Acórdão nº 351/05 de Tribunal Constitucional (Port, 05 de Julho de 2005

Magistrado ResponsávelCons. Vitor Gomes
Data da Resolução05 de Julho de 2005
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 351/05

Processo n.º 372/05

  1. Secção

Relator: Conselheiro Vítor Gomes

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

1. No Tribunal Judicial de Ponta Delgada, sob acusação do Ministério Público e perante o tribunal do júri, foram submetidos a julgamento (além de outros) os arguidos

- A.

- B.

- C.

- D.

- E.

pela prática, além do mais, de crimes de actos homossexuais com adolescentes, previstos e punidos pelo artigo 175.º do Código Penal.

Por acórdão de 27 de Abril de 2005, o tribunal do júri decidiu absolver os referidos arguidos quanto a essa parte da acusação, com argumentação essencialmente construída por oposição à doutrina do acórdão de 22 de Outubro de 2003, Proc. n.º 2852/03-3ª, do Supremo Tribunal de Justiça, da qual se destaca o seguinte :

“4. Inconstitucionalidade do artigo 175° do Código Penal

Um outro preceito deverá merecer a nossa especial atenção.

Dispõe o artigo 175° do Código Penal que «quem, sendo maior, praticar actos homossexuais de relevo com menor entre 14 e 16 anos, ou levar a que eles sejam por este praticados com outrem, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias».

Alguns dos arguidos insurgiram-se contra a disciplina deste preceito, que reputam inconstitucional, ao punir mais severamente os actos homossexuais do que os actos heterossexuais.

Na verdade, se cotejarmos este preceito com o do artigo 174°, verificamos três diferenças no tratamento legal dos actos homossexuais com adolescentes em cotejo com o dos heterossexuais: é também punido quem levar outrem à prática desses actos; são abrangidos todos os actos sexuais de relevo e não só a cópula e o coito anal ou oral; há sempre punição, mesmo que se não verifique abuso da inexperiência do adolescente.

O que poderá representar uma ofensa ao princípio da igualdade, tal como consagrado no artigo 13° da Constituição da República Portuguesa:

[ omitimos ]

4.4. A propósito de uma das diferenças de regime que o artigo 175° estabelece para os actos homossexuais com adolescentes, por referência ao artigo 174°, importa chamar à colação o bem jurídico que essencialmente se pretende proteger com a punição dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual. Como já referimos, no que concerne aos crimes em que os menores são ofendidos, será ele o livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual. Daí o já termos também esclarecido que é essa a justificação para o afastamento da punibilidade dos actos sexuais cometidos com adolescentes que não consubstanciem abuso da sua inexperiência.

Posto isto, como defender que sejam punidos os actos homossexuais contra adolescentes, mesmo que se não verifique esse abuso? Necessário será pois concluir que, mesmo que se admitisse a já repudiada diferenciação de tratamento dos actos homossexuais, por menos normais, nunca essa carência de normalidade poderia implicar a censura penal de acto que reconhecidamente não ofendeu o bem jurídico que se pretende proteger com a previsão punitiva.

Assim, ao não afastar a exclusão da punibilidade no caso de se não provar o abuso da inexperiência do adolescente com quem o agente praticou acto homossexual, estará o artigo 175° a consagrar um regime que discrimina, aqui notoriamente sem qualquer fundamento, o acto homossexual em relação ao acto heterossexual.

4.5. Por tudo o exposto, julga-se inconstitucional a norma do artigo 175° do Código Penal, na medida em que estabelece regime que ofende a proibição de discriminação em razão da orientação sexual que emana do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, tal como consagrado no artigo 13 ° da Constituição da República Portuguesa. Assim, nos termos e com o alcance definido nos artigos 18° e 204° do mesmo diploma, recusa-se este tribunal a aplicar o referido preceito.

4.6. Ora, havendo concurso aparente entre as normas do artigo 175° e do artigo 174° (actos sexuais com adolescentes), por se encontrarem em uma relação de especialidade, vemo-nos revertidos para o tipo deste último crime, à luz do qual serão apreciados os factos que aos arguidos seriam imputados por força do respectivo preceito.

Na sequência do que deixam de ser punidos todos os actos homossexuais com maiores de 14 anos (ou com pelos arguidos supostos maiores de 14 anos) que não sejam de coito oral ou anal, bem como os que, embora o sejam, não se tenha provado consubstanciarem abuso da inexperiência dos menores.

No presente caso, na falta de prova deste último requisito relativamente aos actos homossexuais de coito oral ou anal com ofendidos daquelas idades, serão os arguidos absolvidos dos crimes que, por essa via, lhes eram imputados.”

