Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2008, de 05 de Agosto de 2008

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2008 Processo n.º 1008/07 -- 5.ª Secção Recurso extraordinário n.º 1008/07. Comum singular n.º 21/03.1PEVRL de Vila Real.

Recurso ordinário n.º 4664/06 -1, da Relação do Porto.

Recorrente: Ministério Público.

Recorrido: Carlos Manuel Cunha Silva. 1 -- O acórdão fundamento. -- Em 18 de Outubro de 2006, a Relação do Porto (i), no recurso n.º 3539/06 -4, «entendeu fundada uma interpretação que não atribuísse ao n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 30/2000 uma função vincu- lativa, que arredasse do ilícito de mera ordenação social as situações de consumo e de aquisição ou detenção de droga para consumo em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, mas lhe reservasse uma função meramente indicativa ou orientadora». 2 -- O acórdão recorrido. -- Porém, a mesma Rela- ção (ii), em 22 de Novembro de 2006, veio a sustentar, no recurso n.º 4664/06 -1, que «o disposto no artigo 40.º, n.º 2, do Decreto -Lei n.º 15/93 terá sempre a sua aplicação desde que o estupefaciente destinado ao consumo seja de quantidade superior à prevista no artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 30/2000». 3 -- O recurso extraordinário. 3.1 -- O MP (iii), ante tal «oposição de julgados», dedu- ziu, em 15 de Dezembro de 2006, «recurso extraordinário», propondo que o Supremo assente jurisprudência no sentido de que «a aquisição ou detenção de estupefacientes para consumo próprio de uma quantidade superior à necessá- ria para consumo médio individual durante o período de 10 dias integra a contra -ordenação prevista no artigo 2.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro». 3.2 -- Em 17 de Maio de 2007, o Supremo Tribunal de Justiça, reconhecendo a invocada «oposição de julgados», admitiu o recurso extraordinário para fixação de jurispru- dência oposto em 15 de Dezembro de 2006, pelo MP, ao acórdão da Relação do Porto que, em 22 de Novembro de 2006, decidira, com trânsito em julgado, que «o disposto no artigo 40.º, n.º 2, do Decreto -Lei n.º 15/93 teria sem- pre a sua aplicação desde que o estupefaciente destinado ao consumo seja de quantidade superior à prevista no artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 30/2000». 3.3 -- Dos sujeitos processuais interessados, notifi- cados para apresentarem, por escrito, as suas alegações (artigo 442.º, n. os 1 e 2), só o MP (iv) as apresentou, pro- movendo, em 25 de Junho de 2007, que se uniformizasse jurisprudência no sentido de que «a detenção ou aquisi- ção de produto estupefaciente, para consumo próprio, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante 10 dias, integra o crime previsto e pu- nido no artigo 40.º, n.º 2, do Decreto -Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro»: «Crê -se que será de toda a conveniência, para já, reflectir por um lado no tratamento dispensado, no âm- bito do Decreto -Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, à pro- blemática do consumo de estupefacientes, primeiro em si mesmo e por referência ao tráfico objecto de previsão nos artigos 21.º, 25.º e 26.º e depois por confronto com o ora preconizado na Lei n.º 30/2000, de 29 de Novem- bro, e, por outra via, ponderar as razões de ordem es- tratégica que, na luta contra a droga, estiveram na génese da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, e de que é dado o devido esclarecimento na Resolução do Conselho de Ministros n.º 46/99 (Diário da República, 1.ª série -B, n.º 122, de 26 de Maio de 1999), ao abrigo da qual foi aprovada a Estratégia Nacional da Luta contra a Droga (v). Nesta perspectiva, caberá ter presente que no Decreto -Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro -- estabelecendo- -se claramente a distinção entre o `tráfico e outras ac- tividades ilícitas' e o `consumo', traduzida na interliga- ção que o artigo 21.º fazia com o artigo 40.º e definindo -se como crime quer uma quer outra das con- dutas --, contanto que se apurasse que o cultivo, a aqui- sição ou a detenção de estupefaciente eram para con- sumo próprio, apartada ficava desde logo a possibilidade de uma dessas actividades vir a ser punida como tráfico, qualquer que fosse a quantidade da droga detida, culti- vada ou adquirida.

Quer -se com isto dizer que, ao invés do que viria a suceder com a Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, o Decreto -Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, não estabelecia qualquer limite quantitativo para efeitos de definição de uma dada conduta como consumo e como assim para distingui -la do tráfico.

