Acórdão n.º 273/2008, de 12 de Junho de 2008

Acórdáo n. 273/2008

Acordam na 3.ª Secçáo do Tribunal Constitucional

I - Relatório. - 1 - A representante do Ministério Público junto do Tribunal de Comarca de Gondomar interpôs, ao abrigo do disposto na alínea a) do n. 1 do artigo 70. da Lei n. 28/82, de 15 de Novembro, alterada pela Lei n. 13 -A/98, de 26 de Fevereiro (Lei Tribunal

Constitucional), recurso para este Tribunal da decisáo proferida em 21 de Março de 2007 por aquele Tribunal, que recusou, com fundamento em inconstitucionalidade material, a aplicaçáo do conjunto normativo constante do «Anexo à Lei n. 34/04, de 29 de Julho, conjugado com os artigos 6. a 10. da Portaria n. 1085 -A/04, de 31 de Agosto, na parte em que impóem que seja considerado para efeitos do cálculo do rendimento relevante do requerente do benefício do apoio judiciário, casado, desempregado e sem que beneficie de qualquer subsídio ou pensáo, o rendimento da sua mulher e da sua filha maior (ou pelo menos o desta), por violaçáo do direito de acesso ao Direito e aos tribunais consagrado no artigo 20. da Constituiçáo da República Portuguesa». Pode ler -se na respectiva «fundamentaçáo de direito»:

Nos termos do artigo 20., n. 1 da Constituiçáo da República Portuguesa - que está integrado na parte relativa aos princípios gerais dos direitos e deveres fundamentais - a todos é assegurado o acesso ao Direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legal-mente protegidos, náo podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.

Em termos de lei ordinária, o apoio judiciário é hoje regulado pela lei n. 34/2004, de 29 de Julho, onde se dispóe, no seu artigo 1., que o sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina -se a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razáo da sua condiçáo social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos.

Acrescenta depois o artigo 7., n. 1 do referido diploma legal que têm direito a protecçáo jurídica, nos termos da presente lei, os cidadáos nacionais e da Uniáo Europeia, bem como os estrangeiros e os apátridas com titulo de residência válido num Estado membro da Uniáo europeia, que demonstrem estar em situaçáo de insuficiência económica.

A lei n. 34/2004 implementou uma remodelaçáo no que respeita à delimitaçáo/concretizaçáo da insuficiência económica como pressuposto da concessáo do benefício do apoio judiciário, remodelaçáo que começa com o n. 1 do artigo 8., onde se dispóe que se encontra em situaçáo de insuficiência económica aquele que, tendo em conta factores de natureza económica e a respectiva capacidade contributiva, náo tem condiçóes objectivas para suportar pontualmente os custos de um processo. E nos termos do n. 5 do mesmo preceito, a prova e a apreciaçáo da insuficiência económica devem ser feitas dc acordo com os critérios estabelecidos e publicados em anexo à referida lei.

Conforme tem vindo a ser entendido quer pela Doutrina, quer mesmo pela Jurisprudência, a referida regulamentaçáo em anexo náo se consubstancia em delimitaçáo do direito fundamental consagrado no artigo 20., n. 1 da CRP.

Como parece resultar claro do citado n. 5 do artigo 8., e como resultará claro da simples leitura dos preceitos que a seguir seráo citados, outra coisa náo se faz que náo seja delimitar o direito de acesso ao Direito e aos tribunais, pois tal acesso depende de uma situaçáo de insuficiência económica, cujos critérios de apreciaçáo sáo fixados/tabelados, inclusive por recurso a uma fórmula matemática.

Repare -se ainda que a norma que constituía o artigo 7., n. 1 da lei n. 30 -E/2000, de 20 de Dezembro, e que era preenchida em face do caso concreto, passou a ser uma norma preenchida legislativamente. O que era antes uma norma aberta à ponderaçáo do caso concreto passou a ser uma norma fechada, ponderando estritos aspectos económico -financeiros, como resulta claro da adopçáo de uma fórmula matemática. Sendo pressuposto da concessáo do benefício do apoio judiciário uma situaçáo de insuficiência económica, ao tabelarem -se os critérios de apreciaçáo dessa situaçáo, inclusive com recurso a uma fórmula matemática como resulta dos artigos 6. a 10. da Portaria n. 1085 -A/2004, de 31 de Agosto, é manifesto que se procedeu a uma delimitaçáo do direito de acesso ao Direito e aos tribunais. Tal delimitaçáo náo foi feita na norma que consagra o direito; foi feita ao nível da sua concretizaçáo.

