Acórdão n.º 7/2006, de 28 de Novembro de 2006

Acórdáo n.o 7/2006

I - Relatório

1 - Do Acórdáo proferido pelo Tribunal da Relaçáo de Évora com data de 5 de Abril de 2005 (processo n.o 2626/04 - 1), interpôs recurso para fixaçáo de jurisprudência, ao abrigo do disposto no artigo 437.o e seguintes do Código de Processo Penal (CPP), a arguida BAILASONS - Exploraçáo Hoteleira, L.da

2 - Baseou o recurso na oposiçáo entre aquele acórdáo e o proferido pelo Tribunal da Relaçáo de Lisboa no processo n.o 7068/03, da 3.a Secçáo, de 10 de Dezembro de 2003.

Na verdade, o acórdáo recorrido julgou verificadas as contra-ordenaçóes das alíneas a) e g) - esta com referência ao artigo 9.o -do n.o 1 do artigo 31.o do Decreto-Lei n.o 231/98, de 22 de Julho, consistentes na falta de licença (feita equivaler a falta de alvará) para prestaçáo de serviços de segurança em regime de auto-protecçáo e na falta de cartáo profissional, relativamente a factos reportados a 29 de Abril de 2001.

O acórdáo da Relaçáo de Lisboa, indicado como fundamento, por sua vez, julgou que, antes da entrada emvigor do artigo 2.o do Decreto-Lei n.o 94/2002, de 12 de Abril, náo constituía contra-ordenaçáo o exercício da actividade de segurança privada, em regime de autoprotecçáo, sem licença, mas táo-só o exercício daquela actividade (por empresa de segurança) sem alvará [artigos 21.o,n.o 1, e 1.o, n.o 3, alínea a), do Decreto-Lei n.o 231/98, de 22 de Julho].

Ora, sustenta a recorrente que, tendo ambos os ares-tos decidido a mesma questáo de direito, «assentando em soluçóes opostas e no domínio da mesma legislaçáo», e náo sendo admissível recurso ordinário da decisáo recorrida, que transitou em julgado, bem como a que serve de fundamento, há lugar ao recurso extraordinário para fixaçáo de jurisprudência, nos termos do artigo 437.o e seguintes do CPP.

3 - Admitido o recurso e instruído com os acórdáos recorrido e fundamento, os autos subiram a este Supremo Tribunal, tendo o Ministério Público (MP), na vista que teve dos autos (artigo 440.o, n.o 1, do CPP), emitido parecer no sentido de ocorrerem os pressupostos legais para o prosseguimento dos autos como recurso extraordinário para fixaçáo de jurisprudência.

4 - Proferido despacho liminar e colhidos os necessários vistos, teve lugar a conferência a que se refere o artigo 441.o do CPP, na qual foi decidido, por Acórdáo de 9 de Março de 2006, ocorrer oposiçáo de julgados apenas quanto à questáo de saber se durante a vigência do Decreto-Lei n.o 231/98, de 22 de Julho, na sua versáo originária e até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.o 94/2002, de 12 de Abril, que introduziu alteraçóes àquele diploma legal, o exercício da actividade de segurança privada, em regime de autoprotecçáo, sem o licenciamento previsto no n.o 2 do artigo 21.o do primeiro dos decretos-leis invocado, integrava a prática da contra-ordenaçáo prevista no seu artigo 31.o,n.o 1, alínea a), ou se esta contra-ordenaçáo abrangia apenas o exercício da actividade privada de segurança por empresas com esse objecto, mas sem o respectivo alvará, conforme exige o n.o 1 do referido artigo 21.o

Com efeito, só esta questáo estava em causa em ambos os acórdáos, e náo também a questáo relacionada com a infracçáo prevista e punida pelos artigos 9.o, n.o 1, e 31.o, n.o 1, alínea g), do Decreto-Lei n.o 231/98, de 22 de Julho, que náo era objecto do acórdáo fundamento.

5 - Notificados os sujeitos processuais nos termos do artigo 442.o, n.o 1, do CPP, alegaram o MP e a recorrente.

O primeiro, depois de passar em revista os vários diplomas legais que regularam a actividade de segurança privada e de traçar os limites de interpretaçáo em que o aplicador da lei se deve mover, acabou por concluir com a seguinte proposta de decisáo:

No domínio da versáo originária do artigo 31.o,n.o 1, alínea a), do Decreto-Lei n.o 231/98, de 22 de Julho, o exercício da actividade de segurança privada em regime de autoprotecçáo sem a licença prevista no n.o 2

do artigo 21.o do mesmo diploma integrava a prática da contra-ordenaçáo prevista na primeira disposiçáo citada.

