Acórdão n.º 527/2006, de 10 de Novembro de 2006
Acórdáo n.o 527/2006
Processo n.o 284/2006
Acordam na 3.a Secçáo do Tribunal Constitucional:
1 - Por sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Sáo Vicente de 7 de Dezembro de 2004, a fl. 158, Custódio Militáo Rodrigues foi absolvido da prática do crime de furto qualificado, previsto e punido nos artigos 203.o, n.o 1, e 204.o, n.o 2, alínea e), por referência ao artigo 202.o, alíneas d) e e), todos do Código Penal, pela qual tinha sido acusado, e homologada a desistência da queixa apresentada pelo ofendido quanto à prática de crime de furto simples, previsto e punido no artigo 203.o, n.o 1, do Código Penal, sendo, consequentemente, declarado extinto o procedimento criminal.
Para o efeito, considerou-se o seguinte na referida sentença:
É, no entanto, de salientar que os bens furtados pelo arguido sáo no valor de E 87,20.
De acordo com o preceituado no artigo 204.o, n.o 4, do Código Penal, 'Náo há lugar à qualificaçáo se a coisa furtada for de diminuto valor'.
Nos termos do disposto no artigo 202.o, alínea c), do Código Penal, 'valor diminuto é aquele que náo exceder uma unidade de conta avaliada no momento da prática do facto'.
No caso vertente, atendendo a que o valor dos bens furtados é inferior a uma unidade de conta, náo há lugar à qualificaçáo do crime, nos termos sobreditos.
Destarte, resulta da factualidade provada o preenchimento pelo arguido do sobredito elemento típico do tipo legal base do crime de furto simples.
[...]
Porém, no caso em apreço mostra-se que o ofendido, em audiência de julgamento, manifestou o propósito de desistir do procedimento criminal.
A tal desistência de queixa náo se opôs o arguido (artigo 116.o, n.o 2, do Código Penal).
Pelo exposto, sendo certo que o ilícito em questáo tem natureza semipública (cf. o n.o 3 do artigo 203.o do Código Penal), homologo a desistência de queixa apresentada pelo ofendido Manuel Luís Pereira Costa e, consequentemente, declaro extinto o procedimento criminal.
Notificado da sentença, o Ministério Público recorreu para o Tribunal da Relaçáo de Lisboa, que decidiu, por Acórdáo de 25 de Janeiro de 2006, a fl. 216, «conceder provimento ao recurso, revogando [. . .] a sentença recorrida e condenando o arguido, como autor material de um crime de furto qualificado, previsto e punido nos artigos 203.o e 204.o, n.o 2, alínea e), com referência ao artigo 202.o, alíneas d) e e), todos do Código Penal, na pena de 2 anos de prisáo, com execuçáo da mesma suspensa pelo período de um ano».
Na parte que agora releva, diz-se neste acórdáo:
A) Primeira questáo (qualificaçáo do crime de furto).
[. . .] Assente que a conduta descrita integra a prática de um crime de furto simples, previsto e punido no artigo 203.o do Código Penal, importa agora determinar se a mesma é ou náo subsumível à circunstância agravante ou modificativa prevista na alínea e) do n.o 2 do artigo 204.o, como se conclui na douta acusaçáo.
O artigo 204.o do Código Penal parte do conceito de furto simples
(cujos elementos constitutivos se acabaram de analisar), utilizando para isso, simplesmente, a palavra 'furtar'.
Enumera, de forma taxativa, as circunstâncias agravantes que qualificam o furto e que, consequentemente, modificam a pena aplicável.
Determina o artigo 204.o,n.o 2, alínea e), do Código Penal revisto, que:
'Quem furtar coisa móvel alheia: penetrando em habitaçáo, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, [. . .] por escalamento ou chaves falsas; é punido com pena de prisáo de2a8 anos.'
O crime de furto é qualificado quando a conduta do agente preenche qualquer uma das qualificativas previstas no artigo 204.o do Código Penal de 1995. Sáo elas, naquilo que ao caso concreto interessa, a prática do crime com introduçáo em estabelecimento comercial por escalamento, introduçáo em espaço fechado por chaves falsas.
O escalamento significa, designadamente, a introduçáo em casa ou em lugar fechado dela dependente, por local náo destinado normalmente à entrada. As chaves falsas sáo, nomeadamente, quaisquer instrumentos que possam servir para abrir fechaduras.
No que diz respeito à desqualificaçáo prevista, por força do n.o 4
do artigo 204.o do Código Penal, dispóe tal normativo:
'Náo há lugar à qualificaçáo se a coisa furtada for de diminuto valor.'
E valor diminuto é aquele que náo excede uma unidade de conta avaliada no momento da prática do crime - alínea c) do artigo 202.o do Código Penal.
Aquando da perpetraçáo do referido crime (Setembro de 2002) o valor da UC estava avaliado em E 79,81 - cf. artigo 3.o do Decreto-Lei n.o 323/2001, de 17 de Dezembro.
Ora, sendo de E 87,20 o valor dos objectos furtados (n.o 4 da matéria de facto), que ultrapassa o daquela UC, náo poderá, pois, desqualificar-se o referido crime de furto.