Desta sorte, e como bem decorre do estatuído no n.º 2 do artigo 40.º do Decreto -Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro (que prevê e sanciona com pena de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias o cultivo, a detenção, a aquisição de plantas, substâncias ou preparações em quantidade que exceda a necessária para consumo médio individual durante o período de três dias), não é a quantidade mais ou menos elevada em causa que exclui a sua aplicação, do mesmo passo que não é a quantidade mais ou menos diminuta em presença que fará afastar a aplicação dos artigos 21.º e seguintes, no que ao tráfico diz respeito, se tiver ficado apurado que ao consumo pelo próprio não se destinavam as aludidas plantas, substâncias ou preparações.

Algo diversamente, porém, aconteceu com a Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, que -- conquanto não houvesse alterado substancialmente os termos da questão, esta- belecendo que o consumo, a aquisição ou a detenção para consumo próprio até determinada quantidade (não excedente à necessária para consumo médio individual durante 10 dias, artigo 2.º, n.º 2) passariam a integrar mera contra -ordenação -- deixou de fora um largo nú- mero de condutas até então contempladas no artigo 40.º do Decreto -Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

Condutas que -- desde o cultivo para consumo (independente- mente da quantidade em causa), objecto de expressa salvaguarda na norma revogatória do artigo 28.º da mesma Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, até à aqui- sição ou detenção, para consumo próprio, de quanti- dades superiores às referidas no seu citado n.º 2 do artigo 2.º, o cerne da questão controvertida -- , se não fossem os termos em que se encontra redigida a aludida norma revogatória do artigo 28.º, todos concordariam que continuavam a ser abrangidas pela previsão do artigo 40.º Feitas estas breves considerações, importa reflectir que, na génese da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro (que definiu `um novo regime jurídico apli- cável ao consumo de estupefacientes e substâncias psi- cotrópicas bem como à protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias, sem prescrição médica', descriminalizando essas condutas e revogando o artigo 40.º do Decreto -Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, excepto quanto ao cultivo, e o artigo 41.º do mesmo diploma, convertendo -as em ilícito de mera ordenação social), ponderaram razões de ordem vária que vão desde a necessidade de o aparelho judicial dever estar afecto ao combate do tráfico de drogas e da criminali- dade complexa que lhe anda associada (branqueamento de capitais, associações criminosas, tráfico de armas, corrupção, etc.) e, por via disto, isentá -lo da luta contra outros ilícitos de menor gravidade e relevância como o consumo de substâncias da aludida natureza, que pas- sam pelas ilações a retirar dos desencorajadores resul- tados obtidos com a criminalização até então feita des- tas condutas consideradas menos desvaliosas como forma de dissuadir os consumidores de drogas a utilizarem -nas e que desembocam na diferente perspec- tiva como devia ser encarada a problemática do con- sumo e o drama do consumidor: mais um doente a re- clamar medidas de protecção sanitária e social, do que um criminoso.

E, não obstante este evidente e aliás confessado propósito descriminalizador, benfazejo para o consumidor (vi), face ao que decorre quer da Resolu- ção do Conselho de Ministros n.º 46/99, de 26 de Maio, pela qual a Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, foi aprovada, quer do próprio texto desta, dúvidas não sub- sistem de que com o novo regime jurídico visou o le- gislador não legalizar de todo o consumo das referidas substâncias mas, apenas e tão -só, descriminalizar as situações que, com ele relacionadas, considerava revestirem -se de menor gravidade, como, de resto, foi profusamente proclamado e com linear nitidez flui do que ficou estatuído, primeiro nos artigos 1.º e 2.º e, depois, no artigo 28.º da mesma Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro.

Feito que fica este apontamento e não perdendo de vista a questão concreta em análise [o modo como enquadrar sob o ponto de vista jurídico -- isto, naturalmente, para o caso de se considerar que a entrada em vigor da lei nova não comprometeu tal possibilida- de -- as condutas consistentes na detenção ou aquisição de estupefacientes para consumo próprio que, antes abrangidas pelo n.º 2 do artigo 40.º do Decreto -Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, escaparam à sua directa previsão, por a quantidade em causa exceder a necessária para consumo médio individual durante 10 dias (n.º 2 do artigo 2.º do mesmo diploma legal)], importará, então e na sequência de tudo quanto mais atrás se aduziu, expor as razões por que se entende que a verificada oposição de acórdãos deverá ser resolvida nos termos do decidido no acórdão recorrido.

Porém, para cumprir tal desiderato, importará desenvolver um esforço para interpretar as normas con- vocadas para o efeito (máxime, a norma revogatória do artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro). Esforço de interpretação que -- passando por chamar à colação o artigo 9.º do Código Civil, que regula ge- nericamente a matéria relativa à interpretação da lei, tendo por fio condutor a ideia de que ela deverá recons- tituir, a partir dos correspondentes textos, o pensamento do legislador, possuindo como parâmetros a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi ela- borada e as condições específicas do tempo em que é aplicada e tendo como seus limites os princípios da legalidade, que veda o recurso a...

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