Acórdão nº 179/10 de Tribunal Constitucional (Port, 12 de Maio de 2010

Magistrado ResponsávelCons. Pamplona Oliveira
Data da Resolução12 de Maio de 2010
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 179/10

Processo n.º 432/08

  1. Secção

Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira

ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

I Relatório

  1. Em acção de impugnação de paternidade movida por A., em que se suscitou a questão da caducidade da propositura da acção por incumprimento do prazo previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 1842º do Código Civil, o Supremo Tribunal de Justiça, em recurso de revista, julgou inconstitucional a referida norma, recusando a sua aplicação no caso concreto, por considerar que o prazo nela previsto limita desproporcionadamente a possibilidade de impugnação da paternidade a todo o tempo pelo presumido progenitor, ofendendo ao direito à identidade previsto no artigo 26.º da Constituição.

    Ali se decidiu:

    “(…)

  2. Face ao preceituado no art. 1842º n.º 1 alínea a) do C. Civil, dúvidas não pode haver de que ocorreu a dita caducidade do direito de acção, como foi o entendimento das instâncias. Essa norma exige que a acção de impugnação da paternidade pelo marido da mãe seja intentada no prazo de dois anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se pela sua não paternidade. Ora, conjugando a sua afirmação de que as relações sexuais com a mãe do menor cessaram em 1990 e o facto de ter tido conhecimento da sua existência e da data do seu nascimento, pelo menos quando foi citado para a acção de regulação do poder paternal, antes de Março de 1994, desde então estava na posse de factos que lhe permitiam concluir pela sua não paternidade. Pelo que a acção teria de ser proposta, na melhor das hipóteses, até Março de 1996. E só foi intentada em 2005.

    (…)

  3. A questão que se coloca é a de saber se a caducidade em causa estabelece um limite desproporcional ao valor constitucional que o exercício do direito de acção em causa pretende salvaguardar. Por outras palavras, trata-se de averiguar se o dito prazo de caducidade, não permite, na prática, que seja devidamente garantido esse valor.

    (…)

    O Acórdão do TC no 23/06 de 10.01, declarou inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma do nº 1 do art. 1817º nº 1 do C. Civil, que prevê a extinção por caducidade do direito de investigar a paternidade a partir dos 20 anos de idade do filho, conforme o art. 26º nº 1 da Constituição, reconhecendo que o direito do filho ao apuramento da paternidade biológica é uma dimensão do “direito fundamental à identidade pessoal”. Tratando-se de estabelecer a paternidade, invoca-se, pois, o direito à identidade – na vertente de se saber de onde se vem, ou de quem se vem, dos artºs 25.º n.º 1 e 26.º n.º 1 da Constituição – que não seria devidamente acautelado se a acção que o concretiza estivesse sujeita ao dito prazo de caducidade.

    A questão que se vem colocando é a de saber se esta doutrina é aplicável às acções de impugnação da paternidade, que no art. 1842.º n.º 1 alíneas a), b) e c) do C. Civil, estão sujeitas a diversos prazos de caducidade, consoante sejam elas propostas, respectivamente, pelo marido, pela mãe, ou pelo filho.

    No Acórdão do TC nº 473/07 – DR II Série 18.01.08 - , entendeu-se:

    “Há inevitavelmente uma diferença de grau entre a investigação da paternidade, em que pantentemente está em causa o direito à identidade pessoal do investigante (e relativamente ao qual a imposição de um limite temporal pode implicar a violação do direito ao conhecimento da identidade dos progenitores), e a impugnação da paternidade, em que releva a definição do estatuto jurídico do investigante em relação a um vínculo de filiação que lhe é atribuído por presunção legal. (sublinhado nosso)”.

    “…não estará aqui em causa um direito à identidade pessoal, entendida no sentido há pouco explanado do direito ao conhecimento da identidade dos progenitores (que tem apenas relevo para a acção de investigação da paternidade), mas o direito ao desenvolvimento da personalidade na dimensão de um direito de autoconformação da identidade que não poderá deixar de ser reconhecido em relação ao presumido pai...”

