Acórdão nº 303/05 de Tribunal Constitucional (Port, 08 de Junho de 2005

Magistrado ResponsávelCons. Vitor Gomes
Data da Resolução08 de Junho de 2005
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 303/05 Processo n.º 242/05 3.ª Secção Relator: Conselheiro Vítor Gomes

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I

1. A., melhor identificado nos autos, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra do acórdão do Colectivo do Tribunal Judicial da Comarca de Águeda, de 29 de Março de 2004, que o condenou, como autor material e em concurso real, pela prática de:

- 1 crime de condução ilegal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 2/98, na pena de 6 meses de prisão;

- 6 crimes de uso de documento de identificação alheio, previsto e punido no artigo 261.º do Código Penal, na pena de 3 meses de prisão cada um;

- 12 crimes de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º1, alínea a), e 3, do Código Penal, na pena de 15 meses por cada crime de falsificação de “BI” e “NIF”, e de 12 meses de prisão por cada um dos demais crimes;

- 13 crimes de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º1, alínea a), do Código Penal, na pena de 9 meses de prisão por cada um; e

- 1 crime de burla agravada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código Penal, na pena de 6 anos de prisão.

Operando o respectivo cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 12 anos de prisão.

O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 29 de Setembro de 2004, decidiu julgar parcialmente provido o recurso, absolvendo o arguido dos crimes de uso de documento de identificação alheio, previsto e punido pelo artigo 261º do Código Penal e, reformulando o cúmulo jurídico, condenou-o na pena de 11 anos e 6 meses de prisão.

Inconformado, recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando na respectiva motivação, além do mais, a inconstitucionalidade da interpretação do alcance da definição legal do conceito de documento de identidade do artigo 255º, alínea a), do Código Penal, e sustentando a recusa de aplicação da jurisprudência uniformizada dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, porque a dimensão interpretativa dos artigos 256º e 217º, nela vazada, viola o artigo 29º, n.º 5, da nossa Lei Fundamental.

O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 3 de Março de 2005, concedeu parcial provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido no que respeita à pena unitária, reduzindo-a para 10 anos de prisão.

  1. É deste último acórdão que o arguido interpõe o presente recurso, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, no qual pretende que sejam julgadas inconstitucionais, na interpretação que lhes conferiu o Supremo Tribunal de Justiça:

    1. A norma do artigo 255.º, alínea a), do Código Penal (conceito legal de documento) por violação dos artigos 2.º, 29.º, n.º 1, 202.º, n.º 1, 203.º e 204.º, todos da Constituição;

    2. A norma dos artigos 30.º, n.º 1, 217.º, n.º 1, e 256.º, n.º 1 do Código Penal (concurso efectivo entre os crimes de burla e falsificação de documentos), por violação dos artigos 2.º, 29.º, n.º 5, 202.º, n.º 1, 203.º e 204.º, todos da Constituição da República Portuguesa.

  2. Admitido o recurso no tribunal a quo foram os autos remetidos ao Tribunal Constitucional, tendo o relator determinado a notificação das partes para alegações.

    O recorrente apresentou alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:

    [ ... ]

    III – Pretende-se que seja declarada inconstitucional a interpretação levada a cabo pelo Supremo Tribunal de Justiça da norma do art.º 255.º do Código Penal:

    Documento: a declaração corporizada em escrito, original ou mera reprodução mecânica, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que permita reconhecer o emitente, podendo a mesma não ser idónea em abstracto para provar facto juridicamente relevante, desde que alguém lhe possa erroneamente atribuir esse valor probatório em concreto

    .

    IV – In casu está provado que: «(...) o arguido, na posse dos B.I e N.I.F. de terceiros, colava a sua fotografia nas fotocópias dos BI daqueles, e alterava alguns dados constantes no verso do documento, designadamente, data de nascimento, estado civil, mediante a colagem nestes locais de cópias dos dados constantes no seu B.I. verdadeiro ou outros fotocopiando de seguida os documentos assim forjados de forma a obter cópias dos mesmos (...)».

    V – Por força da instrução n.º 48/96 do Banco de Portugal as operações de abertura de conta efectuadas pelo arguido, munido apenas de cópias de fotocópias do B.I. só deveriam ter sido efectuadas após exibição do B.I. original.

    VI – Os funcionários bancários, que sabiam estarem perante fotocópias a preto e branco, desrespeitaram a norma que estabelecia qual o documento idóneo para fazer prova da identidade do cliente.

    VII – Não se pode equiparar idoneidade para provar um facto juridicamente relevante (adequação em abstracto do documento aferido ex ante) com o sucesso empírico obtido pelo arguido (êxito em concreto verificado a posteriori).

