Acórdão nº 03B535 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 15 de Maio de 2003 (caso NULL)

Magistrado ResponsávelLUCAS COELHO
Data da Resolução15 de Maio de 2003
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I"A" e filhos, por aquele chamados a intervir a título principal na qualidade de herdeiros de sua esposa B, entretanto falecida, demandaram no tribunal de Barcelos a sociedade C, com sede na mesma cidade, pedindo a condenação desta a indemnizá-los dos danos materiais e morais emergentes da construção de um armazém, da edificação de uma parede com 10 metros de altura e do funcionamento ali de uma tinturaria, levados a efeito pela ré em local estreitamente adjacente ao prédio urbano, com terreno contíguo, propriedade e residência de A e B. Danos, em suma, resultantes da desvalorização do prédio - no montante de 30 000 contos - e dos incómodos ocasionados pelo ruído e trepidação da tinturaria - calculados em 6 000 contos -, no total peticionado de 36 000 000$00. A ré contestou e, a final, a acção veio a ser julgada totalmente improcedente. Os autores apelaram da sentença, circunscrevendo, todavia, o pedido aos danos patrimoniais e reduzindo-o ademais, nesta vertente, para montante «não inferior à desvalorização do imóvel», computada na instrução, mercê de perícia, em 12 469,95 euros, equivalentes a 2 500 000$00. O recurso obteve integral provimento, posto que a Relação de Guimarães, com fundamento, em síntese, no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, condenou a ré a pagar aos autores esta precisa importância. Justamente, do acórdão adrede proferido, em 2 de Outubro de 2002, traz a ré a presente revista. Da respectiva alegação e suas conclusões, à luz da fundamentação da decisão em apreço, flui, como adiante melhor se verá, que o objecto do recurso e as questões, por conseguinte, submetidas à nossa apreciação se reduzem tão-somente ao problema de saber se a questionada construção erigida pela ré merece a qualificação de acto eivado de ilicitude, no pressuposto da obrigação de indemnizar tipificado no preceito a que vem de se aludir. II1. A Relação considerou assentes os factos já dados como provados na 1.ª instância - referenciando respectivamente as alíneas da especificação e os artigos do questionário concernentes -, a saber: «1.º Encontra-se inscrito na Conservatória do Registo Predial a favor do autor o prédio urbano, composto de casa com dois pavimentos, confrontação a Norte e Poente com J (...), a Sul com M (...) e Nascente com caminho, inscrito (...) sob o art. 393.º, e que correspondia ao antigo artigo 215.º, conforme certidão de fls. (...) sendo o referido prédio urbano composto por uma área de terreno composta por 600 m2 - [alíneas a) e b) dos Factos Assentes]. «2.º Em Maio de 1997, a ré iniciou a construção de um armazém, tendo a ré construído no lado nascente e junto ao muro que ladeia a casa de habitação do autor, uma parede com cerca de 10 metros de altura - [alíneas c) e d) dos Factos Assentes]. «3.º Confrontado com a referida construção, o autor encetou diligências junto das autoridades administrativas para impedir a continuação da construção em causa, conforme documento junto a fls. (...) e como consequência da solicitação do autor, a Câmara Municipal de Barcelos, face a uma vistoria à obra e inspecção ao local, constatou que a ampliação a que a ré estava a proceder da sua unidade fabril ultrapassava em 172 m2 o processo de obras aprovado, o que motivou que fosse decretado o embargo de obra, conforme documentos de fls. 24 e 25 cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, sendo que, contudo, a ré continuou com a construção, o que originou que o autor diligenciasse junto daquela instituição, para que outras medidas fossem tomadas, conforme resulta dos documentos de fls. (...) - [alíneas e) a g) dos Factos Assentes]. «4.º Considerando a área do terreno adjacente ao prédio referido em 1. e antes da construção efectuada pela ré, o prédio do autor tinha um valor de mercado de cerca de Esc. 25 000$00 (correspondentes a 124 699 euros e 47 cêntimos), sendo que com a edificação da parede de 10 metros de altura junto ao muro e no circunstancialismo descrito, o imóvel do autor sofreu uma desvalorização comercial de Esc. 2 500 000$00 (correspondentes a 12 469 euros e 95 cêntimos) - (resposta aos quesitos 3.º e 4.º da base instrutória). «5.º A mulher do autor encontrava-se acamada, na altura, há cerca de 15 anos - (resposta ao quesito 10.º da base instrutória).» 2. Alicerçada, pois, na descrita factualidade, considerou a Relação procedente a apelação, com a fundamentação jurídica que seguidamente se resume. A «única questão a decidir», era a de saber se a conduta da ré «preenche os requisitos enunciados no artigo 483.º» do Código Civil (1) - e, mais precisamente, como há momentos se deixou entrever, o requisito da ilicitude -, implicando a «obrigação de indemnizar os autores pelos danos patrimoniais decorrentes da desvalorização do seu prédio» mercê da obra de alargamento das instalações fabris a que procedeu. Neste sentido, o acórdão sub iudicio, explanando em breve excurso as restrições ao conteúdo do direito de propriedade e aos direitos do proprietário prevenidas por remissão no artigo 1305.