    Seria, pois, como que se direito à identidade do filho, apesar de questionado na acção, não fosse o seu objecto directo, ou imediato. O processo destinar-se-ia sobretudo a fazer prevalecer o direito à autoconformação da identidade do pai.

    Por outro lado, diz-se igualmente na decisão que se justificaria uma restrição à verdade biológica, que deixaria de ser “um valor absoluto”, em nome de outras razões, como a da protecção da família conjugal; embora não sendo o direito à identidade do filho que esteja em causa, justificam-se os limites a esse direito, na acção de impugnação com a prevalência de determinados outros valores.

    Entendemos que é, efectivamente, o direito à identidade que está em causa na acção de impugnação, embora mediado pelo direito do pai presumido de ilidir a presunção de paternidade. São duas faces de uma única realidade.

    (…)

    No Acórdão do TC n.º 609/07 de 11.12.07, versando sobre a hipótese da acção de impugnação ser movida pelo filho maior ou emancipado, consignou-se que: “as razões que estiveram na origem da declaração da inconstitucionalidade do mencionado artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil estão outrossim para a disposição contida no art. 1842º nº 1, alínea c) do mesmo Código.

    Não se antevê que o mencionado prazo de caducidade se justifique, quer dizer, que seja necessário e proporcional face aos valores que estão em causa, sempre que uma questão de filiação é colocada e que se afaste a possibilidade do direito ser conforme à realidade em homenagem a essas restrições. (sublinhado nosso)”.

    Nesta decisão, o direito constitucional a salvaguardar é, por isso, também o direito à identidade, mas sem se fazer distinções entre as situações de investigação e as de impugnação, ou seja, como refere, “sempre que uma questão de filiação é colocada”.

    É certo que a decisão em apreço, tratava apenas da hipótese da acção de impugnação ser movida pelo filho maior ou emancipado, sendo unicamente em relação a esta modalidade que declarou a inconstitucionalidade do prazo de caducidade. Contudo, as razões aduzidas devem valer também para o caso do autor da impugnação ser o pai.

    (…)

    As razões de segurança jurídica, fundadas na paz social que advém dum quadro jurídico-familiar estabilizado, mesmo que não correspondendo à verdade biológica, deixam de fazer sentido perante o devir social. É este bem um caso que ilustra que a vida flui como areia por entre os dedos da lei. O que hoje causaria mais alarme social, quando os testes de ADN são de fácil acesso mesmo fora do âmbito da Justiça, é que esta fosse incapaz de reconduzir a sua verdade à verdade dos genes que de todos pode ser conhecida. Tratar-se-á duma nova ética, mas no fundo reconduz-se à ética primordial do primado da família ou comunidade natural. E isto sobreleva perante o “escândalo” de uma situação familiar com porventura dezenas de anos vir a ser “abalada”, por uma impugnação, que, pelo que já consignámos, nunca deve ser considerada tardia.

    O prazo em questão apresenta-se como uma salvaguarda desproporcional deste segundo grupo de valores, face à defesa do direito constitucional do direito à identidade do art. 26.º n.º 1 da Constituição.

    Logo esse prazo, o do art. 1842.º nº 1 alínea a) do C. Civil, na medida em que é limitador da possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade, é inconstitucional.

    Assim, não se verifica a caducidade da acção.(…)”

  4. É desta decisão que o Ministério Público interpõe recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 70.º n.º 1 alínea a) e 72.º n.ºs 1 alínea a) e 3 da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC), nos seguintes termos:

    “O representante do Ministério Público, nesta Secção Cível, vem, ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a) e 72.º, n.ºs 1, alínea a) e 3 da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro, interpor recurso para o Tribunal Constitucional do douto acórdão de fls. 170/175, na justa medida em que decidiu julgar inconstitucional a norma do artigo 1842.º, n.º 1, alínea a) do Código Civil, por violadora do princípio constitucional do direito à identidade, contemplado no artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República, que, como tal, não aplicou (…).”