Por seu turno, a recorrente concluiu em sentido exactamente oposto, ou seja, no sentido de que o exercício, sem licença, da actividade de segurança privada em regime de autoprotecçáo, durante a vigência da versáo originária do Decreto-Lei n.o 231/98, de 22 de Julho, náo integra a previsáo da alínea a) do seu artigo 31.o

Para tanto, argumentou que a divergência de regulamentaçáo no que se refere à segurança privada na modalidade de autoprotecçáo, para a qual era exigido licenciamento, e a actividade de segurança privada exercida por empresas com esse objecto, para a qual se exigia alvará, náo constituía mero lapso do legislador. E como ao regime das contra-ordenaçóes sáo aplicáveis os princípios vigentes no direito penal, nomeadamente os da legalidade e tipicidade, dos quais decorre a punibilidade do facto previsto como contra-ordenaçáo, náo sáo admitidas interpretaçóes extensivas, quando das mesmas resulte um agravamento da responsabilidade criminal. Daí que o legislador sentisse a necessidade de revogar o artigo 31.o do Decreto-Lei n.o 231/98, de 22 de Julho, o que fez com a publicaçáo do Decreto-Lei n.o 94/2002, de 14 de Abril, passando a prever também a falta de licenciamento como contra-ordenaçáo, visto que no regime antecedente, aqui aplicável, apenas se previa como contra-ordenaçáo o exercício da actividade de segurança privada exercida por empresas quando faltasse o respectivo alvará. Deste modo, a conduta da recorrente, consistente no exercício de segurança privada na modalidade de autoprotecçáo sem licença, porque reportada a datas anteriores à entrada em vigor desse novo diploma legal, náo integrasse a previsáo da alínea a) do artigo 31.o do Decreto-Lei n.o 231/98.

6 - Colhidos os vistos e reunido o pleno das secçóes criminais, cumpre conhecer e decidir.

II - Fundamentaçáo

7 - Como se decidiu no acórdáo interlocutório e resulta nítido do n.o 2 do antecedente relatório, é patente a oposiçáo dos acórdáos que polarizam o conflito de jurisprudência aqui sub judicio.

Os acórdáos em oposiçáo transitaram em julgado e foram proferidos no âmbito da mesma legislaçáo.

Assim, nada obsta ao prosseguimento deste recurso, com vista à soluçáo do referido conflito de jurisprudência.

8- A questáo.

8.1 - A questáo a resolver incide sobre o problema de saber se, durante a vigência do Decreto-Lei n.o 231/98, de 22 de Julho, na sua versáo originária, e até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.o 94/2002, de 12 de Abril, que introduziu alteraçóes àquele diploma legal, o exercício da actividade de segurança privada em regime de autoprotecçáo sem a licença prevista no n.o 2 do artigo 21.o daquele primeiro diploma legal integrava o tipo contra-ordenacional descrito no seu artigo

31.o, n.o 1, alínea a), ou se esta contra-ordenaçáo abrangia apenas o exercício da actividade privada de segurança por empresas com esse objecto mas sem o respectivo alvará.

O acórdáo recorrido decidiu a questáo em sentido afirmativo, ao passo que o acórdáo fundamento a decidiu em sentido negativo.

A discrepância de soluçóes gira em torno da inter-pretaçáo do artigo 31.o do referido diploma legal, que apenas prevê de forma explícita como contra-ordenaçáo o exercício da actividade de segurança privada sem o

8108 respectivo alvará, sendo que esta exigência se reporta táo-somente ao exercício de tal actividade na modalidade de prestaçáo de serviços por empresas com esse objecto. às empresas que exercem a segurança privada em regime de autoprotecçáo apenas se exige, nesse diploma, licença do Ministro da Administraçáo Interna.

8.2 - Numa primeira abordagem que se atenha ao teor literal da norma, parece que a contra-ordenaçáo só poderá configurar-se em relaçáo a actividades de segurança privada que sejam exercidas por empresas com tal objecto, mas que náo sejam detentoras do necessário alvará.

Com efeito, o artigo 31.o acima referido dispóe, literalmente:

Artigo 31.o

1 - De acordo com o disposto no presente diploma, constituem contra-ordenaçóes:

a) O exercício de actividades proibidas nos termos do artigo 6.o e a prestaçáo de serviços de segurança, sem o necessário alvará [. . .]

Em mais nenhuma das suas alíneas se prevê o exercício de actividades de segurança privada sem o respectivo título, nomeadamente actividades de segurança privada exercidas em sistema de autoprotecçáo sem a respectiva licença.

Isto ao contrário do que sucede com o Decreto-Lei n.o 94/2002, de 12 de Abril, que, entre o mais, alterou a redacçáo da alínea a) do referido artigo 31.o, ficando com a seguinte redacçáo:

a) O exercício de actividades proibidas nos termos do artigo 6.o e a prestaçáo de serviços de segurança, sem o necessário alvará ou licença.

Ora, apesar de a redacçáo do artigo 31.o do Decreto-Lei n.o 231/98 náo conter mençáo expressa a «licença», será isso impeditivo de se fazer uma inter-pretaçáo desse normativo que a inclua?

Uma tal formulaçáo do problema remete-nos para o domínio hermenêutico, no âmbito específico da inter-pretaçáo de normas jurídicas, quer em tema geral, quer em tema especial, particularmente no que se refere ao domínio do direito penal e das contra-ordenaçóes, na medida em que a estas se apliquem as regras e os princípios basilares daquele.

É sabido que a interpretaçáo das normas jurídicas, se tem de partir de uma matéria-prima que é a língua, e da conjugaçáo das palavras que formam o texto da lei ou norma, náo deve bastar-se com o seu teor literal, quer porque as palavras náo sáo unívocas na rede verbal que forma uma língua, adquirindo constantemente novos sentidos pela dinâmica própria do seu desenvolvimento e, por isso, sendo polissémicas, quer porque existe frequentemente uma distância, maior ou menor, entre o pensamento e a sua expressáo, às vezes esta excedendo aquele, outras vezes ficando aquém dele.

Daí que a actividade interpretativa, por norma, tenha sempre de ir além do simples teor verbal da lei, porque, em rigor, náo existe um exacto sentido para cada palavra nem texto que tenha...

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