    VIII – A mera fotocópia, não autenticada, não é uma segunda via do original que esteve na sua origem, nem um BI provisório (únicos documentos aptos a substituir, nos termos previstos na Lei n.º 33/99 de 18 de Maio, um BI original) não tendo por isso o valor probatório deste.

    IX – Consequentemente, uma fotocópia do B.I. ou do N.I.F. não é um meio idóneo para provar a identidade do portador da mesma, nenhuma autoridade ou entidade deverá aceitar a mesma como prova nesse sentido e se, porventura, o fizer comete um erro que não tem a virtude de tornar legítimo esse “documento” como meio idóneo para prova da identidade.

    X – Pelo que uma fotocópia adulterada dessa fotocópia não pode, nem deve, ser qualificada como falsificação de documento, porque foi obtida através da reprodução mecânica de um não documento (suporte material não apto a provar factos juridicamente relevantes).

    XI – Pelo que deve a referida interpretação, em função de tudo aquilo que já foi referido, ser considerada inconstitucional (por desrespeito do art.29.º, n.º 1 da CRP) por violar o princípio da tipicidade e da legalidade criminal, dado estarem excluídas do referido preceito as fotocópias.

    XII – Caso assim não se entenda, então a norma do art.º 255.º, alínea a)do CP deverá ser julgada inconstitucional (ao abrigo do mesmo artigo da nossa Lei Fundamental)por possuir um teor incriminatório extremamente vago, quando conjugado com o crime de falsificação, que não permite a delimitação exacta das situações abrangidas.

    XIII – Com efeito, a interpretação supra referida do art.º 255.º, al. a), do Código Penal, deve ser declarada inconstitucional, por violação das seguintes disposições, todas da Constituição da República Portuguesa:

    - art. 2.º, uma vez que ofende o sub-princípio da confiança inerente ao princípio do Estado de Direito Democrático;

    - art. 29.º, n.º 1, porquanto o tribunal recorrido acabou por fazer uma aplicação analógica, não assumida, do preceito em causa;

    - art. 202º, n.º 1, na medida em que, assim, se impede a administração da justiça, a qual é um dever;

    - art. 203º, pois excepciona a sujeição do tribunal à lei vigente; e ainda

    - art., 204º, já que aplica normas inconstitucionais.

    XIV – Pretende-se ainda que seja apreciada a conformidade constitucional da interpretação conjugada das normas dos artigos 30º, n.º 1, 217.º, n.º 1 e 256.º, n.º 1, al. a) do Código Penal. Devendo julgar-se inconstitucional (por violação do estatuído no art.º 29.º, n.º 5 da CRP) a dupla valoração e punição que resulta do concurso efectivo entre os crimes de burla e falsificação de documentos.

    XV – O Acórdão recorrido interpretou e aplicou as normas conjugadas dos art.ºs. 30.º, n.º 1, 217.º, n.º 1 e 256.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, com o seguinte sentido e alcance:

    Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido em concurso efectivo pelos crimes de burla e falsificação de documentos desde que esta tenha sido o artifício concretamente utilizado

    .

    XVI – O argumento da disparidade dos bens jurídicos tutelados pelos crimes em concurso é irrelevante uma vez que a homogeneidade do bem jurídico está longe de ser conditio sine qua non do concurso aparente de infracções, existindo múltiplos exemplos nesse sentido.

    XVII – A questão não está, no que ao caso concreto importa, na similitude ou diferença dos bens jurídicos protegidos. O problema reside, antes, em saber se uma determinada conduta, melhor, um “pedaço de vida” que integra uma determinada conduta criminalmente relevante, está ou não contida em outro comportamento típico mais abrangente.

    XVIII – Sucede que um mesmo “pedaço da vida” acaba por ser duplamente valorado, censurado e punido quando se condena alguém pela prática, em concurso efectivo, de um crime de falsificação de documento e por um outro de burla. Uns factos (a falsificação do documento) se traduzem num crime-meio que visa, sem qualquer autonomia, a obtenção de um crime-fim (a burla) do qual a falsificação é completamente instrumental e dependente.

    XIX – A supra referida interpretação conjugada dos artigos 30.º, n.º 1, 217.º, n.º 1 e 256.º, n.º 1, al. a) do Código Penal deve ser declarada inconstitucional, por violação das seguintes disposições, todas da Constituição da República Portuguesa:

    - art. 2º, uma vez que ofende o sub-princípio da confiança inerente ao princípio do Estado de Direito Democrático;

    - art. 29.º, n.º 5, porquanto o tribunal recorrido acabou por valorar e punir criminalmente duas vezes o mesmo facto através da convocação de normas penais diferentes, numa clara violação do princípio ne bis in idem;

    - art. 202.º, n.º 1, na medida em que, assim, se impede a administração da justiça, a qual é um dever;

    - art. 203.º, pois excepciona a sujeição do tribunal à lei vigente; e ainda

    - art. 204.º, já que aplica normas...

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