Parecer n.º 84/2007, de 07 de Abril de 2008

Parecer n. 84/2007

Autoridade de Segurança Alimentar e Económica - Contra-Ordenaçáo - Segredo de Justiça - Ilícito de Mera Ordenaçáo social - Ilícito Penal - Princípio da Publicidade - Autoridade Administrativa.

  1. - Os interesses da investigaçáo e a protecçáo da imagem social do arguido podem justificar a aplicaçáo no processo contra -ordenacional do regime do segredo de justiça, resultante dos n.os 2 e 3 do artigo 86. do Código de Processo Penal, nos termos do n. 1 do artigo 41. do Decreto -Lei n. 433/82, de 27 de Outubro, que «institui o ilícito de mera ordenaçáo social e o respectivo processo»;

  2. - Nos termos do n. 2 do artigo 41. do Decreto -Lei n. 433/82, de 27 de Outubro, incumbe à autoridade administrativa que dirige o processo proferir a decisáo de sujeiçáo do mesmo ao regime de segredo, oficiosamente, ou a requerimento do arguido;

  3. - Imposto o regime de segredo, nos termos das conclusóes anteriores, a autoridade administrativa pode permitir ou indeferir, conforme o caso, o acesso por parte do arguido ao processo, nos termos da parte final do n. 1 do artigo 89. do Código de Processo Penal, aplicável também por força do disposto no n. 1 do artigo 41. do Decreto -Lei n. 433/82, de 27 de Outubro;

  4. - As decisóes administrativas proferidas nos termos das conclusóes anteriores que decretem ou indefiram a sujeiçáo a segredo, ou impeçam o acesso ao processo com fundamento no segredo, sáo susceptíveis de recurso de impugnaçáo, para o tribunal, nos termos do

    55. do Decreto -Lei n. 433/82, de 27 de Outubro;

  5. - Sujeito o processo ao regime de segredo de justiça, essa situaçáo mantém -se, na sua dimensáo externa, até à decisáo proferida nos termos do artigo 59. do Decreto -Lei n. 433/82, de 27 de Outubro, se antes náo cessar por se ter esgotado o seu fundamento, a requerimento, ou oficiosamente;

    15224 6.ª - As restriçóes de acesso ao processo em segredo de justiça por parte do arguido, cessam com o cumprimento do disposto no artigo 50. do referido Decreto -Lei n. 433/82, de 27 de Outubro;

  6. - O Ministério Público, no quadro actual, náo tem qualquer inter-vençáo no processo das contra -ordenaçóes na sua fase administrativa, náo lhe cabendo ali quaisquer tarefas de impulso processual ou de fiscalizaçáo da acçáo da autoridade administrativa;

  7. - Nas situaçóes em que a lei preveja a existência de intervençóes judiciais relativamente a actos instrutórios do processo das contra-ordenaçóes é aplicável relativamente a esses actos o disposto no n. 1 do artigo 53. do Código de Processo Penal.

    Senhor Procurador -Geral da República, Excelência:

    I

    O Inspector -Geral da Autoridade de Segurança Alimentar e Econó-mica dirigiu a esta Procuradoria -Geral, em 5 de Novembro de 2007, um ofício(1) em que solicita «a elaboraçáo de um parecer» sobre a aplicaçáo ao processo das contra -ordenaçóes do regime do segredo de justiça, consagrado no Código de Processo Penal, na sequência das alteraçóes introduzidas através da Lei n. 48/2007, de 29 de Agosto.

    No cerne das preocupaçóes daquela entidade, conforme resulta do referido ofício, está a sujeiçáo do processo penal ao princípio da publicidade, na sua globalidade, decorrente do artigo 86., n. 1, do Código de Processo Penal revisto, e o reflexo dessa publicidade sobre os arguidos, «nomeadamente tendo em atençáo» as «limitaçóes constantes do giro comercial e dos valores a proteger no âmbito da actividade comercial».

    Preocupa igualmente aquela entidade o regime de acesso ao processo por parte dos arguidos, pretendendo também uma pronúncia sobre os termos em que «poderá, em processos por contra -ordenaçáo, fornecer ao arguido, a um seu mandatário e a terceiros, na fase inicial do processo (a que antecede a fase do exercício do direito de defesa pelo arguido), elementos ou dar -lhes conhecimento do teor de actos processuais sem que tal implique, para o organismo, violaçáo das regras do segredo de justiça».

    Distribuído aquele Ofício ao Gabinete de V. Excelência foi ali elaborada informaçáo em que se concluiu sugerindo a audiçáo deste Conselho, nos termos do artigo 37., alínea e), do Estatuto do Ministério Público(2).

    Considerou -se como fundamento dessa sugestáo que:

    - As questóes colocadas pela ASAE se reconduzem a questóes de legalidade no processamento de ilícitos contra -ordenacionais,exigindo interpretaçáo jurídica das normas citadas, de cuja aplicaçáo poderáo decorrer consequências importantes e, eventualmente gravosas para direitos de sujeitos processuais;

    - Se afigura desejável que, neste âmbito, seja alcançada uma inter-pretaçáo que permita uniformidade de procedimentos entre as diversas autoridades administrativas competentes para o processamento das contra-ordenaçóes;

    - Tal interpretaçáo se reveste de interesse para o processamento das contra -ordenaçóes em geral, e, porventura, de interesse para as áreas de aplicaçáo do direito contra -ordenacional em que a questáo do segredo de justiça pode até adquirir contornos mais delicados - como sejam, por exemplo, as áreas relacionadas com o mercado de valores mobiliários ou com a concorrência

    .