O Instituto da Segurança Social indeferiu o pedido de apoio judiciário ao requerente porque considerou que o seu agregado familiar tinha um rendimento relevante que lhe dava direito ao benefício do apoio judiciário na modalidade de pagamento faseado.

Sendo um dado assente, atenta a matéria de facto supra descrita, que o requerente vive em 'economia comum' com a sua mulher e os dois filhos do casal, sempre a questáo a decidir terá de se colocar ao nível da aplicaçáo do Anexo à lei n. 34/2004, que remete a apreciaçáo da insuficiência económica para o rendimento relevante do agregado familiar e da fórmula matemática previstas nos artigos 6. a 10. da Portaria n. 1085-A/04.

E a aplicaçáo destes critérios conduzem, no caso concreto, a um resultado que náo se mostra conforme o direito fundamental de acesso ao Direito e aos tribunais, quer por que implica uma restriçáo intolerável de tal direito - violaçáo do princípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar -se numa 'justa medida', impedindo -se a adopçáo de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relaçáo aos fins tidos em vista - quer por que se traduz numa violaçáo do principio

25918 da igualdade - que obriga à diferenciaçáo, como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupóe a eliminaçáo, pelos poderes públicos, de desigualdades fácticas de natureza social, econó-mica ou cultural (Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CRP Anotada, 3.ª ediçáo, pág. 127).

Com efeito, o rendimento relevante assenta todo ele no rendimento

obtido pela mulher e filha do requerente, que se encontra desempregado e náo aufere qualquer pensáo ou subsídio.

Parece, por conseguinte, claro que se recusou o benefício do apoio judiciário ao requerente náo com base na sua insuficiência económica, mas na suficiência económica de terceiros que com ele vivem em economia comum e que náo tem qualquer tipo de obrigaçáo de suportar as despesas inerentes à demanda em que aquele se encontra envolvido, o que constitui uma clara distorçáo ao artigo 20., n. 1 da CRP nas vertentes já referidas: violaçáo dos princípios da proporcionalidade e da igualdade.

Náo auferindo o requerente, comprovadamente, qualquer rendimento, e considerando a alínea a) do Anexo que dispóe que o requerente cujo rendimento relevante para efeitos de protecçáo jurídica seja igual ou menor do que um quinto do salário mínimo nacional, náo tem condiçóes objectivas para suportar qualquer quantia relacionada com os custos de um processo, impóe -se conceder provimento ao recurso e em consequência conceder ao requerente o benefício do apoio judiciário na modalidade peticionada: dispensa total de taxa de justiça e demais encargos com processo.

Em sentido em tudo idêntico ao agora perfilhado decidiu o Tribunal Constitucional no Acórdáo n. 654/06, de 28 de Novembro de 2006, proferido no âmbito do processo n. 840/05 - 1.ª Secçáo (Relatora Conselheira Maria Joáo Antunes), para cujas consideraçóes se remete.

Mas ainda que se entendesse que o rendimento auferido pela mulher do requerente deveria (ou deverá) ser tido em consideraçáo na questáo em apreço, por se tratar de um bem integrado na comunháo conjugal (cf. artigo 1724., alínea a) do Código Civil), sempre a conclusáo seria em tudo idêntica à anteriormente referida.

Com efeito, atendendo a prova documental junta aos autos constata-se que o rendimento líquido (e náo o ilíquido como se fez na decisáo impugnada) auferido pelo casal e que serviu de base à decisáo impugnada se cifrou cm €5.455,50 (e náo se refere aqui as contribuiçóes para a segurança social, uma vez que estas também náo foram tidas em consideraçáo na decisáo impugnada).

Sendo o produto do trabalho bem comum (ou integrado na comunháo, por força da disposiçáo legal supra referida), sempre se teria de concluir que daquele rendimento o requerente teria direito a metade, ou seja, €2727,75. E, por conseguinte, seria este montante a ter em consideraçáo para cálculo do valor do rendimento para efeitos de protecçáo jurídica.

Ora, se a este rendimento aplicássemos os coeficientes referidos na Portaria n. 1085 -A/2004, de 31 de Agosto, facilmente concluiríamos que o rendimento mensal para efeitos de protecçáo jurídica seria de €92,06, ou seja, manifestamente inferior a metade do valor do salário mínimo nacional. E por via disso teríamos de concluir que o requerente estaria em condiçóes objectivas para suportar os custos da consulta jurídica e, por...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT