Acórdão nº 657/06 de Tribunal Constitucional (Port, 28 de Novembro de 2006

Magistrado ResponsávelCons. Mota Pinto
Data da Resolução28 de Novembro de 2006
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 657/2006

Processo n.º 777/04

  1. Secção

Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto

(Cons. Mário Torres)

Acordam na 2.ª secção do Tribunal Constitucional:

  1. Relatório

    AUTONUM 1.O representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), do acórdão daquele Tribunal, de 11 de Maio de 2004, que recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do princípio da dignidade humana, da norma do artigo 824.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Código de Processo Civil, enquanto permite “a penhora de qualquer percentagem no salário de executados quando tal salário é inferior ao salário mínimo nacional ou quando, sendo superior, o remanescente disponível para os mesmos, após a penhora, fique aquém do salário mínimo nacional”. Pode ler-se nesse aresto:

    (…)

    No presente recurso, a questão que fundamentalmente se coloca, face ao quadro conclusivo da alegação do agravante, é a de saber se o despacho recorrido, ao decidir que não pode proceder-se à penhora de 1/3, ou até mesmo de 1/6, do salário auferido por qualquer dos executados, deve ser revogado, por pôr em causa o despacho de fls. 51, que determinou a penhora de 1/3 de tais vencimentos e constitui caso julgado.

    Com efeito, no entender do agravante, estas penhoras de 1/3 dos vencimentos dos executados não constituem actos inconstitucionais, em virtude de, mesmo perante as declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, terem de ser ressalvados os casos julgados, por razões de segurança, equidade e interesse público.

    Cremos, porém, que não lhe assiste razão.

    A penhora de direitos de crédito do executado (como são os salários), contra a respectiva entidade devedora (empregador), está sujeita à forma de notificação ao terceiro devedor, prevista no artigo 856.º, n.º 1, do CPC, assim como ao regime previsto nos n.ºs 2 a 6 deste mesmo artigo 856.º, e nos artigos 858.º a 860.º do mesmo Código.

    Tal penhora de créditos só se considera efectuada no momento em que a entidade devedora é notificada de que o crédito do executado fica à ordem do tribunal da execução, sendo que, após esta notificação, não só o crédito fica à ordem do tribunal, como o devedor do executado deixa de poder pagar a este.

    Pelo que, chegado o momento do vencimento da obrigação, o terceiro devedor só se liberta pagando de modo que a quantia seja afectada aos fins da execução, nos termos do artigo 860.º, n.º 1, do CPC.

    Assim, tratando-se, como se trata, no caso em apreço, de penhora de rendimentos periódicos, é no momento em que cada uma dessas prestações periódicas se vence que se tem de proceder ao apuramento da dedução a fazer-lhes e que, se for caso disso, se tem de respeitar os limites do artigo 824.º do CPC, destinados a proporcionar a satisfação das necessidades dos executados.

    O Tribunal Constitucional, pelo Acórdão n.º 177/2002, publicado no Diário da República, I Série-A, de 2 de Julho de 2002, julgou inconstitucional, com fundamento na violação do princípio da dignidade humana, a norma que resulta da conjugação do disposto na alínea b) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 824.º do CPC, na parte em que permite a penhora até 1/3 das prestações periódicas, pagas ao executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia social ou de pensão, cujo valor não seja superior ao salário mínimo nacional.

    Por outro lado, de harmonia com o disposto no n.º 3 do artigo 824.º do CPC, na redacção do Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro, e aqui aplicável, pode o juiz excepcionalmente isentar de penhora os rendimentos a que alude o n.º 1 do mesmo artigo, tendo em conta a natureza da dívida exequenda e as necessidades do executado e seu agregado familiar.

    Ora, em face da factualidade apurada nos autos (e supra descrita em III), verificamos que o valor dos vencimentos mensais líquidos dos executados corresponde, sensivelmente, ao do salário mínimo nacional.

    Por outro lado, também não nos podemos olvidar que faz parte do agregado familiar dos executados uma filha menor destes, com a qual suportam as inerentes despesas, ficando os seus salários, se divididos pelos três, muito abaixo do salário mínimo nacional.

    Aliás, foram as reconhecidas dificuldades económicas do agregado familiar dos executados, constituído por três pessoas, que levaram a que beneficiassem do apoio judiciário que lhes foi concedido, gozando mesmo de presunção de insuficiência económica, que não foi ilidida.

    Nesta circunstância, e de acordo com a argumentação desenvolvida no citado acórdão do Tribunal Constitucional, entendemos que é inconstitucional, com fundamento na violação do princípio da dignidade humana, a penhora de qualquer percentagem no salário dos executados, por qualquer deles ser de considerar inferior ao salário mínimo nacional (disposições conjugadas do artigo 1.º, da alínea a) do n.º 2 do artigo 59.º e dos n.ºs 1 e 3 do artigo 63.º da Constituição).

