A revisão dos contratos e a teoria da imprevisão: uma releitura do direito contratual à luz do princípio da socialidade

AutorBruna LYRA DUQUE
CargoMestre em Direitos e Garantias Constitucionais Fundamentais
Introdução

Abordaremos, neste artigo, a teoria da imprevisão analisada a partir do princípio da socialidade. Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002 novas premissas principiológicas mudaram a tendência individualista das relações contratuais para uma vertente preocupada com a função social das relações patrimoniais.

Com tal alteração de paradigma no campo legislativo, a sociedade precisou se ajustar à nova fase contratual. No entanto, demonstraremos aqui que a alteração desse paradigma individual para o social surgiu primeiro na sociedade e, posteriormente, o direito procurou se adequar às novas condutas sociais.

Analisaremos a interferência judicial nos contratos, já que a alteração das circunstâncias provoca a intervenção de um juízo imparcial que deverá optar pela resolução ou revisão do negócio.

O que permite a revisão ou a resolução contratual em virtude de eventos imprevisíveis e extraordinários que possam surgir no decorrer da execução dos contratos quando ocorrer fato superveniente que provoca a desproporção manifesta da prestação? Esta é a indagação que nos propomos esclarecer.

1. Noções gerais da relação contratual

Sabemos que é por meio das relações obrigacionais que se estrutura o regime econômico, assim, através do direito das obrigações se estabelece também a autonomia da vontade entre os particulares na esfera patrimonial.

Podemos afirmar que o direito das obrigações exerce grande influência na vida econômica, em razão da inegável constância das relações jurídicas obrigacionais no mundo contemporâneo. Intervém o direito contratual na própria vida econômica, principalmente, nas relações de consumo, sob diversas modalidades e na distribuição dos bens.

Entendemos que o Direito das Obrigações é um ramo do direito civil que tem por fim contrapesar as relações entre credores e devedores. Consiste este ramo do direito num complexo de normas que regem relações jurídicas de ordem patrimonial que têm por objeto prestações de um sujeito em proveito de outro.

Por sua vez, podemos conceituar o contrato como uma espécie do gênero negócio jurídico que possui natureza bilateral e pelo qual as partes se obrigam a dar, restituir, fazer ou não fazer alguma coisa.

O contrato é, portanto, o acordo de vontades entre pessoas do direito privado, amparado pelo ordenamento legal e realizado em função de necessidades que gera, resguarda, transfere, conserva, modifica ou extingue direitos e deveres, visualizados no dinamismo de uma relação jurídica obrigacional.

Antes de iniciarmos o estudo sobre a revisão contratual, consideramos importante a análise de alguns marcos históricos das relações obrigacionais, principalmente se for levado em conta que o direito é uma estrutura "social mutável, imposta à sociedade; é afetado por mudanças fundamentais dentro da sociedade e é, em ampla escala, um instrumento assim como um produto dos que detêm o poder" (CAENEGEM, 2000, p.277).

Delineamos a historicidade do contrato a partir do legado advindo do Direito Romano, passando pela Antigüidade, Idade Média, Renascimento até chegar ao Iluminismo, época que muito influenciou o direito privado do ponto de vista da autonomia da vontade1.

Na fase da Antigüidade, o direito romano não conheceu o termo obrigação. Esse período pode ser dividido em quatro momentos: nexum, contractus, pactum e as Constituições Imperiais. O Nexum foi a primeira idéia de vínculo entre dois sujeitos. Por esta ligação contratual, caso o devedor não cumprisse o convencionado, ele era convertido em escravo ou respondia pela dívida com o seu próprio corpo. Já os contractus surgiram com o jus civiles e refletiam um teor de rigidez na sua estrutura. Tal acordo preocupava-se apenas com os contratos reais ou formais, nos quais, em caso de inadimplemento, o credor poderia se utilizar da actio (forma de preservação do direito utilizada pelos credores). O Pactum era o acordo em que as partes não poderiam responsabilizar o devedor em caso de descumprimento do acordado. Tinham mero valor moral e não possuíam caráter obrigatório. O pacto era desprovido da actio. Por fim, com as constituições imperiais, o formalismo dos contractus foi atenuado, criando-se, assim, uma teoria sobre contratos inominados e para os pactos mais simples.

Quanto a isso, ensina José Roberto dos Santos Bedaque (2001, p.80) que a actio romana identificava-se mais ou menos com a noção atual de direito subjetivo. Actio seria a atuação de alguém "perante o pretor, recitando fórmulas legais solenes e sacramentais, para obtenção de um jurado particular, incumbido de dirimir a controvérsia".

Na Idade Média, entre os Séculos V e XV, a teoria das obrigações, originária da Europa, derivava dos costumes germânicos. A responsabilidade pelo descumprimento confundia-se com a vingança privada e com a responsabilidade penal. No Renascimento, a relação obrigacional passava a ser caracterizada por dar maior valor às palavras previstas nos contratos. Houve forte influência da Igreja nos valores morais.

Por fim, no Século XIX, surgiu a regra da força obrigatória dos contratos, através do Código Napoleônico, em que se procurou dar mais valor à autonomia da vontade.

Para R. C. van Caenegem (2000, p.178), "a filosofia do iluminismo rejeitou os velhos dogmas e as tradições (especialmente religiosas) e colocou o homem e seu bem-estar no centro de suas preocupações". Enfim, o centro de tudo era o indivíduo, a propriedade e a aquisição de bens.

Consideramos que o Código Civil brasileiro de 1916 recebeu forte influência da legislação francesa, inspirado no liberalismo, valorizando o indivíduo, a liberdade e a propriedade.

A base contratual que se pautou o diploma civil de 1916 observou características individualistas, observando apenas uma igualdade formal, fazendo lei entre as partes (pacta sunt servanda). Segundo tal diploma legal, ficava assegurada a imutabilidade contratual e os contraentes celebravam livremente um acordo que deveria ser absolutamente respeitado.

Todavia a aplicabilidade do pacta sunt servanda começou a ser relativizada e a observar a cláusula rebus sic stantibus, como uma própria cobrança das necessidades sociais que não suportaram mais a predominância de relações contratuais com desequilíbrios, cláusulas abusivas e má-fé.

Assim, com o advento do Código de 2002, houve um rompimento do aspecto individualista. Os novos dispositivos legais deste código passam a disciplinar um conjunto de interesses estruturados no princípio da socialidade, em que, por exemplo, a força obrigatória dos contratos é mitigada para proteger o bem comum e a função social do contrato.

Entendemos, portanto, ser incompatível o Código de 2002 com o reconhecimento da natureza existencialista do contrato, que não mais pode ser visto como mero símbolo das codificações do séc. XVIII, menosprezando o ser enquanto ser humano, apenas valorizando-o como titular de um crédito.

2. A revisão contratual

A possibilidade dos contratantes revisarem os termos previstos em contratos, por via judiciária, surge em razão da possível mutabilidade das relações civis, que são encaradas a partir de uma visão não estanque e sofrem o impacto de todo o contexto social e econômico onde estão inseridas.

Existem situações exteriores ao contrato que podem provocar reações diversas para os contratantes, onerando excessivamente um dos pólos da relação jurídica. Em razão disso, o ordenamento jurídico prevê que a alteração das circunstâncias pode ser suscitada pelo contratante prejudicado por meio da teoria da imprevisão.

Esta alteração passou a ter relevância jurídica no século XII que se traduziu na afirmação da existência da cláusula rebus sic stantibus. Tal cláusula preceitua que um contrato deve se manter em vigor se permanecer o estado das coisas estipuladas no momento da sua celebração.

A rebus sic stantibus apresentou grande força na Idade Média, como uma forma de praticar a "Justiça Superior", a que os espíritos estavam vinculados, conforme explica o autor português Inocêncio Galvão...

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