Acórdão nº 295/12.7T6AVR.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 02 de Julho de 2013

Magistrado ResponsávelHENRIQUE ANTUNES
Data da Resolução02 de Julho de 2013
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: 1.

Relatório.

O Ministério Público propôs, no Juízo de Família e Menores de Aveiro, Comarca do Baixo Vouga, contra A… e C…, e F…, acção declarativa, com processo comum, ordinário pelo valor, pedindo a declaração de que os dois primeiros não são pais do último, e a eliminação, do registo de nascimento deste, da filiação, materna e paterna, e da avoenga, e a declaração da perda, pelo mesmo, dos apelidos P….

Fundamentou esta pretensão no facto de F… não ser filho biológico de A… e C...

Os réus A… e C… alegaram, em contestação, designadamente que F… lhes foi entregue no dia do parto, que a mãe tinha hábitos alcoólicos e relacionamentos promíscuos por dinheiro e o pai é completamente desconhecido, que nunca, até à data, ninguém questionou a sua maternidade e paternidade, que F… foi criado sempre como seu filho, tendo vivido consigo e sustentado e educados unicamente por si, que F… sempre os tratou como pai e mãe, tendo para com eles um elo afectivo intenso, obedecendo-lhes e respeitando-os como filho, que sempre o amaram e consideraram como tal, formando uma família unida, que, por F… ter vindo viver para Aveiro vieram também para Aveiro para estarem próximos dele, que estão todos os dias com ele, com a companheira e com os seis netos, que têm o seu apelido, que a comunidade cigana em que se inserem sempre tomou por adquirido que F… é seu filho e que os filhos deste são seus netos e que o artº 1807 do Código Civil é inconstitucional por violação do artº 36 da Constituição de República Portuguesa.

O Ministério Público limitou-se a replicar que está em causa apenas a reposição da verdade biológica relativamente à maternidade/paternidade do réu F...

O Sr. Juiz de Direito, por despacho de 8 Janeiro de 2013, depois de observar, designadamente, a conclusividade do resultado obtido através do meio de prova científica apresentada, perícia de investigação da paternidade de perfil genético de ADN, ordenou a notificação dos réus partes para, no prazo de 10 dias, virem ao processo informar se aceitam que o Tribunal profira de imediato sentença decidindo a causa, sem necessidade de um julgamento, e declarou que o seu silêncio seria entendido como aceitação tácita.

Como os réus contestantes nada disseram, e o Ministério Público declarou, quando o processo lhe foi continuado com vista, nada ter a opor, foi logo proferida, no despacho saneador, decisão que - sem dizer uma só palavra sobre a questão da inconstitucionalidade do artº 1807 do Código Civil, por violação do artº 36, nºs 1, 4 e 6 da Constituição da República Portuguesa - alegada na contestação – julgou a acção inteiramente procedente.

É esta sentença que os réus A… e C… impugnam no recurso - no qual pedem que se declare a nulidade desta sentença ou, subsidiaria ou alternativamente, a sua revogação – tendo rematado a sua alegação com estas conclusões: … Na resposta ao recurso, o Ministério Público concluiu, naturalmente, pela improcedência dele.

  1. Factos provados.

    O Tribunal de que provém o recurso especificou, na sentença, como fundamentos de facto: 1 – F…, aqui 3º Réu, foi registado na … como tendo nascido no dia 16/06/1981 na freguesia de …, sendo filho de C… e de A…, aqui 1º e 2º Réus.

    2 – Tal assento de nascimento foi lavrado apenas com base em declarações do 2º Réu prestadas no dia 14/06/1982.

    3 – No entanto, não foi a 1ª Ré quem deu à luz o 3º Réu, nem o 2º Réu é o pai biológico daquele.

    4 – Com efeito, do resultado da perícia hematológica de investigação de parentesco realizada, prova científica, concluiu-se que o 1º e 2º Réus são excluídos como progenitores biológicos do 3º Réu.

  2. Fundamentos.

    3.1.

    Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

    Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

    A função do recurso ordinário é, no nosso direito, a reapreciação da decisão recorrida e não um novo julgamento da causa. O modelo do nosso sistema de recursos é, portanto, o da reponderação e não o de reexame[1].

    Não obstante o modelo português de recursos se estruturar decididamente em torno de modelo de reponderação, que torna imune a instância de recurso à modificação do contexto em que foi proferida a decisão recorrida, o sistema não é inteiramente fechado.

    A primeira e significativa excepção a esse modelo é a representada pelas questões de conhecimento oficioso: ao tribunal ad quem é sempre lícita a apreciação de qualquer questão de conhecimento oficioso ainda que esta não tenha sido decidida ou sequer colocada na instância recorrida. Estas questões – como, por exemplo, a inconstitucionalidade de uma norma, o abuso do direito ou os pressupostos processuais, gerais ou especiais, oficiosamente cognoscíveis – constituem um objecto implícito do recurso, que torna lícita a sua apreciação na instância correspondente.