  5. O recurso foi admitido. Já no Tribunal Constitucional as partes foram convidadas a alegar.

    O Ministério Público recorrente conclui:

    “(…)

  6. A norma constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 1842.º do Código Civil, ao atribuir ao marido da mãe o direito de impugnar a paternidade presumida no prazo de 2 anos, contados do conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade, garante, em termos efectivos e adequados, o direito ao estabelecimento da verdade biológica, traduzindo uma adequada ponderação entre o interesse do impugnante em destruir uma paternidade presumida que considera sem base biológica e os interesses do filho – afectado por tal acção “negatória” da paternidade, em que figura como réu – e da estabilidade e protecção da família conjugal.

  7. Não pode inferir-se da Constituição que o único modelo, constitucionalmente admissível, em sede de acções de estabelecimento ou de impugnação de paternidade, seja o da absoluta imprescritibilidade de todas elas, incluindo as acções “negatórias”, que extinguem a própria relação jurídica.

  8. Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com o juízo de não inconstitucionalidade da norma desaplicada no douto Acórdão recorrido.

    (…)”

  9. Não foram apresentadas contra-alegações.

    II Fundamentação

  10. Em primeiro lugar, impõe-se apreciar a oportunidade de conhecer do recurso, face à alteração legislativa entretanto determinada pela Lei n.º 14/2009 de 1 de Abril.

    O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da LTC, para apreciação do artigo 1842º, nº 1, alínea a) do Código Civil, cuja redacção era a seguinte, à data da prolação do acórdão recorrido:

    1 – A acção de impugnação de paternidade pode ser intentada: a) Pelo marido, no...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO
2 temas prácticos
  • Acórdão nº 747/22 de Tribunal Constitucional (Port, 04 de Novembro de 2022
    • Portugal
    • 4 de novembro de 2022
    ...de prazos preclusivos do direito de ação, ao menos quando o respetivo titular fosse o presumido pai (v. Acórdãos do TC n.ºs 589/07, 593/09, 179/10, 446/10, 39/11, 449/11, 634/11, Acórdão 247/13, este último remissivo para decisão sumária O debate que se manteve a propósito da ação de invest......
  • Acórdão nº 295/12.7T6AVR.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 02 de Julho de 2013
    • Portugal
    • 2 de julho de 2013
    ...[13] V.g., Acs. de 17.04.08, 21.09.10 e 06.09.11. [14] Acs. do STJ de 25.03.10 e de 19.06.12, www.dgsi.pt. [15] Acs. do TC nºs 589/2007, 179/2010, 446/2010, 39/2011, 449/2011 e [16] São múltiplos e de natureza diversa os interesses tutelados pelo direito ao nome - constituído por vocábulos ......
2 sentencias
  • Acórdão nº 747/22 de Tribunal Constitucional (Port, 04 de Novembro de 2022
    • Portugal
    • 4 de novembro de 2022
    ...de prazos preclusivos do direito de ação, ao menos quando o respetivo titular fosse o presumido pai (v. Acórdãos do TC n.ºs 589/07, 593/09, 179/10, 446/10, 39/11, 449/11, 634/11, Acórdão 247/13, este último remissivo para decisão sumária O debate que se manteve a propósito da ação de invest......
  • Acórdão nº 295/12.7T6AVR.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 02 de Julho de 2013
    • Portugal
    • 2 de julho de 2013
    ...[13] V.g., Acs. de 17.04.08, 21.09.10 e 06.09.11. [14] Acs. do STJ de 25.03.10 e de 19.06.12, www.dgsi.pt. [15] Acs. do TC nºs 589/2007, 179/2010, 446/2010, 39/2011, 449/2011 e [16] São múltiplos e de natureza diversa os interesses tutelados pelo direito ao nome - constituído por vocábulos ......

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT