Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2008, de 31 de Março de 2008

Acórdáo do Supremo Tribunal de Justiça n. 1/2008

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA e marido, BB, CC e mulher, DD, instauraram a presente acçáo de impugnaçáo de justificaçáo notarial contra EE e mulher, FF, pedindo:

  1. Se considere impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura de 14 de Fevereiro de 1996, referente à invocada aquisiçáo pelos réus, por usucapiáo, do prédio que identificam no artigo 1. da petiçáo inicial; b) Se declare nula e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificaçáo notarial, por forma a que os réus náo possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado e objecto da presente impugnaçáo;

  2. Se ordene o cancelamento de quaisquer registos operados com base no documento aqui impugnado;

  3. Se declare que o prédio identificado no artigo 1. da petiçáo pertence à herança aberta e ilíquida de GG e mulher, HH, avós do réu marido.

    Para tanto, os autores alegaram, em síntese:

    Sáo falsas as declaraçóes que os réus produziram na escritura de justificaçáo, nomeadamente quanto à data do falecimento do anterior proprietário do prédio a que a escritura respeita, bem como sobre a existência da invocada doaçáo verbal do imóvel aos réus e que estes tenham entrado na sua posse na data que afirmam e o tenham adquirido por usucapiáo;

    O prédio pertence à herança dos indicados GG e HH, de quem os autores sáo herdeiros, por serem seus filhos.

    Os réus contestaram.

    Por excepçáo, invocaram a caducidade do direito de acçáo e, por impugnaçáo, contradisseram os factos invocados pelos autores.

    Além disso, deduziram reconvençáo, pedindo:

  4. Sejam os réus declarados únicos donos e legítimos proprietários e possuidores do prédio identificado no artigo 1. da petiçáo inicial, objecto da justificaçáo notarial, por o terem adquirido por usucapiáo;

  5. Subsidiariamente, seja reconhecido o direito de propriedade dos réus sobre o mesmo prédio, por via da aplicaçáo do instituto da acessáo industrial imobiliária.

    Houve réplica dos autores.

    No despacho saneador, foi deliberado:

    1) Admitir a reconvençáo, com base no disposto na alínea c) do n. 2 do artigo 274. do Código de Processo Civil (CPC), com a argumentaçáo de que, independentemente da natureza jurídica da acçáo de impugnaçáo de justificaçáo notarial, em geral considerada como acçáo de apreciaçáo negativa, e da questáo do ónus da prova dos factos incluídos na escritura de justificaçáo, o certo é que toda a controvérsia respeita ao direito invocado pelo justificante, que aqui é o direito de propriedade sobre o prédio rústico, tendo os autores formulado também o pedido de declaraçáo de que esse direito pertence à herança em que sáo interessados;

    2) Julgar improcedente a excepçáo da caducidade da acçáo.

    Realizado o julgamento e apurados os factos, foi proferida sentença, que decidiu:

    1) Julgar a acçáo improcedente e absolver os réus dos pedidos;

    2) Julgar procedente o pedido reconvencional principal e, consequentemente, declarar os réus únicos e legítimos proprietários e possuidores do prédio objecto da justificaçáo notarial de 14 de Fevereiro de 1996, identificado no artigo 1. da petiçáo inicial.

    Apelaram os autores, com êxito, pois a Relaçáo de Guimaráes, através do seu Acórdáo de 6 de Março de 2007, sentenciou nos seguintes termos (fl. 410):

    1 - Julga -se procedente a apelaçáo.

    3 - Revoga -se a sentença, atendendo -se ao peticionado pelos recorrentes.

    Agora, sáo os réus que pedem revista, produzindo alegaçóes, onde resumidamente concluem:

    1 - Era aos autores que incumbia, diversamente do decidido, alegar e provar factos susceptíveis de ilidir a

    1872 presunçáo do artigo 7. do Código do Registo Predial de que os réus beneficiavam, oriunda do facto de terem efectuado o registo do seu direito, com base na escritura de justificaçáo notarial, o que os autores náo lograram fazer, pelo que o acórdáo recorrido deve ser revogado e substituído por outro de sentido diverso.

    2 - Da matéria de facto dada como provada resulta que a posse dos réus reveste os seus elementos constitutivos (corpus e animus) e que se iniciou, pelo menos, há mais de 15 anos desde a propositura da acçáo, pelo que deverá ser atendida a aquisiçáo do direito de propriedade pelos réus, através da usucapiáo.

    3 - A acçáo em causa é uma acçáo de simples apreciaçáo negativa, mas os autores também peticionam que seja declarado que o prédio pertence à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito dos indicados GG e mulher, HH, pelo que, face às regras do ónus da prova, pelo menos este pedido de apreciaçáo positiva deve ser julgado improcedente.

    4 - No acórdáo recorrido existe manifesta contradiçáo entre a fundamentaçáo e a parte decisória, por náo ser reconhecido aos réus o direito inerente à presunçáo derivada do registo predial e por ser reconhecido o direito de proprie-dade da mencionada herança sobre o mesmo imóvel.

    5 - Consideram violados os artigos 7. do Código do Registo Predial, 4. do Código de Processo Civil e 342., 343., 1252., n. 2, 1296. e 1253., alínea b), do Código Civil.

