte respeitante ao NUIPC20359/00.9TDLSB, para efeitos de realização de diligências de inquérito, e que ordenou a sua substituição por outro que apreciasse o requerimento do assistente para a abertura da instrução.

2 – Na sequência de apresentação de várias queixas (35 - por escrito ou por telefone) pelo aqui recorrente, por factos susceptíveis de integrarem os crimes de ofensa à integridade física, ameaças, dano, devassa da vida privada, falsificação de documento e de notação técnica, difamação e abuso de poder, foram instaurados diversos processos de inquérito preliminar, todos contra incertos à excepção do Inquérito n.º 20359/00.TDLSB. Por despacho do Procurador-Geral da República foi determinada a reunião de todas as queixas apresentadas pelo denunciante, vindo os processos a ser todos apensados ao que sob aquele número corria termos pelo Departamento de Investigação e Acção Penal da Procuradoria-Geral da República.

Findas as diligências de investigação cuja produção considerou razoável, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento do inquérito nos termos do art.º 277º do Código de Processo Penal (CPP), por haver concluído, em resumo, que da investigação levada a cabo não haviam resultado apurados factos com relevância suficiente para exercer a acção penal contra quaisquer agentes pela prática de qualquer dos crimes denunciados, incluindo nestes os próprios suspeitos indicados pelo denunciante, designadamente os referidos no Inquérito n.º 20359/00.TDLSB (médicos que haviam assistido o denunciante nos serviços de urgência de hospital).

3 – Confrontado com este despacho de arquivamento, o denunciante requereu a abertura de instrução ao abrigo do disposto no art.º 287º, nº 1, alínea a), do CPP, pedindo, aí, a concessão de apoio judiciário e a sua constituição como assistente. Simultaneamente, o recorrente arguiu a nulidade por insuficiência de inquérito e apresentou prova documental e testemunhal. No que concerne à arguição de nulidade, o arguido alegou a falta de realização de escutas telefónicas das comunicações estabelecidas com os telefones das vítimas, bem como a falta de diligências tendentes à identificação do condutor de um veículo -------------- que alegadamente ameaçou o denunciante na AE---, condutor esse a que o agente da PSP B. faz alusão no seu depoimento prestado nos autos (apenso A, fls. 585).

O Juiz do Tribunal de Instrução Criminal, pelo referido despacho, julgou “verificada a nulidade de insuficiência de inquérito e de omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade e, consequemente, [...] inválido o despacho de encerramento do inquérito”.

4 – Interposto recurso pelo Ministério Público, veio o Tribunal da Relação de Lisboa a dar-lhe provimento com base, em síntese, no entendimento de que a titularidade do inquérito, bem como a sua direcção, pertence ao Ministério Público, sendo este “livre em promover as diligências que entender necessárias, ou convenientes com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou arquivar”, com excepção dos actos de prática obrigatória no decurso do inquérito, como sejam “os actos de interrogatório do arguido, salvo se não for possível notificá-lo, de notificação ao arguido, ao denunciante com a faculdade de se constituir assistente e às partes civis do despacho de encerramento do inquérito” e «no que respeita a certos crimes ... [como exemplo desses] actos investigatórios “obrigatórios” ou imprescindíveis para se aferir dos elementos de certos tipos de crimes, podem indicar-se os exames periciais nos termos do art.º 151º do CPP (médicos, no caso de crimes contra a integridade física, autópsia, no caso de morte violenta, etc.)». Mais aduziu o Tribunal da Relação, invocando o ensinamento de Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, volume III, 2ª edição, pp. 91) e jurisprudência anterior do mesmo Tribunal, que citou, que “a insuficiência de inquérito é uma nulidade genérica que só se verifica quando se tiver omitido a prática de um acto que a lei prescreva como obrigatório e desde que para essa omissão a lei não disponha de forma diversa” e que “a omissão de diligências de investigação não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência, pois a apreciação da necessidade de actos de inquérito é da competência exclusiva do Ministério Público” e que os actos cuja prática fora omitida não se incluíam na categoria dos actos obrigatórios, como relativamente às escutas resultava evidente do disposto no art.º 187º, n.º 1, alínea e), do CPP, e à outra diligência pretendida derivava da ausência de disposição legal a prevê-la como tal, não se vislumbrando que com esse entendimento saísse violado o art. 32º, n.ºs 1, 4 e 5, da Constituição, ao contrário do que o assistente defendia.