    Assim sendo, não só não se pode proceder à penhora de qualquer percentagem do salário auferido pelo executado, como também não se pode manter a penhora de qualquer percentagem do salário auferido pela executada, sendo de autorizar o levantamento dos depósitos correspondentes aos descontos efectuados nos vencimentos desta, nos termos referidos no douto despacho recorrido.

    Contrariamente ao alegado pelo recorrente, não se pôs em causa, no despacho recorrido, o despacho exarado a fls. 51, que apenas tinha determinado a penhora de 1/3 dos vencimentos dos executados, pois, como já supra se disse, tratando-se de uma penhora de rendimentos periódicos, o terceiro devedor só se liberta quando é chegado o momento do vencimento da obrigação, pagando, então, de modo que a quantia seja afectada aos fins da execução (artigo 860.º, n.º 1, do CPC).

    Mesmo perante o conceito de caso julgado – designando as situações que, de forma definitiva e irretractável, foram fixadas por sentença judicial –, anotam os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira que a solução já será diferente se as relações não estiverem ainda completamente exauridas.

    Não se vislumbra, no douto despacho recorrido, violação dos princípios da igualdade, segurança jurídica, protecção da confiança e estabilidade da instância, invocados pelo agravante, nem de qualquer dispositivo legal ou constitucional.

    E improcedem, portanto, sem necessidade de mais considerações, todas as conclusões da alegação do presente recurso.

    Já no Tribunal Constitucional o representante do Ministério Público apresentou alegações em que concluiu:

    1 – Não é materialmente inconstitucional o regime constante do artigo 824.°, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código de Processo Civil (na redacção anterior à emergente do Decreto-Lei n.º 38/2003) que se traduz em não considerar estabelecida a impenhorabilidade, total e automática, dos rendimentos do trabalho, auferidos pelo executado que não disponha de outros bens penhoráveis, e que não excedam o montante do salário mínimo nacional.

    2 – O interesse na sobrevivência condigna do executado é, neste caso, assegurado, em termos bastantes, pela possibilidade, outorgada ao juiz pelo n.º 3 de tal preceito legal, de realizar um juízo de ponderação casuístico e prudencial, articulando os interesses do exequente e executado, de acordo com a natureza do débito (que pode ser proveniente de uma obrigação alimentar ou radicar na aquisição de bens ou serviços destinados precisamente a salvaguardar a sobrevivência do executado, satisfazendo as suas necessidades básicas de alimentação e habitação) e as necessidades do devedor e seu agregado familiar.

    3 – Não viola o princípio da igualdade a circunstância de – quanto a pensões ou regalias sociais de valor não superior ao salário mínimo – vigorar (por imposição da própria jurisprudência do Tribunal Constitucional) um regime de impenhorabilidade total e “automática”, já que tais rendimentos assentam ou pressupõem uma situação de particular debilidade, incapacidade ou fragilidade económica do executado, que se não verifica necessariamente quando estiverem em causa rendimentos profissionais, mesmo que de montante reduzido.

    4 – Termos em que deverá proceder o presente recurso.

    Os recorridos não apresentaram contra-alegações.

    Após inscrição do processo em tabela e mudança do relator por vencimento, cumpre elaborar a decisão.

  2. Fundamentos

    AUTONUM 2.O artigo 824.º do Código de Processo Civil (CPC), na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro, dispunha:

    “1. Não podem ser penhorados:

    1. Dois terços dos vencimentos ou salários auferidos pelo executado;

    2. Dois terços das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante.

    1. A parte penhorável dos rendimentos referidos no número anterior é fixada pelo juiz entre um terço e um sexto, segundo o seu prudente arbítrio, tendo em atenção a natureza da dívida exequenda e as condições económicas do executado.

    2. Pode o juiz excepcionalmente isentar de penhora os rendimentos a que alude o n.º 1, tendo em conta a natureza da dívida exequenda e as necessidades do executado e seu agregado familiar.”

    No presente processo, está em causa, nos termos do requerimento de recurso, a apreciação da constitucionalidade deste artigo 824.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Código de Processo Civil, na medida em que permite “a penhora de qualquer percentagem no salário de executados quando tal salário é inferior ao salário mínimo nacional ou quando, sendo superior, o remanescente disponível para os mesmos, após a penhora, fique aquém do salário mínimo nacional” – ou, por outras palavras, enquanto não prevê uma impenhorabilidade, total e automática, dos rendimentos do...

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