Acórdão nº 155/07 de Tribunal Constitucional (Port, 02 de Março de 2007

Magistrado ResponsávelCons. Gil Galvão
Data da Resolução02 de Março de 2007
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 155/2007

Processo n.º 695/06

  1. Secção

Relator: Conselheiro Gil Galvão

Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:

I – Relatório

  1. Nos autos de um processo de inquérito, pendentes no DIAP do Porto, em que se investigam factos que, em abstracto, são susceptíveis de integrar a prática de dois crimes de homicídio qualificado, terão sido colhidos no local do crime “vestígios biológicos, alguns deles referentes aos autores dos crimes”. Só posteriormente tendo sido identificados suspeitos, entretanto ouvidos como arguidos, foram então estes “convidados a prestar consentimento para a recolha de zaragatoas bucais com vista à identificação do seu perfil genético [...] e comparação com o dos vestígios biológicos acima referidos”, tendo, todavia, negado tal consentimento. Nestas circunstâncias, considerando essencial que se procedesse a “exame na pessoa dos arguidos tendo como finalidade a colheita de vestígios biológicos para determinação do seu perfil genético e subsequente comparação com o dos vestígios biológicos colhidos no local do crime” e que o arguido “pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente” à realização do mencionado exame, foi proferido pelo Ministério Público, em 12 de Maio de 2005, despacho determinando nomeadamente que o arguido e ora recorrente, A., comparecesse nas instalações do Instituto Nacional de Medicina Legal do Porto, para que aí fosse sujeito à realização de exame médico-legal com vista à obtenção de vestígios biológicos, “sempre na medida do estritamente necessário, adequado e indispensável à prossecução do fim a que se destinam.”

  2. Em 20 de Setembro de 2005, naquele Instituto, procedeu-se à referida diligência. Do respectivo auto consta que “foi perguntado ao arguido se o faria voluntariamente ou se se oporia a tal diligência”, tendo o mesmo feito saber que “havia sido dirigido aos autos [...] um requerimento para que fosse posto cobro imediato à pretendida recolha coactiva de vestígios biológicos, uma vez que a mesma careceria em absoluto de suporte legal [...] sendo por isso absolutamente intrusiva e ofensiva da integridade pessoal do arguido [...] qualquer colheita realizada contra a sua vontade e ou com uso da força [...]”. Perante esta situação o arguido assinou uma declaração de recusa do acto, tendo, então, sido advertido “que a diligência iria ter lugar, mesmo que para tal fosse necessário o recurso à força.” Face a esta advertência, o arguido, “que continuou a demonstrar que era contrário à diligência”, afirmou, contudo, que “não iria exercer qualquer acto de violência, para quem quer que seja”, pelo que, “de maneira ordeira e abrindo a boca deixou efectivar a recolha de saliva, não sem antes reafirmar que o fazia contra a sua vontade. Desta forma, foi realizado o acto em questão.”

  3. No dia seguinte, o arguido requereu ao Juiz de Instrução Criminal que fosse declarada ilegal a prova obtida através da sua sujeição coactiva à colheita de saliva realizada no dia anterior. Por decisão daquele Juiz foi julgada “improcedente a invocada nulidade e consequente proibição de valoração como prova, do resultado da análise da saliva colhida através de zaragatoa bucal efectuada ao arguido [...]”.

  4. Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, tendo formulado as seguintes conclusões:

    “I. No direito português vigente só o consentimento livre e esclarecido do arguido pode legitimar a sua submissão a uma colheita de vestígios biológicos para análise de ADN;

    1. Uma vez que o arguido e ora recorrente manifestou a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita, foi manifestamente ilegal e até criminalmente ilícita a sua realização coactiva, por manifesta falta do indispensável suporte legal - lacuna essa que o intérprete e aplicador da lei não estão, por si, legitimados a colmatar;

    2. Mercê disso, dever-se-ia ter reconhecido e declarado a ilegalidade da sobredita colheita, nos termos em que a mesma teve lugar, com todas as legais consequências, a começar pela proibição absoluta de valoração da(s) prova(s) assim obtida(s) e sem esquecer a devida instauração do adequado procedimento criminal contra todos quantos determinaram, efectuaram, colaboraram ou por qualquer forma participaram na dita colheita ilegal, assim incorrendo na prática de um crime contra a integridade pessoal do ora recorrente, em manifesta violação do disposto, entre outros, no art. 25°, n° 1, da CRP, e no art. 143.°, n°1, do CPen.;

    3. Decidindo de forma diversa, a Mm.a Juíza a quo violou, entre outras, as normas contidas nos arts. 25.°, 26.°, n° 1, e 32.°. nº 8, todos da CRP, o art. 8° da CEDH, o art. 12 da DUDH, o art. 17° do PIDCP e os arts 126, n.° 1, 2 als a) e c) e 3, bem como o art 172, n° 1, ambos do CPPen;

    4. De resto, sempre estaria ferida de inconstitucionalidade a norma do art. 172.°, n.° 1, do CPPen., interpretada no sentido de possibilitar ao M° P° ordenar a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para determinação do seu perfil genético, quando este último tenha manifestado a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita;

    5. Da mesma forma que seria igualmente inconstitucional a norma do art. 126.°, nos 1, 2 - als. a) e c), e 3, do CPPen., quando interpretada no sentido de considerar válida e, consequentemente, susceptível de ulterior utilização e valoração, a prova obtida através da colheita efectuada nos moldes descritos na conclusão anterior”.