    Sublinha-se justamente este ponto, em vista do facto de os recorrentes terem ampliado no recurso a questão da inconstitucionalidade das normas aplicadas pela decisão recorrida. Realmente, ao passo que, na contestação, se limitaram a invocar a inconstitucionalidade material do artº 1807 do Código Civil – que consagra a impropriamente chamada imprescritibilidade da acção de impugnação da maternidade – por violação do direito a constituir família, do princípio da não discriminação entre filhos nascidos dentro e fora do casamento e do direito à não privação dos filhos, consagrados nos nºs 1, 4 e 6 do artº 36 da Constituição - no recurso alegam que também o artº 1859 nº 1 do Código Civil merece, no seu ver, por ofensa daqueles mesmos direitos e princípio, um idêntico juízo de desvalor constitucional.

    Tratando-se, porém, de uma questão de conhecimento oficioso, ela constitui objecto admissível da impugnação.

    Assim, tendo em conta o conteúdo da decisão recorrida e das alegações de ambas as partes, as questões concretas controversas que esta Relação deve resolver são as de saber se a sentença impugnada deve ser declarada nula, por encontra ferida de nulidade substancial, resultante de error in procedendo decorrente de uma omissão de pronúncia, ou revogada, por ter incorrido num error in iudicando.

    Efectivamente, de harmonia com a alegação dos recorrentes, a sentença impugnada, além de substancialmente nula por não se ter pronunciado sobre a questão da inconstitucionalidade do artº 1807 do Código Civil, está também ferida de um erro de julgamento por violação de uma norma que incide sobre as normas que nela foram aplicadas e que determina a invalidade destas últimas: no ver dos recorrentes, os artºs 1807 e 1859 nº 1 do Código Civil, na acepção ampla de que o M.P. dispõe de poder discricionário e não condicionado por razões de interesse social relevante para impugnar paternidades legalmente estabelecidas, são inconstitucionais por violação do artº 36 da C.R.P.

    A resolução destes problemas vincula ao exame, leve mas minimamente estruturado, da causa de nulidade da decisão judicial representada pela omissão de pronúncia, das formas de estabelecimento e de impugnação da maternidade e da paternidade, e da compatibilidade ou conformidade das normas contidas nos artºs 1807 e 1859 nº 1 do Código Civil - na dimensão normativa de harmonia com a qual o Ministério Público dispõe da faculdade discricionária e ilimitada de impugnar a maternidade e a paternidade - com normas e princípios constitucionais.

    Como se notou já, o tribunal recorrido antecipou, logo para o despacho saneador, o conhecimento do mérito da causa, e limitou-se a julgar os factos relativos ao registo do nascimento do réu F… e à paternidade biológica deste. Há, portanto, também que ponderar os pressupostos da antecipação, logo para o despacho saneador, do conhecimento do objecto da causa.

    3.2.

    Nulidade substancial da decisão impugnada.

    Como é extraordinariamente comum, os recorrentes assacam à decisão recorrida o vício da nulidade substancial. Valor negativo que, no seu ver, radica nesta causa precisa: a omissão de pronúncia. Falta de pronúncia que, segundo os impugnantes decorre da circunstância de a sentença impugnada não ter apreciado a questão da inconstitucionalidade – material - do artº 1807 do Código Civil.

    O tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas, claro, aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras[2]. O tribunal deve, por isso, examinar toda a matéria de facto alegada e todos os pedidos formulados pelas partes, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tenha tornado inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta dada a outras questões. Por isso, é nula a decisão que deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, ou seja, quando se verifique uma omissão de pronúncia (artº 668 nº 1 d), 1ª parte do CPC).

    Face a este enunciado é bem de ver que a sentença impugnada se encontra, realmente, ferida com o vício grave da nulidade que os recorrentes lhe assacam.

    Realmente, os recorrentes alegaram, logo no articulado em que deduziram a sua defesa, que se o artº 1807 do Código Civil permite ao M.P. sem qualquer razão atendível de interesse público, moral ou patrimonial, impugne a maternidade e dessa forma destrua, pelo menos institucionalmente uma família, então viola o artº 36 da C.R.P, e como tal deve ser declarado inconstitucional.

    Todavia a sentença impugnada guardou sobre esta questão um absoluto e comprometedor silêncio.

    É, portanto, patente que a sentença impugnada deixou, de todo, por resolver a questão sobre que tinha que se pronunciar, deixou, por inteiro, por decidir objecto que devia apreciar. É, portanto...

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