Acórdão nº 06P1574 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 14 de Junho de 2006

Magistrado ResponsávelSILVA FLOR
Data da Resolução14 de Junho de 2006
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: I. Na Vara Mista de Coimbra foi julgado em processo comum com intervenção do tribunal colectivo AA, o qual foi condenado como autor de dois crimes de incêndio, previstos e punidos pelo artigo 272.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, nas penas de 3 anos de prisão e 20 meses de prisão. Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 4 anos de prisão.

Inconformado, o arguido interpôs recurso para a Relação de ..., que, por acórdão de 1-06-2005, negou provimento ao recurso.

De novo inconformado, o arguido recorreu para este Supremo Tribunal, que, por acórdão de 15-12-2005, anulou o acórdão recorrido, para que a Relação de ... conhecesse de uma questão de facto suscitada pelo recorrente e sobre a qual não houve pronúncia - a impugnação da matéria de facto tida por assente pela 1.ª instância.

Em novo acórdão, datado de 1-03-2006, a Relação, suprindo a omissão, julgou não provido o recurso.

O arguido voltou a recorrer para este Supremo Tribunal, requerendo a produção de alegações por escrito, e formulou na motivação do recurso as conclusões quem em seguida se transcrevem.

  1. O Tribunal Colectivo e o Tribunal da Relação cometeram erros notórios na apreciação da prova e fundamentaram a sua convicção em provas nulas e legalmente inadmissíveis.

  2. Não há nos autos nem muito menos se fez em audiência qualquer prova directa e objectiva de que o arguido tenha ateado os fogos; não foram apresentados quaisquer vestígios, indícios materiais ou testemunhos directos e presenciais desses factos, nem sequer de que os incêndios tenham tido origem criminosa.

  3. O tribunal fundamentou a sua convicção apenas no depoimento de algumas testemunhas; mas estas nada disseram sobre os factos em concreto, tendo-se limitado a dizer que, no decurso do inquérito, o arguido afirmou ter sido ele o autor dos fogos.

  4. Os depoimentos das três primeiras testemunhas referidas no acórdão do Tribunal da l.ª instância (inspector da Polícia Judiciária, soldado da GNR e mestre florestal) não podem ser valorados como prova, dado o disposto no n.º 7 do artigo 356 do C.P.P., pois essas testemunhas depuseram apenas sobre o conteúdo das declarações alegadamente prestadas pelo arguido no inquérito, em cuja recolha participaram e cuja leitura em audiência não era permitida, dado o disposto no referido artigo 356 e no artigo 357 do mesmo Código, pois não foram feitas perante um juiz e o arguido não solicitou a sua leitura.

  5. Que assim é, resulta apodicticamente do douto "voto de vencido" exarado pelo Exmo. Senhor Juiz-Desembargador ....

  6. A quarta testemunha em que o tribunal se baseou - BB - limitou-se a corroborar que o arguido disse ter sido o autor dos fogos, e não merece credibilidade, pois ela própria confessou estar zangada com o arguido.

  7. A confissão, desacompanhada de qualquer outro elemento de prova, não é suficiente para fundamentar uma condenação.

    Muito menos pode sê-lo a pseudo-confíssão alegadamente feita pelo arguido e por este negada na audiência e no próprio inquérito.

  8. A "reconstituição do facto", nos termos do art. 150 do C.P.P., apenas pode servir para determinar "se um facto poderia ter ocorrido de certa forma". Assim, da reconstituição efectuada no inquérito apenas poderia concluir-se que os incêndios poderiam ter sido ateados pelo arguido, mas não que efectivamente o foram.

  9. Nem sequer se apurou como é que o arguido poderia ter ateado os fogos. Na acusação diz-se que foi com fósforos, mas o tribunal deu esse alegado facto como não provado, não indicando no entanto qualquer outro "modus operandi".

  10. Há indícios de que os incêndios poderão ter sido ateados por outrem que não o arguido, designadamente pelos ocupantes de uma carrinha branca que foi vista no local imediatamente antes dos incêndios.

  11. Perante tal indigência de provas, era impossível o tribunal ter a certeza de que foi o arguido que ateou os fogos. Quando muito, poderia ficar na dúvida quanto a esse facto. Mas, na dúvida, deveria ter absolvido o arguido.

  12. Em consequência de tudo o que antecede, deve o arguido ser absolvido.

  13. Mas mesmo que assim se não entendesse, sempre deveria considerar-se que os dois incêndios constituiriam um crime continuado, por estarem preenchidos os requisitos do n.° 2 do art. 30 do Código Penal.

  14. Esse crime deveria ser punido com a pena aplicada à conduta mais grave que integra a continuação, isto é, ao primeiro incêndio, portanto com a pena de três anos de prisão que o tribunal aplicou a esse primeiro incêndio.

  15. E sendo aplicada esta pena, deveria ela ser suspensa na sua execução, por se encontrarem preenchidos os requisitos do n.° l do art. 50 do C. P..

  16. O tribunal da l.ª instância e o Tribunal da Relação violaram as normas dos artigos 356, 357 e 125 do Código de Processo Penal, que interpretaram no sentido de valorar como prova os depoimentos dos agentes que participaram na recolha de declarações ao arguido no inquérito sobre o conteúdo dessas declarações, quando tais depoimentos nem sequer deviam ter sido admitidos; e o artigo 150 do mesmo Código, que interpretaram no sentido de que a reconstituição pode servir de prova de que os factos se passaram de certa forma, quando dela apenas pode concluir-se que os factos poderiam ter-se passado dessa forma.

    Além disso, os referidos tribunais erraram na determinação das normas aplicáveis, pois, a condenar o arguido, deveriam ter aplicado, e não aplicaram, as normas dos artigos 30 n.° l, 79 e 50 do Código Penal, considerando estar-se perante um crime continuado, aplicando a este a pena de 3 anos de prisão e suspendendo a execução dessa pena.

  17. A norma constante do n.° 7 do artigo 356 do Código de Processo Penal, interpretada, como a interpretaram as instâncias, no sentido de que, mesmo nos casos em que o arguido se recuse legitimamente a depor, é válido como prova o depoimento de órgãos de polícia criminal, ou de quaisquer pessoas que, a qualquer título, tenham participado na sua recolha, sobre declarações feitas pelo arguido extraprocessualmente, em "conversas informais" ou no decurso de uma "reconstituição do facto", é inconstitucional, por violação das garantias de defesa do arguido, e portanto da norma constante do n.° l do artigo 32 da Constituição da...

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