    Os autores contra -alegaram em defesa do julgado.

    Por iniciativa do anterior conselheiro relator, veio a ser determinado pelo Presidente deste Supremo Tribunal de Justiça que a revista fosse julgada de forma ampliada, com vista à uniformizaçáo de jurisprudência, nos termos dos artigos 732. -A e 732. -B do Código de Processo Civil.

    Foi emitido parecer pelo procurador -geral -adjunto junto deste Supremo Tribunal, no qual foi defendida a concessáo da revista pedida, com uniformizaçáo da jurisprudência no sentido seguinte:

    Na acçáo de impugnaçáo de facto justificado notarialmente e inscrito definitivamente no registo, incumbe ao autor ilidir, mediante prova em contrário, a presunçáo de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define, face às disposiçóes conjugadas dos artigos 7., 8., 10. e 116., n. 1, do Código do Registo Predial, e 344., n. 1, e 350. do Código Civil.

    Corridos os vistos, cumpre decidir.

    A Relaçáo considerou provados os factos seguintes:

    1) Em 14 de Fevereiro de 1996, no Cartório Notarial de Vila Nova de Cerveira, os réus EE e mulher outorgaram a escritura de justificaçáo notarial, cuja fotocópia constitui documento a fls. 10 e seguintes, para efeito de registo de aquisiçáo, por usucapiáo, do prédio rústico, composto por terreno de cultivo, denominado «Calves», sito no lugar de Crastos, da freguesia de Sáo Pedro da Torre, do concelho de Valença, inscrito na matriz sob o artigo 4776, na qual intervieram como «primeiros outorgantes» os ora réus e como «segundos outorgantes» II, JJ e LL, donde consta o seguinte:

    Pelos primeiros outorgantes foi dito que sáo donos e legítimos possuidores, com exclusáo de outrem, do prédio rústico composto por terreno de cultivo, denominado de Calves, com a área de 2600 m2, sito na lugar de Crastos,

    freguesia de Sáo Pedro da Torre, inscrito na matriz sob o artigo 4776;

    Que o identificado prédio foi adquirido por doaçáo feita pelo avô do justificante marido, GG, entretanto já falecido, no ano de 1974, sem que no entanto ficassem a dispor de título formal que lhes permita o respectivo registo na Conservatória do Registo Predial; mas desde logo entraram na posse e fruiçáo do prédio, em nome próprio, posse que assim detém há muito mais de 20 anos, sem interrupçáo ou ocultaçáo de quem quer que seja;

    Que essa posse foi adquirida sem violência e mantida sem oposiçáo, ostensivamente, com conhecimento de toda a gente e com aproveitamento de todas as utilidades do prédio, agindo sempre por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, quer usufruindo como tal o imóvel, quer suportando os respectivos encargos. Que esta posse em nome próprio, pacífica, contínua e pública, conduziu à aquisiçáo do imóvel, por usucapiáo, que invocam, justificando o direito de propriedade, para o efeito de registo, dado que esta forma de aquisiçáo náo pode ser comprovada por qualquer outro título formal extrajudicial.

    Pelos segundos outorgantes foi dito que confirmam as declaraçóes que antecedem, por corresponderem inteiramente à verdade.

    2) O extracto dessa escritura foi publicada no jornal Notícias de Valença, de 10 de Março de 1996.

    3) A aquisiçáo do referido prédio, por usucapiáo, foi inscrita no registo predial, a favor dos réus, em 23 de Maio de 1996.

    4) GG, avô do réu, faleceu em 7 de Junho de 1982, no estado de casado com HH, que veio a falecer em 1 de Abril de 1989.

    5) Os autores AA e CC sáo filhos dos falecidos GG e HH.

    6) O prédio referido no anterior n. 1) pertenceu ao casal dos referidos GG e HH.

    7) No inventário n. 279/99, instaurado no Tribunal Judicial de Valença, para partilha das heranças dos mencionados GG e HH, em que foi cabeça -de -casal MM (filha daqueles e máe do réu), náo foi relacionado o prédio, mencionado no n. 1); náo houve reclamaçáo contra a relaçáo de bens; os bens foram adjudicados, por acordo, em conferência de interessados de 28 de Fevereiro de 2002; os autores náo estiveram presentes, mas estiveram representados, nessa conferência.

    8) A partilha, nesse inventário, foi homologada por sentença de 24 de Maio de 2002, transitada em julgado.

    9) No processo de imposto sucessório por óbito do indicado GG, foi apresentada a relaçáo de bens de fl. 20 a fl. 30, onde o prédio em questáo foi incluído sob a verba n. 25.

    10) Pelo menos a partir de 1983, o réu e, depois, ele e sua mulher, passaram a cultivar e a colher os frutos do prédio, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente e sem oposiçáo de ninguém.

    11) Pelo menos a partir de 1983, os réus iniciaram a construçáo da casa de habitaçáo no terreno do questionado prédio, tendo essa construçáo se prolongado por vários anos.

    12) A parte do prédio que náo se encontra fisicamente ocupada pela casa é utilizada acessoriamente a esta, nomeadamente, sendo utilizado parte para cultivo de horta, fruteiras e vinha e parte para jardim.13) A referida casa e terreno formam uma unidade económica, limitada, e vedada, e a...

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