Acórdão n.º 274/2008, de 12 de Junho de 2008

Acórdáo n. 274/2008

  1. Relatório

    1 - Mário Joáo Ferreira Matos requereu perante os serviços de segurança social de Coimbra a concessáo de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo para assim poder intervir num processo de execuçáo fiscal que lhe fora instaurado.

    Tomando por base o rendimento anual líquido do requerente e da pessoa que com ele vive em situaçáo análoga à dos cônjuges, a que se considerou corresponder o rendimento relevante, para efeitos de protecçáo jurídica, superior a metade e menor do que duas vezes o valor do salário mínimo nacional, os serviços de segurança social notificaram o requerente, em sede de audiência do interessado, de uma proposta de decisáo no sentido de lhe ser deferido o pedido de apoio judiciário na modalidade pagamento faseado.

    Tendo o requerente manifestado a sua discordância, no uso da facul-dade prevista no artigo 100. do Código de Procedimento Administrativo, o pedido veio a ser indeferido por decisáo de 6 de Março de 2007.

    O requerente impugnou essa decisáo perante o Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, que decidiu conceder ao impugnante o apoio judiciário na requerida modalidade de dispensa total de pagamento de custas e demais encargos do processo, desaplicando, no caso concreto, as normas constantes do Anexo que integra a Lei n. 34/2004, de 29 de Julho, em conjugaçáo com aos artigos 6. a 10. da Portaria n. 1085 -A/2004, de 31 de Agosto, por violaçáo dos artigos 1., 59., n. 2, alínea a), e 63, n. os 1 e 3, e 20., n. 1, da Constituiçáo da República Portuguesa.

    A decisáo encontra -se fundamentada, na parte que mais interessa considerar, nos seguintes termos:

    Na sequência deste diploma [referindo -se à Lei n. 34/2004, de 29 de Julho], a concessáo de protecçáo jurídica a quem, tendo em conta factores de natureza económica e a respectiva capacidade contributiva, náo tem condiçóes objectivas para suportar pontualmente os custos de um processo (cf. artigo 8, n. 1, da Lei n. 34/2004) passou a depender do valor do rendimento relevante para efeitos de protecçáo jurídica (artigos 8., n. 5, e 20., n. 1, e ponto 1. do Anexo da lei n. 34/2004), determinado a partir do rendimento do agregado familiar - ou seja, também a partir do rendimento das pessoas que vivam em economia comum com o requerente de protecçáo jurídica (n.os 1 e 3 do ponto 1. deste Anexo) - e das fórmulas previstas nos artigos 6. a 10. da Portaria n. 1085 -A/2004, de 31 de Agosto.

    A apreciaçáo em concreto da situaçáo de insuficiência económica do

    requerente de protecçáo jurídica passou a ter lugar a título excepcional (cf. artigos 20., n. 2, da lei de 2004 e 2 da referida Portaria), diferentemente do que sucedia no direito anterior (cf. artigos 7., n 1, 20., n. os 1 e

    2, e 23., n. 2, do Decreto -Lei n. 387 -B/87, artigos 7., n. 1, e 20., n. os 1

    e 2, da Lei n. 30 -E/2000 e modelo de requerimento de apoio judiciário para pessoas singulares aprovado pela Portaria n. 1223 -A/2000, de 29 de Dezembro), relativamente ao qual é de salientar, a título exemplificativo, que o afastamento da presunçáo de insuficiência económica, legalmente estabelecida, dependia da circunstância de o requerente fruir outros rendimentos, próprios ou de terceiros.

    A norma que constituía o artigo 7., n. 1, da Lei n. 30 -E/2000, de 20 de Dezembro, e que era preenchida em face do caso concreto, passou a ser uma norma preenchida legislativamente. Quer dizer, o que era antes uma norma aberta ao preenchimento do caso concreto passou a ser uma norma fechada, interpretada "ope legis" por critérios económicos e financeiros aplicados através de uma fórmula matemática.

    No caso concreto, nega -se o apoio judiciário na modalidade de dispensa total do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo a um peticionante com um agregado composto por três pessoas e com um rendimento global de € 167,86 porque, segundo os critérios definidos no Anexo à lei do apoio judiciário, calculados segundo as fórmulas estabelecidas em portaria, apenas tem direito ao pagamento faseado.

    A situaçáo só por si apresenta contornos inaceitáveis se tivermos em atençáo, como devemos ter, o custo de vida, nomeadamente, os custos com as necessidades básicas hodiernas, como a habitaçáo, a educaçáo, a saúde e a exigência de assegurar um nível mínimo de rendimentos para que possa concretizar -se o princípio máximo e supremo da dignidade da pessoa humana.

    Mas o caso é mais premente porque, como se sabe, o apoio judiciário é concedido para questóes ou causas judiciais concretas ou susceptíveis de concretizaçáo (artigo 6., n. 2, da LAJ). Deve ser requerido antes da primeira intervençáo processual, salvo se a situaçáo da insuficiência económica for superveniente ou se, em virtude do decurso do processo ocorrer algum encargo excepcional, mantém -se para efeitos de recurso, qualquer que seja a decisáo sobre o mérito da causa e é extensivo a todos os processos que sigam por apenso àquele em que em que essa concessáo ocorrer (artigo 18., n. 2, da LAJ).

    Significa tal que este instituto só se justifica relativamente a questóes judiciais em que o interessado queira exercer ou defender os seus direitos o que implica a pendência de uma lide ou a possibilidade dessa pendência.

    Na situaçáo em análise evidencia -se que o impugnante pretende defender -se em relaçáo a diversas dívidas fiscais objecto de várias execuçóes fiscais (sendo certo que a apensaçáo das execuçóes náo é automática - artigo 179. do CPPT).

    Embora o cálculo do montante de prestaçáo mensal náo seja em funçáo do montante das custas do processo, mas antes em funçáo de vectores como o rendimento relevante de protecçáo jurídica e do salário mínimo nacional (ponto II do Anexo) e haja um limite temporal para estas prestaçóes, náo sendo exigíveis as que se vençam após o decurso de quatro anos desde o trânsito em julgado da decisáo final sobre a causa (n. 2 do artigo 16. da Lei n. 34/2004), o certo é que a justificaçáo do pagamento faseado em situaçóes como a dos autos em que o requerente necessita de instaurar vários processos, desvirtua -se completamente.

    A injustiça flagrante é o limite mínimo da validade do direito, devendo o intérprete desaplicar a lei quando ela se revele intoleravelmente injusta. A irrazoabilidade, a desproporcionalidade, a irracionalidade sáo indicadores dessa injustiça flagrante e, na medida em que impedem a aceitaçáo da lei por parte dos seus destinatários, retiram -lhe a validade.

    Analisada a situaçáo em concreto do requerente - o seu agregado familiar, os seus rendimentos, as suas despesas e todas os demais elementos relevantes -, verifica -se que o mesmo reúne as condiçóes objectivas para que lhe seja concedido o apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento total da taxa de justiça e demais encargos com o processo (artigo 8. da LAJ).

    Assim, é de concluir pela desaplicaçáo das normas constantes do Anexo que integra a Lei n. 34/2004, em conjugaçáo com aos artigos 6. a

    10. da Portaria n. 1085 -A/2004, as quais náo garantem, na situaçáo em referência, a concessáo do apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento total da taxa de justiça e demais encargos com o processo, por violaçáo dos artigos 1., 59., n. 2, alínea a), e 63., n. os 1 e 3, e 20., n. 1, da Constituiçáo da República Portuguesa.

    Desta decisáo, interpôs o Ministério Público recurso para Tribunal

    Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70., n. 1, alínea a), da lei do Tribunal Constitucional, vindo a apresentar, no seguimento do processo, as seguintes alegaçóes:

    1 - Apreciaçáo da questáo de constitucionalidade suscitada

    O presente recurso obrigatório vem interposto pelo Ministério Público da decisáo, proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, que recusou aplicar, com fundamento em inconstitucionalidade, as normas constantes do anexo à Lei n. 34/04, em conjugaçáo com os artigos 6. a 10. da Portaria 1085 -A/2004, enquanto conduziram a denegar ao requerente Mário Ferreira Matos o apoio judiciário, na modalidade de dispensa total da taxa de justiça e demais encargos do processo.

    Na verdade, na óptica da decisáo recorrida, o sistema normativo emergente das disposiçóes legais questionadas - conduzindo a uma avaliaçáo da situaçáo económica do requerente assente exclusivamente na aplicaçáo das fórmulas rigidamente estatuídas, inviabilizando a ponderaçáo casuística, substituída por uma "norma fechada, interpretada "ope legis" por critérios económicos e financeiros aplicados através de uma fórmula matemática", viola o direito de acesso à justiça pelos economicamente carenciados.

    Analisando a especificidade do caso concreto, verifica -se que:

    Foi tido em consideraçáo, na avaliaçáo da invocada insuficiência económica do requerente, náo apenas o rendimento por ele auferido mensalmente (€ 735,86), mas também o recebido pela pessoa que com ele vive em situaçáo análoga à dos cônjuges;

    A rigidez do sistema normativo vigente implicou que náo pudesse ser considerada a especificidade do caso, decorrente de o impugnante pretender defender -se "em relaçáo a diversas dívidas fiscais objecto de

    25914 várias execuçóes fiscais" - desvirtuando -se, neste caso, completamente a justificaçáo do pagamento faseado que lhe havia sido autorizado pela Segurança Social.

    Note -se que a primeira circunstância, atrás salientada, é suficiente para conduzir à aplicaçáo do juízo de inconstitucionalidade formulado no acórdáo n. 654/06: na verdade, no cálculo do rendimento relevante para o efeito de concessáo do benefício do apoio judiciário, na modali-dade peticionada pelo requerente, foi tido em consideraçáo o rendimento global do agregado familiar, incluindo o auferido por quem com ele convivia em uniáo de facto, independentemente de este poder fruir ou dispor de tal rendimento - náo sendo perceptível a existência de...

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