  5. Em 17 de Janeiro de 2006, o recorrente juntou aos autos um parecer do Professor Manuel da Costa Andrade, em que, no essencial se sustenta que “no direito positivo vigente em Portugal não é juridicamente admissível impor a recolha coactiva de substâncias biológicas nem a sua ulterior e não consentida análise genética com vista à determinação do perfil genético para fins de processo criminal”, uma vez que não existe “uma lei específica que as autorize e prescrev[a] o respectivo regime”, não oferecendo “as normas da lei processual-penal relativas a perícias [...] e exames [...], bem como [...] os dispositivos da lei que estabelece o regime das perícias médico-legais [...], como ainda os preceitos pertinentes (sobretudo o artigo 152º) do Código da Estrada”, “a indispensável legitimação penal.” E, assim sendo, “no plano processual-penal, o direito vigente em Portugal prescreve uma intransponível proibição de produção de prova contra a recolha coerciva das substâncias biológicas e contra a sua análise genética não consentida. Uma proibição cuja violação só pode ter como consequência a correspondente proibição de valoração das provas obtidas”.

  6. O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 3 de Maio de 2006, decidiu julgar o recurso improcedente. Para tanto, fundamentou, assim, a decisão:

    “[…] O que aqui está em causa apreciar não é só a legalidade da decisão impugnada enquanto acto ou meio ordenativo de produção de um meio de prova, mas sim, a legalidade da decisão ao determinar a eventual execução forçada do exame, isto é, ao impor coactivamente ao recorrente a sua submissão ao exame. Tal como vem referido no Recurso n.° 3261/01 do Tribunal da Relação de Coimbra relatado pelo Sr. Conselheiro Dr. Oliveira Mendes e que vamos seguir de perto “certo é que o direito que vimos de analisar - à integridade corporal e à autodeterminação corporal - conquanto a Constituição da República o declare inviolável (art.25°, n.°1), não é absoluto, posto que o art.18° daquele diploma legal ao estatuir que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, deve ser interpretado no sentido de que apenas é ilegítima toda a restrição que atinja o conteúdo essencial de cada um dos direitos subjectivos individuais, isto é, que atente contra as exigências (mínimas) de valor que, por serem a projecção da ideia de dignidade humana, constituem o fundamento (a essência) de cada preceito constitucional nesta matéria...”

    “Daí que o nosso ordenamento jurídico preveja várias situações em que o direito à integridade corporal e o direito à autodeterminação corporal cedem face a interesses comunitários e sociais preponderantes, quer na área da saúde pública, quer na área da defesa nacional, quer na área da justiça, quer noutras áreas.

    Assim sucede quando se impõem certas condutas corporais como a vacinação obrigatória, os radiorrastreios, o tratamento obrigatório de certas doenças contagiosas, a proibição de dopagem dos praticantes desportivos, o serviço militar obrigatório ou a prestação de serviço cívico e a realização de perícia psiquiátrica e de perícia sobre a personalidade”.

    Ora, embora entendamos que o exame ordenado nos autos, constitua “meio de prova susceptível de ofender o direito à integridade corporal e o direito à autodeterminação corporal do recorrente, designadamente no caso de este não aderir ao exame, isto é, no caso de recusa, posto que o mesmo se traduz numa intervenção não autorizada no seu corpo, isto é, lesiva da sua integridade corporal e da integridade do seu sistema volitivo, quer por afectar o seu corpo físico quer por afectar a sua capacidade de decidir e de agir, cremos que podem e devem ser concretizados, mesmo que compulsivamente (exame e perícia), muito embora limitados à colheita de cabelos, saliva, urina ou sangue, já que justificados pela necessidade da descoberta da verdade material e não violadores do conteúdo essencial daqueles direitos fundamentais do recorrente”. Vejamos.

    “Como já atrás ficou consignado, apenas é ilegítima a restrição dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados em caso de conflito com direitos ou valores da mesma matriz, quando a restrição atente contra as exigências (mínimas) de valor que, por serem a projecção da ideia de dignidade humana, constituem o fundamento (a essência) de cada preceito constitucional nesta matéria, sendo...

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