Fazendo aplicação desta doutrina, apesar de considerar provadas algumas das práticas de coito oral, coito anal e outros actos sexuais, designadamente masturbação ou outras manipulações de órgãos genitais, com rapazes entre os 14 e 16 anos, que haviam levado à pronúncia dos arguidos pela prática de crimes punidos pelo artigo 175.º do Código Penal, o acórdão recorrido absolveu-os nessa parte: relativamente às práticas de coito anal e de coito oral por “inconstitucionalidade do artigo 175.º e não verificação do requisito do artigo 174.º abuso de inexperiência” e quanto aos demais actos sexuais por “inconstitucionalidade”.

2. O Ministério Público interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º e da alínea a) do n.º 1 e n.º 3 do artigo 72.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), visando a apreciação da constitucionalidade da norma que consta do artigo 175.ºdo Código Penal.

Nas alegações, sustentou desenvolvidamente, com especial referência aos trabalhos legislativos de que emergiu a actual redacção do preceito, a constitucionalidade da norma desaplicada pelo tribunal a quo, tendo concluído nos termos seguintes:

“1- Na definição dos tipos legais de crimes usufrui o legislador ordinário de ampla liberdade de conformação, estando-lhe, contudo, vedado optar por soluções arbitrárias ou discriminatórias, sem que haja fundamento material suficiente para a diferença de tratamento.

2- A infracção criminal prevista e punida pelo artigo 175.º do Código Penal relativo à homossexualidade com adolescentes, não viola o princípio constitucional da igualdade estabelecido no artigo 13.º da Lei Fundamental, quando cotejada com o tipo legal de crime do artigo antecedente do mesmo diploma legal, que abarca uma realidade diferente, menos exigente na punição de determinados comportamentos no âmbito da heterossexualidade.

3- Nestes termos, deverá proceder o presente recurso.”

Contra-alegaram os arguidos E. (fls. 4752-4755), D. (fls.4757-4760), B. e C. (fls. 4762-4777) e A. (fls. 4778-4780), todos sustentando a improcedência do recurso, no essencial pelas razões da decisão recorrida e do acórdão n.º 247/2005, deste Tribunal.

3. Resulta da parte da decisão recorrida em que tratou a questão da inconstitucionalidade (fls.109 ss. do acórdão) e da aplicação que faz desse entendimento em sede de “integração jurídico-penal da conduta dos arguidos” (fls.120 ss. do acórdão), que o tribunal a quo recusou aplicação ao artigo 175.º do Código Penal (actos homossexuais com adolescentes) com fundamento em violação do princípio constitucional da igualdade consubstanciado no tratamento desigual, em termos incriminatórios, dos actos homossexuais face aos actos heterossexuais com adolescentes (artigo 174.º do CP – actos sexuais com adolescentes).

Desigualdade que se manifestaria em três aspectos distintos:

- na previsão, nos dois tipos legais, de um distinto conteúdo da acção: nas relações heterossexuais punem-se (apenas) a cópula, o coito anal e o coito oral, enquanto nas relações homossexuais se punem (de modo mais abrangente) os actos sexuais de relevo, isto é, outros actos sexuais de relevo para além daqueles;

- na previsão da modalidade da acção: enquanto no artigo 175.º se incrimina o comportamento daquele que praticar actos homossexuais de relevo com menor entre 14 e 16 anos, bem como daquele que levar a que eles sejam por este praticados com outrem, no artigo 174.º pune-se quem tiver cópula, coito anal ou coito oral com menor da mesma faixa etária;

- a punição dos actos heterossexuais com adolescentes exige abuso da sua inexperiência enquanto que a punição dos actos homossexuais não depende da verificação desse requisito.

Embora a argumentação do acórdão recorrido destinada a demonstrar a violação do princípio constitucional da igualdade se ocupe sobretudo do aspecto enunciado em terceiro lugar (abuso de inexperiência), o tribunal a quo recusou in totum a aplicação do artigo 175.º do Código Penal e é com o mesmo âmbito que a sua decisão vem impugnada. Assim, o recurso incide sobre a norma na sua totalidade, sem prejuízo de, se no mais vier a ser confirmado o juízo de inconstitucionalidade, poder considerar-se prejudicada a apreciação da conformidade constitucional da norma quanto à previsão de uma distinta modalidade de acção (“levar a que eles sejam por ele praticados com outrem”), que não teria reflexos na decisão do caso concreto.

  1. Sucede que, entretanto, pelo acórdão n.º 247/2005, proferido em 10 de Maio de 2005, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt, o Tribunal Constitucional se pronunciou sobre a questão da constitucionalidade do artigo 175.º do Código Penal, na parte em que consiste em saber se é constitucionalmente legítimo que nele se punam os actos homossexuais aí previstos, ainda que não se abuse da inexperiência do menor, quando o artigo 174.º apenas pune os actos sexuais que enumera se forem cometidos com abuso da inexperiência do menor, tendo julgado inconstitucional, “por violação dos artigos 13.º, n.º 2, e 26.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 175.º do Código Penal, na parte em que pune a prática de actos homossexuais com adolescente mesmo que se não verifique, por parte do agente, abuso da inexperiência da vítima” (3.º aspecto acima mencionado).

    Nesse caso...

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