Acórdão nº 236/04 de Tribunal Constitucional (Port, 13 de Abril de 2004

Magistrado ResponsávelCons. Artur Maurício
Data da Resolução13 de Abril de 2004
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 236/2004 Proc. nº. 92/03 1ª Secção

Relator: Cons.º Artur Maurício

Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:

1 ? A. e o Estado Português foram condenados por sentença de 29.11.2002 do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa a pagar uma indemnização a B. e C., respectivamente, viúva e filha de D., por danos patrimoniais e não patrimoniais, em virtude da morte deste causada por disparos de arma de fogo feitos pelo referido A., no exercício das suas funções como agente da extinta Guarda Fiscal, actualmente GNR ? Guarda Nacional Republicana.

Inconformado, o Réu A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, tendo dito no requerimento de interposição de recurso que ?(...) notificado da sentença de 29-11-2002 e verificando que a mesma recusou a aplicação do regime resultante dos art. 2º e 3º, nºs. 1 e 2 do D-L nº 48051, de 21.11.1967, na medida em que de tal regime resulta que o agente administrativo do Estado não responde civilmente perante terceiros por actos ilícitos meramente culposos praticados dentro dos limites das suas funções e no exercício destas, com fundamento em inconstitucionalidade (ou caducidade, por violação de norma constitucional) de tal regime, em função do disposto no art. 271º, nº. 1 da Constituição vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, em secção [art. 70º, nº. 1, al. a) da Lei nº. 28/82 ?11-15], restrito à questão da inconstitucionalidade em causa (art. 71º da mesma Lei), ou seja, a não aplicação do regime resultante das disposições combinadas dos art. 2º e 3º, nºs 1 e 2 do D-L 48051, de 21.11.1967, na medida em que de tal regime resulta que o agente administrativo do Estado não responde civilmente perante terceiros por actos ilícitos meramente culposos praticados dentro dos limites das suas funções e no exercício destas, em função do disposto no art. 271º, nº. 1 da Constituição, requerendo a sua admissão, com efeito e processamento legais.?

Admitido o recurso, o Réu A. apresentou as suas alegações que concluiu como segue:

?1. O regime do disposto nos arts. 2º e 3º , nºs. 1 e 2 do DL nº. 48051, de 21 de Novembro de 1967, de que resulta a não responsabilização civil do titular de órgão, funcionário ou agente pelos prejuízos causados por acto ilícito cometido no exercício de funções e por causa delas de forma meramente negligente não é inconstitucional, pois não viola o disposto no art. 271º, nº. 1 da Constituição.

  1. Aliás, é o próprio nº 2 desta norma que prevê expressamente uma situação de exclusão de responsabilidade do funcionário ou agente.

  2. O art. 22º da Constituição apenas impõe que, sempre que haja acto ilícito ou mesmo simples acto gerador de prejuízos (ainda que lícito), haja responsabilidade civil da pessoa colectiva pública, a qual será solidária com a do titular de órgão, funcionário ou agente, quando esta exista.

  3. É o próprio nº. 4 do art. 171º da Constituição que admite que se ?a lei regula os termos em que o Estado e as demais entidades públicas têm o direito de regresso contra os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes?, então a lei pode regular as situações em que não existe direito de regresso, isto é, não há responsabilidade solidária.

  4. O objectivo do nº. 1 do art. 271 da Constituição é tão só impedir a existência de um regime de ?privilégio administrativo? ou ?garantia administrativa?, em que a responsabilização civil, penal ou disciplinar de titular de órgão, funcionário ou agente possa depender de autorização.

  5. O art. 271º da Constituição deixa ao legislador ordinário o poder de definir as condições e situações em que, sem prejuízo da responsabilidade da pessoa colectiva pública, há também, solidária com esta, responsabilidade do titular de órgão, funcionário ou agente, e designadamente o de isentar desta o titular do órgão, funcionário ou agente que agiu no exercício de funções e por causa delas de forma meramente negligente.

    Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e declarada a não inconstitucionalidade do regime do disposto nos arts. 2º e 3º, nºs. 1 e 2 do DL nº. 48051, de 21 de Novembro de 1967, de que resulta a não responsabilização civil do titular de órgão, funcionário ou agente pelos prejuízos causados por acto ilícito cometido no exercício de funções e por causa delas de forma meramente negligente, com consequente baixa dos autos ao tribunal recorrido para reforma da decisão recorrida, que deve ser reformulada, em função do juízo de não inconstitucionalidade do regime legal que recusou aplicar?.

    As Recorridas contra-alegaram, concluindo:

    ?1. As ora Recorridas intentaram acção declarativa contra o ora Recorrente e o Estado Português, pedindo a condenação destes no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.

  6. A causa de pedir dessa acção residiu no facto de o ora Recorrente (agente da Guarda Fiscal, hoje GNR) ter disparado 6 (seis) tiros, quando se encontrava em exercício de funções, e que atingiram respectivamente, o marido e pai das Recorridas, vindo o mesmo a falecer.