[. . .] Entendemos, salvo melhor opiniáo, que 'aquela norma [artigo 202.o, alínea c), do Código Penal] é explícita e esclarecedora, sendo perfeitamente determinável o conteúdo do elemento valor, seja valor diminuto, seja valor elevado, seja valor consideravelmente elevado. Dada a referência nele consignada, o conteúdo do valor está previamente determinado pelo jogo do reenvio externo.
Náo se justifica, por isso, náo a aplicar.
Assim, porque inexistem causas que excluam a ilicitude do acto ou a culpa do arguido, cometeu aquele o crime de furto qualificado por que vinha acusado'.
B) Segunda questáo - natureza pública do crime de furto qualificado que náo permite desistência de queixa.
O crime de furto qualificado previsto e punido pelos artigos 203.o, n.o 1, e 204.o, n.o 2, alínea e), do aludido compêndio substantivo, reveste natureza pública, náo dependendo da vontade do ofendido o prosseguimento do processo, pelo que a declaraçáo de desistência de queixa apresentada pelo ofendido Manuel Luís Pereira Costa náo produz qualquer efeito, atendendo aos actos provados.
2 - Inconformado, Custódio Militáo Rodrigues interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
1) O recurso é interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.o 1 do artigo 70.o da Lei n.o 28/82, de 15 de Novembro (na redacçáo que lhe foi dada pela Lei n.o 13-A/98, de 26 de Fevereiro);
2) O arguido pretende ver apreciada a constitucionalidade da norma da alínea c) do artigo 202.o do Código Penal (quando aplicável por força de um dos artigos do capítulo II do título II do Código Penal - nomeadamente o artigo 204.o) com a interpretaçáo ou no sentido de vedar a aplicaçáo da lei penal nova que, em funçáo do valor, transforma um crime público em crime semipúblico (tendo havido desistência da queixa apresentada). Dito de outro modo: é materialmente inconstitucional, por aplicaçáo, nomeadamente, do princípio da aplicaçáo retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável, a norma constante da alínea c) do artigo 202.o do Código Penal, na medida em que veda a aplicaçáo da lei penal nova que atribui relevância à desistência de queixa, transformando em crime semipúblico um crime público;
3) Tal norma, nos termos e com o sentido com que foi aplicada (pelo Tribunal da Relaçáo de Lisboa), além de violar o disposto no n.o 4 do artigo 2.o do Código Penal, afronta directamente o princípio da aplicaçáo retroactiva da lei penal mais favorável, consagrado no n.o 4 do artigo 29.o da Constituiçáo, e, bem assim, o princípio da necessidade da pena (n.o 2 do artigo 18.o) e, ainda, o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.o do diploma fundamental;
[...]
3 - Admitido o recurso, e como já constassem dos autos as alegaçóes do recorrente, foi o Ministério Público notificado para o efeito.
Sáo as seguintes as conclusóes do recorrente:
1 - à data da douta sentença de 1.a instância, o valor dos objectos furtado é inferior à unidade de conta em vigor.
2 - Os objectos furtados sáo de valor diminuto. 3 - Os factos que integram o tipo de ilícito continuam a ser puníveis, é certo, mas com diferente regime penal, mais favorável ao arguido, nomeadamente, quanto à pena aplicável em abstracto e quanto aos pressupostos processuais.
4 - O tipo de ilícito praticado foi o crime de furto simples. 5 - Tal ilícito criminal tem a natureza de crime semipúblico. 6 - A nova lei ou o novo regime penal passa a fazer depender o procedimento de queixa do ofendido, e, consequentemente, a considerar relevante a desistência de queixa, sendo que o resultadoda sua aplicaçáo é equivalente ao que decorre de uma lei que descriminaliza a conduta do arguido. A aplicaçáo do novo regime determina a náo puniçáo do arguido (v. o Acórdáo do Tribunal Constitucional n.o 677/98, proferido no processo n.o 194/97).
7 - Tal crime admite a desistência de queixa. 8 - O ofendido manifestou, em audiência de julgamento, a vontade em desistir do procedimento criminal.
9 - O arguido a tal náo se opôs.
10-On.o 4 do artigo 29.o da CRP determina e exige a aplicaçáo retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido.
11 - A lei (ou o regime) que permite a desistência de queixa é mais favorável ao arguido do que aquela que náo o permite.
12 - O tribunal de 1.a instância, ao decidir como decidiu, fez uma aplicaçáo correcta da lei e do direito, na medida em que, segundo as disposiçóes penais em vigor, aplicou o regime que concretamente se mostrou (e mostra) mais favorável ao arguido (n.o 4
do artigo 2.o do Código Penal, em conjugaçáo com o n.o 4 do artigo 29.o da CRP).
13 - Pelo contrário, o Tribunal da Relaçáo de Lisboa, decidindo em recurso, fez uma errada interpretaçáo e aplicaçáo da lei e do direito, ao atender apenas ao momento da prática do facto e dessa forma fundamentar a puniçáo do arguido à revelia da aplicaçáo retroactiva da lei penal mais favorável ao arguido (n.o 4 do artigo 2.o do Código Penal e n.o 4 do artigo 29.o da CRP).
14 - A norma da alínea c) do artigo 202.o do Código Penal (quando...
Para continuar a ler
PEÇA SUA AVALIAÇÃO