Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 13/2009, de 06 de Novembro de 2009

Acórdáo do Supremo Tribunal de Justiça n. 13/2009

I - Relatório

1 - O Ministério Público junto do Tribunal da Relaçáo de Lisboa veio, ao abrigo do disposto no artigo 437. do Código de Processo Penal, interpor recurso extraordinário para fixaçáo de jurisprudência do acórdáo da referida Relaçáo de 23 de Janeiro de 2008, proferido no processo n. 9349 -07, da 3.ª Secçáo, que rejeitou, por manifesta improcedência, o recurso interposto da decisáo do juiz de instruçáo criminal (JIC) que indeferiu o requerimento do mesmo Ministério Público a pedir a transcriçáo e junçáo aos autos das conversaçóes e comunicaçóes indispensáveis para fundamentar a aplicaçáo futura de medidas de coacçáo ou de garantia patrimonial em relaçáo a suspeitos a constituir como arguidos, com fundamento em que a intervençáo do JIC apenas se justifica quando esteja em causa a concreta aplicaçáo de uma medida de coacçáo, nos termos da alínea b) do n. 1 do artigo 268. do Código de Processo Penal (CPP).

Alega o recorrente que tal acórdáo está em oposiçáo com outro da mesma Relaçáo, proferido em 18 de Dezembro de 2007, no âmbito do processo n. 8853/07, da 5.ª Secçáo Criminal.

Para tanto, concluiu a respectiva motivaçáo do seguinte modo:

1 - No acórdáo recorrido a questáo jurídica que vinha colocada, face ao disposto no artigo 188., n. 7 do CPP revisto, foi decidida no sentido de que a intervençáo do JIC apenas se justifica quando esteja em causa a concreta aplicaçáo de uma medida de coacçáo, nos termos da alínea b) do n. 1 do artigo 268. do CPP.

Considerou-sequetratando-se de medida de coacçáo apenas futura e incerta - quer no tempo, quer quanto aos destinatários - a actividade reclamada pelo M. P. ao juiz é destituída de sentido.

Considerou -se que a intervençáo do juiz, na fase de inquérito, é apenas pontual, ainda que essencial e exclu-siva, por via de se dirigir à salvaguarda de importantes

direitos e liberdades individuais; e que, por outro lado, o próprio M. P. tem à sua disposiçáo todas as intercepçóes telefónicas e, bem assim, o relatório já elaborado pelo órgáo de polícia criminal (OPC), pelo que sempre poderá ordenar as transcriçóes que entender, ao abrigo do disposto no n. 9 do artigo 188. do CPP.

2 - Sobre a mesma questáo de direito e no âmbito da mesma legislaçáo foi proferida a 18/12/2007, no processo 8853/07, da 5.ª Secçáo Criminal da Relaçáo de Lisboa, acórdáo [...] que consagrou soluçáo oposta:

'O JIC pode determinar, a requerimento do M. P., a transcriçáo e junçáo aos autos das conversaçóes e comunicaçóes indispensáveis para fundamentar a futura aplicaçáo de medida de coacçáo, à excepçáo de termo de identidade e residência (TIR), náo tendo aquele requerimento que ser cumulativo com a promoçáo para aplicaçáo de uma medida de coacçáo.'

3 - Tendo ambos os acórdáos transitado em julgado, e náo sendo nenhum deles, já, susceptível de recurso ordinário, impóe -se a fixaçáo de jurisprudência.

2 - Foram juntas certidóes dos acórdáos recorrido e fundamento, com nota do respectivo trânsito em julgado.

3 - Admitido o recurso, os autos subiram a este Supremo Tribunal, tendo o Ministério Público, na vista a que se refere o artigo 440., n. 1, do CPP, emitido parecer no sentido de ocorrerem os pressupostos legais para o pros-seguimento dos autos como recurso extraordinário para fixaçáo de jurisprudência.

4 - Proferido despacho liminar e colhidos os necessários vistos, teve lugar a conferência a que se refere o artigo 441. do CPP, na qual foi decidido, por acórdáo de 11 de Setembro de 2008, ocorrer oposiçáo de julgados entre o acórdáo recorrido e o acórdáo -fundamento.

5 - Notificado nos termos do artigo 442., n. 1, do CPP, veio o M. P. apresentar as suas alegaçóes.

Começou por caracterizar a oposiçáo de acórdáos e definir o objecto do recurso, consistente em saber se o juiz de instruçáo criminal (JIC) pode, a requerimento do Ministério Público, determinar e ordenar a transcriçáo e junçáo aos autos de inquérito das conversaçóes e comunicaçóes indispensáveis para fundamentar a futura aplicaçáo de medida de coacçáo, que náo o termo de identidade e residência (TIR), sem que, cumulativamente, promova a aplicaçáo de uma concreta medida de coacçáo, analisou depois os acórdáos recorrido e fundamento, citando jurisprudência abonatória das respectivas posiçóes, para passar, de seguida, a explanar a posiçáo defendida, convocando e interpretando os preceitos legais atinentes, à luz da jurisprudência e da doutrina, bem como da hermenêutica que teve como mais correcta, até que veio a concluir com a seguinte formulaçáo de jurisprudência:

O JIC deve determinar a requerimento do Ministério Público a transcriçáo e junçáo aos autos das conversaçóes e comunicaçóes indispensáveis para fundamentar a futura aplicaçáo de medidas de coacçáo ou de garantia patrimonial, à excepçáo do Termo de Identidade e Residência, náo tendo aquele requerimento de ser cumulativo com a promoçáo para a aplicaçáo de uma medida de coacçáo.