5 – Dizendo-se inconformado com esta decisão, o assistente recorreu para o Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação da inconstitucionalidade – segundo a delimitação fixada no despacho do relator de fls. 360 dos autos, transitado em julgado, prolatado em consequência de apresentação de requerimento complementar de interposição de recurso feita em consequência de convite do mesmo relator – dos artigos 120º, n.º 1, alínea d), 17º, 262º e 263º, todos do Código de Processo Penal, na acepção normativa deles conjugadamente inferida de que “o Ministério Público é livre de promover as diligências que entender necessárias, como convenientes, com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou de arquivar” e de que “a omissão de diligências de investigação não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência, por a apreciação da necessidade de actos de inquérito ser da competência exclusiva do Ministério Público”.

6 – Alegando no Tribunal Constitucional sobre o objecto do recurso assim definido, assim sintetizou o recorrente as razões da sua discordância com o decidido em sede de constitucionalidade:

1ª - Como é absolutamente óbvio, a autonomia do M.º P.º e a sua competência para a acção penal em nada são beliscadas pela competência jurisdicional, designadamente para conhecer e declarar nulidades da fase de inquérito, atribuída ao Juiz de instrução,

2ª - E que aliás é, mesmo, a única forma (mais do que discutível, ainda assim) de salvaguardar a constitucionalidade da mesma fase "administrativizada" do processo penal, que é o inquérito.

3ª - Como é meridianamente evidente, o Juiz de instrução pode declarar a existência de nulidades do inquérito, de tal declaração decorrendo a invalidade do acto em si considerado e de todos os que dele dependam e aquele possa afectar, como é o caso do despacho de arquivamento.

4ª Não compete de todo à instrução e ao Juiz de instrução colmatar patentes e graves deficiências da investigação na fase do inquérito, realizando as diligências que o Mº Pº não fez e devia ter feito mas antes conhecer, e declarar se for o caso, das referida nulidades.

5ª O sistema que O Mº Pº sustenta e o Acórdão recorrido sufragou representaria afinal - na senda, aliás, das posições que vêm sendo publicamente anunciadas por algumas das mais mediáticas representantes do mesmo Mº Pº - a ausência de efectivo controle jurisdicional sobre a sua actuação gravemente omissiva, para não dizer mesmo descuidada e negligente, durante a fase do inquérito,

6ª - Permitindo-lhe mesmo actuar em autêntica "roda livre" e liquidar impunemente investigações, relativamente às quais (até por razões de verdadeira "oportunidade", como sucedeu com o celebérrimo despacho que nestes autos ordenou que se investigassem apenas os casos de corrupção envolvendo valores superior a 500.000$00 ...) adoptasse semelhante postura.

7ª - Como é absolutamente óbvio, e ao invés do que o M.º P.º vem sustentar, se ele não realiza actos do inquérito que se revelam essenciais à descoberta da verdade, comete assim a nulidade prevista na al. d) do n.º 2 do ano 120º do C.P.P., e essa nulidade pode e deve ser declarada pelo Juiz de instrução.

8ª - Interpretadas e aplicadas as disposições do citado art.º 120º, n.º 1, al. d), bem como dos art.ºs 17º, 262º e 263º, todos do C.P.P. como o pretende o M.º P.º e o consagrou o Acórdão recorrido, elas são materialmente inconstitucionais, por violação dos preceitos dos n.ºs 1, 4 e 5 do art.º 32º da C.R.P .,

9ª - Sendo certo que, no caso sub judice e ao invés do que falsamente o M.º P.º vem invocar, a diligência de intercepção das chamadas telefónicas foi sugerida, requerida e autorizada desde o início pelo assistente, sua mãe e também pelas suas testemunhas.

10ª - Formalmente requerida, face à já então demonstrada incapacidade investigatória, em Outubro de 2001, tal diligência ao Sr. Procurador-Geral da República e por este determinada, nem essa nem qualquer outra diligência foi realizada ou ordenada pelo M.º P.º durante mais de um ano, até se realizarem, em escassos dias, à pressa e "ao molhe" inquirições com vista a encerrar de qualquer modo o inquérito.

11ª - E é também patente que quer a já referida (e lastimavelmente não realizada pelo M.º P.º) intercepção de chamadas, quer a não identificação do condutor de um veículo com atitudes ameaçadoras e intimidatórias assumem a natureza de omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade...

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