º do Código Civil, propende num primeiro momento, com a sentença sob recurso, e em face da prova produzida, no sentido de que a problemática construção não violava, por um lado, restrição alguma de direito privado de entre as previstas nos artigos 1344.º e segs. - maxime a invocada com base no artigo 1360.º, n.º 1 - nem, por outro lado, qualquer das restrições de direito público recortadas pelos autores dos artigos 45.º, 58.º e 73.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU) (2). Numa segunda aproximação, ainda, pondera a Relação o disposto no artigo 59.º deste último diploma (3), mas apenas para ilustrar a sensibilidade do legislador do Regulamento à «situação de prédios fronteiros, procurando defendê-los das agressões resultantes de uma elevada altura do prédio a construir», uma vez inexistir em derradeiro termo no processo alegação e prova de factos conducentes «à conclusão segura de que houve violação, por parte da ré, da restrição de direito público contida neste preceito legal». Conclui em todo o caso o aresto que a factualidade provada denuncia «a prática, pela ré, de um acto contra legem». Em primeiro lugar, porque «procedeu à construção de um armazém» e esta «ampliação da sua unidade fabril ultrapassa em 172 m2 o processo de obras aprovado», infracção que determinou a Câmara Municipal de Barcelos a decretar o respectivo embargo. Segundo, porque, «no circunstancialismo descrito, a edificação da dita parede de 10 metros de altura junto ao muro do prédio dos autores, também não pode deixar de ser entendida como contrária ao estatuído» no artigo 121.º do RGEU (4), o qual impõe «que as construções contribuam para a ‘dignificação e valorização estética' do conjunto em que venham a integrar-se». Entendimento este, por seu turno, «perfeitamente contido na causa de pedir invocada pelos autores». «O interesse público que subjaz às referidas normas - observa a Relação de Guimarães - prende-se «com razões de estética, já que a tendência do construtor é muitas vezes a de aproximar a sua construção dos limites do seu terreno e de elevar a altura do seu prédio, por forma a tirar proveito de uma maior área de construção, com prejuízo manifesto do espaço livre entre edificações e, consequentemente, da qualidade urbana no seu conjunto». E colocando-se neste conspecto o problema de saber se tais normas do RGEU que tutelam interesses públicos protegem ou não, outrossim, interesses particulares, podendo o seu desrespeito constituir os infractores em responsabilidade civil extracontratual uma vez verificados os demais pressupostos desenhados no artigo 483.º do Código Civil, o acórdão recorrido, louvando-se numa certa doutrina e jurisprudência, pronuncia-se em sentido afirmativo. Assim, a obra de ampliação da unidade fabril da ré, por excesso de área e excesso de altura de uma das suas paredes, constitui violação do artigo 121.º do RGEU e dos interesses particulares relacionados com o prédio fronteiro, também protegidos pelo normativo. Daí que, verificado o questionado requisito da ilicitude da construção em apreço, e havendo esta determinado uma desvalorização comercial do imóvel dos autores computada em 2 500 000$00, por isso se tenha constituído a ré na obrigação de indemnizar os lesados no mesmo montante (artigos 562.º, 563.º, 565.º e 566.º, do Código Civil). A idêntica solução, de resto, chega a Relação ponderando subsidiariamente o exercício abusivo do direito de propriedade por parte da ré. Com efeito, segundo o artigo 334.º do Código Civil, «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito». Por outro lado - aduz a decisão em revista -, uma vez que «o Código Civil vigente consagrou a concepção objectivista do abuso do direito, não é necessária a consciência malévola, a consciência de se excederem, com o exercício do direito, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico de direito, bastando que se excedam os seus limites, se bem que a intenção com que o titular do direito agiu não deixe de contribuir para a questão de saber se há ou não abuso do direito». Acresce - remata - que o abuso do direito «equivale à falta de direito, gerando as mesmas consequências jurídicas que se produzem quando uma pessoa pratica um acto que não tem o direito de praticar». Em semelhantes pressupostos se integra, por conseguinte, a conduta da ré na edificação do armazém, erguendo «no lado nascente e junto ao muro que ladeia a casa de habitação» dos autores «uma parede com cerca de 10m de altura», assim procedendo a uma ampliação da sua unidade fabril que «ultrapassa em 172m2 o processo de obras aprovado», o que determinou a Câmara a embargá-la, e prosseguindo ainda a construção a despeito do embargo, com a consequente desvalorização do imóvel contíguo em 2 500 000$00. 3. Contra o...

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