6 - A oposiçáo de acórdáos foi já decidida na fase preliminar, tendo -se concluído na conferência pela oposiçáo de julgados relativamente à mesma questáo de direito e no domínio da mesma legislaçáo.

Porém, náo tendo a referida decisáo força de caso julgado formal, podendo a mesma questáo ser reapreciada pelo pleno das secçóes criminais, como vem sendo deci-dido uniformemente pelo Supremo Tribunal de Justiça, impóe -se proceder a tal reapreciaçáo.

6.1 - No acórdáo recorrido, proferido em 23 de Janeiro de 2008 no recurso n. 9349/07, da 3.ª Secçáo da Relaçáo de Lisboa, na sequência de reclamaçáo da decisáo sumária do relator para a conferência, decidiu -se confirmar a referida decisáo sumária e rejeitar por manifesta improcedência o recurso interposto pelo Ministério Público da decisáo do JIC que indeferira o requerimento daquele no sentido de obter a transcriçáo de determinadas escutas telefónicas já realizadas, nos termos do actualmente vigente n. 7 do artigo 188. do CPP, com vista a requerer futuramente uma medida de coacçáo diferente do TIR, relativamente a determinadas pessoas tidas como suspeitas e devidamente identificadas. O fundamento de tal rejeiçáo baseou -se essencialmente na consideraçáo de que a medida de coacçáo invocada era futura e incerta e que o JIC náo podia ordenar tal transcriçáo sem que estivesse em causa a concreta aplicaçáo de uma medida de coacçáo, nos termos da alínea b) do n. 1 do artigo 268. do CPP.

6.2 - No acórdáo -fundamento, proferido em 18 de Dezembro de 2007 no recurso n. 8853/07, da 5.ª Secçáo da mesma Relaçáo, em face da decisáo de indeferimento pelo JIC de requerimento do Ministério Público, em tudo idêntico ao anteriormente referido, decidiu -se conceder provimento ao recurso, ordenando -se que o despacho recorrido fosse substituído por outro que determinasse a requerida transcriçáo, e isto, essencialmente com o fundamento de que «[o] JIC pode determinar, a requerimento do

M. P., a transcriçáo e junçáo aos autos das conversaçóes e comunicaçóes indispensáveis para fundamentar a futura aplicaçáo de medidas de coacçáo ou de garantia patrimonial, à excepçáo do TIR, náo tendo aquele requerimento de ser cumulativo com a promoçáo para a aplicaçáo de uma medida de coacçáo.».

6.3 - Delineadas, assim, as posiçóes de ambos os ares-tos, fácil é de concluir pela sua oposiçáo relativamente à mesma questáo de direito e no âmbito da mesma legislaçáo, pois ambos eles foram proferidos no domínio de vigência das alteraçóes introduzidas no Código de Processo Penal pela Lei n. 47/2008, de 29 de Agosto, nomeadamente no que respeita à matéria das intercepçóes telefónicas e respectivas gravaçóes.

Impóe -se, pois, confirmar, nesta sede, o julgamento prévio efectuado na conferência que decidiu a questáo preliminar, nada obstando ao prosseguimento do recurso com vista à soluçáo do conflito de jurisprudência.

II - Fundamentaçáo

7 - A questáo:

7.1 - A questáo, como vimos, diz respeito a saber se o JIC, a requerimento do Ministério Público no inquérito e com vista à fundamentaçáo de futura aplicaçáo de medidas de coacçáo, com excepçáo do TIR, pode mandar transcrever conversas e comunicaçóes telefónicas que tenham sido intercepcionadas e gravadas sem que, ao mesmo tempo, o Ministério Público deva promover uma concreta medida de coacçáo.

A) O acórdáo recorrido entendeu que náo, nos termos que ficaram já assinalados.

Nesse acórdáo estava subjacente à decisáo a seguinte situaçáo de facto:

- Investigava -se em inquérito a prática de crime de tráfico de estupefacientes;

- No seu decurso, o Ministério Público ordenou a apresentaçáo do inquérito ao juiz de instruçáo criminal, promovendo, além do mais, que se determinasse a transcriçáo e junçáo aos autos de todas as conversaçóes e comunicaçóes constantes das sessóes que a seguir se indicavam, por essenciais e indispensáveis à futura aplicaçáo de medidas de coacçáo aos suspeitos a constituir como arguidos (devidamente identificados), que se previam diversas do TIR, atenta a natureza e gravidade do ilícito em causa, pois de tais sessóes resultavam elementos que contribuíam para identificar os envolvidos nos factos, o seu grau de conhecimento, modo de actuaçáo e comparticipaçáo, relaçáo com os demais, responsabilidade global e individual, e eram susceptíveis de fundamentar o perigo de continuaçáo da actividade criminosa;

- Sobre a referida promoçáo incidiu despacho de indeferimento do juiz de instruçáo criminal;

- Interposto recurso para o Tribunal da Relaçáo de Lisboa, veio este, como se referiu já, decidir por Acórdáo de 23 de Janeiro de 2008, após reclamaçáo, pelo recorrente, da decisáo sumária do relator, para a conferência. O acórdáo, todavia, retomou a fundamentaçáo e o sentido da decisáo do relator, que rejeitara o recurso por manifesta improcedência.

Os traços fundamentais dessa fundamentaçáo surpreendem -se nas seguintes passagens do acórdáo:

[E]ste [n. 7 do artigo 188. do CPP] analisa -se numa fase processual tendente à recolha de elementos para formular a acusaçáo e que corre sob a...

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