    Sugere -se na mencionada informaçáo, em conclusáo, que este Conselho, para além das questóes colocadas pela ASAE, se pronuncie igualmente sobre o seguinte:

    a) - Em processo contra -ordenacional, poderá ser decretada a sujeiçáo dos autos a segredo de justiça, por despacho do juiz e a requerimento do arguido ou de outro eventual sujeito processual, quando entenda que a publicidade prejudica os direitos daqueles sujeitos ou participantes processuais - n. 2 do artigo 86.;

    b) Ou poderá tal sujeiçáo ser decretada, nos termos do n. 3 do artigo 86., sempre que os interesses da investigaçáo ou os sujeitos processuais o justifiquem - n. 3 do artigo 86.;

    c) Deverá a autoridade administrativa assumir no processo contra-ordenacional, e neste âmbito, as competências que em processo penal cabem ao Ministério Público, reconhecendo -se -lhe competências para decretar a sujeiçáo dos autos a segredo de justiça;

    d) O Ministério Público deve ou náo intermediar a apresentaçáo dos autos ao juiz de instruçáo quer para este decidir o requerido, no caso a), quer para apreciaçáo em ordem à validaçáo da decisáo da sujeiçáo dos autos a segredo de justiça, no caso b) - caso se entenda, que, neste caso, caberá à autoridade administrativa a decisáo

    .

    Cumpre emitir parecer, a que foi atribuída urgência.

    II

    1 - O Direito de Mera Ordenaçáo Social foi introduzido no sistema jurídico português em 1979 através do Decreto -Lei n. 232/79, de 24 de Julho(3), no contexto da Reforma Penal que se veio a concretizar em 1982, onde aquele diploma foi substituído pelo Decreto -Lei n. 433/82, de 27 de Outubro, que define o regime geral em vigor daquele ramo do direito(4)(5).

    à introduçáo daquele direito estáo subjacentes preocupaçóes de natureza político -criminal que se centralizam na afirmaçáo de que aquele novo ramo do sistema sancionatório público «estaria vocacionado para dar atençáo a certas áreas de intervençáo de que, nomeadamente pela sua componente social», o Estado «se náo podia alhear, como a tutela do ambiente, aspectos diversos da economia nacional ou uma intervençáo preventiva na área dos direitos dos consumidores»(6).

    Tratar -se -ia de áreas «carentes de tutela jurídica de carácter sancionatório e finalidades preventivas nas quais, de acordo com as valoraçóes entáo dominantes, náo se justificava uma resposta penal, já entáo orientada para uma intervençáo de ultima ratio, conforme apontava o disposto no artigo 18., n. 2, da Constituiçáo de 1976»(7).

    Tal como se referia no preâmbulo do Decreto -Lei n. 433/82, de 27 de Outubro, «A necessidade de dar consistência prática às injunçóes normativas decorrentes deste novo e crescente intervencionismo do Estado, convertendo -as em regras efectivas de conduta, postula naturalmente o recurso a um quadro específico de sançóes».

    Surgia assim um novo ramo do direito sancionatório, autónomo do Direito Penal, como forma de garantir o princípio da subsidiariedade da intervençáo penal, permitindo reservar o uso daquele direito para as situaçóes em que estivessem em causa os interesses colectivos mais relevantes.

    A autonomia do Direito das Contra -ordenaçóes face ao Direito Penal surge, assim, como uma das justificaçóes da própria existência deste ramo do direito e vai materializar -se na conformaçáo de soluçóes de natureza substantiva e processual diversas das vigentes naquele.

    O Direito das Contra -ordenaçóes mantém, contudo, profundas ligaçóes ao Direito Penal, que se materializam na existência de múltiplas soluçóes normativas comuns criadas no espaço da dogmática penal e que se fundamentam no facto de, tal como aquele, fazer parte do «direito sancionatório de carácter punitivo» que tem aquele ramo do direito como paradigma(8).

    Náo admira, por isso, que o Direito Penal tenha sido definido como direito subsidiário, nos termos do artigo 32. do Decreto -Lei n. 433/82, de 27 de Outubro, e que, coerentemente, o Código de Processo Penal seja direito subsidiário, no que se refere ao regime processual, por força do disposto no artigo 41. do mesmo Decreto -Lei.

    Apesar da evoluçáo que o Direito das Contra -ordenaçóes sofreu ao longo do seu período de vigência e da aproximaçáo que se verificou, em algumas áreas, ao Direito Penal, mantém -se ainda o fundamental das linhas estruturantes deste sector do sistema jurídico(9).

    2 - Por força do disposto no artigo 41., n. 1, do Decreto -Lei n. 433/82, de 27 de Outubro, que tem por epígrafe «direito subsidiário», sempre que o contrário náo resulte deste diploma, «sáo aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal».

    Decorre deste dispositivo a afirmaçáo de que o Código de Processo Penal é direito subsidiário relativamente ao processo das contra -ordenaçóes, o que pressupóe o recurso às soluçóes normativas daquele código sempre que se constate a inexistência de soluçáo própria nos quadros do regime específico das contra -ordenaçóes.

    A importaçáo das soluçóes daquele...

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