  7. O ora recorrente respondeu pelo crime que cometeu, no 1º Tribunal Militar territorial de Lisboa (Proc. nº 99/93), tendo sido condenado pelo crime p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs. 207º, nº. 1, alínea a) do Código de Justiça Militar (CJM) e artº. 136º, nº 2 (negligência grosseira) do Código Penal, aplicável ex vi art. 5º do CJM, a cumprir uma pena de 18 (Dezoito) meses de presídio militar.

  8. Os Tribunais Militares não são competentes para apreciar os pedidos de indemnização emergente dos processos crimes de que vierem a conhecer, pelo que, as ora Recorridas, tiveram que intentar essa acção no Tribunal Administrativo de Círculo da Comarca de Lisboa.

  9. No âmbito desses autos (Proc. nº. 1072/99 ? 4ª Secção), foi proferida, em 29 de Novembro de 2002, decisão que, não obstante considerar que o ora Recorrente agiu com negligência, determinou que o mesmo deveria ser responsabilizado pelo seu acto ilícito, solidariamente com o Estado, condenando-o no pagamento às ora Recorridas dos danos patrimoniais e não patrimoniais por estas sofridos.

  10. Para tal, o meritíssimo Juiz ?a quo? considerou que com a entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa de 1976 e face ao teor dos seus arts. 22º (na redacção que lhe foi dada pela RC/82) e 271º (na redacção que lhe foi dada pela RC/89), a responsabilidade civil dos titulares dos órgãos das entidades públicas e dos funcionários e agentes, perante terceiros, deixou de se circunscrever aos casos em que tivessem excedido os limites das sua funções, ou, que no exercício de tais funções tivessem procedido dolosamente.

  11. Pelo que os titulares e agentes do Estado e demais entidades públicas, respondem civilmente perante terceiros, pelas acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício de que resulte a violação dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, não só nos actos dolosos mas também nos actos negligentes, consciente ou inconsciente.

  12. Existindo por isso uma divergência sobre a compatibilidade do arts. 2º e 3º, nºs. 1 e 2 do Decreto-Lei nº. 48051, de 21 de Novembro de 1967, com o disposto nos art. 22º (na redacção que lhe foi dada pela RC/82) e 271º (na redacção que lhe foi dada pela RC/89), ambos da Constituição da República Portuguesa.

  13. E sendo os preceitos constitucionais de aplicabilidade directa e de valor hierárquico superior aos consagrados no direito ordinário, recai sobre os arts. 2º e 3º, nºs. 1 e 2 do Decreto-Lei nº. 48051, de 21 de Novembro de 1967, uma inconstitucionalidade superveniente de acordo com o plasmado no nº. 2 do art. 290º (na redacção que lhe foi dada pela RC/89) da Constituição da República Portuguesa.

  14. Termos em que deve ser negado provimento ao presente recurso e, consequentemente, declarada a inconstitucionalidade superveniente do regime disposto nos arts. 2º e 3º, nºs. 1 e 2 do Decreto-Lei nº. 48051, de 21 de Novembro de 1967, por contrariarem o conteúdo e alcance dos art. 22º (na redacção que lhe foi dada pela RC/82), 271º (na redacção que lhe foi dada pela RC/89) e nº. 2 do art. 290º (na redacção que lhe foi dada pela RC/89), todos da Constituição da República Portuguesa, mantendo-se a decisão ora recorrida, seguindo-se os ulteriores termos até final.?

    O Exmº. Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal, contra-alegou, concluindo:

    ?1º - Com a entrada em vigor da actual Constituição e face ao teor dos seus artigos 22º e 271º - que estabelecem categoricamente a regra da solidariedade passiva ? a responsabilidade civil dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes das pessoas colectivas públicas deixou de se circunscrever aos casos em que haja excedido os limites das suas funções ou, no exercício destas, tenham procedido com dolo, podendo fundar-se na referida norma constitucional ? directamente aplicável ? o regime de solidariedade no caso dos actos funcionais ilícitos, praticados com negligência do agente.

    1. - Ocorrendo, deste modo, uma equiparação ? quanto a este aspecto específico ? entre o regime da efectivação da responsabilidade por actos de ?gestão pública? administrativa e de ?gestão privada? do Estado, face ao estatuído no artigo 501º do Código Civil.

    2. - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade superveniente constante da decisão recorrida?.

    Cumpre apreciar e decidir.

    2 ? A sentença recorrida resolve a questão de saber se na acção proposta contra o Estado e um seu agente para efectivação da responsabilidade civil extracontratual do Estado por facto ilícito e culposo praticado pelo agente no exercício das suas funções, este deve, ou não, responder.

    Sustentou, com efeito, o R. não poder ser ele demandado na acção uma vez que o facto danoso lhe era imputado a título de negligência, pelo que nos termos do regime definido nos artigos 2º e 3º do Decreto-Lei nº 48.051 não era civilmente responsável perante terceiros pelo ilícito cometido.

    Não se põe em causa, na sentença, a tese de que, de acordo...

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