A evolução do direito do consumo

AutorFernando Gravato Morais
CargoProfessor da Escola de Direito da Universidade do Minho
§ 1 Delimitação do tema

O tema que nos propomos analisar é o da evolução do direito do consumo.

Interessa-nos, sobretudo, a perspectiva privatista e, em especial, a vertente contratual, sem prejuízo de, pontualmente, se aludir a matérias de índole publicista.

§ 2 Sintomas da evolução

São vários os índices através dos quais se pode constatar essa evolução. Tais sintomas situam-se em vários planos, próximos, complementares, simétricos ou até opostos.

Todos eles demonstram um sinal positivo na valorização do direito dos consumidores e representam uma forma de perspectivar o seu futuro.

Note-se que a ordem escolhida apenas representa uma possível sequência para a apreciação do problema.

1. A nível doutrinário

O primeiro grande texto que se debruça sobre os direitos dos consumidores foi elaborado no início da década de 80, por Carlos Ferreira de Almeida. O trabalho, muito abrangente e assaz completo, toca as suas inúmeras vertentes, a saber: a protecção física (saúde e segurança), a protecção dos interesses económicos (aqui se incluindo matérias como a publicidade, a formação, o conteúdo e o cumprimento dos contratos, a responsabilidade do produtor, o crédito ao consumo), a resolução dos conflitos, a informação e a educação, bem como a representação e a consulta1.

Portanto, o estudo em causa surge numa altura em que a sociedade se tornava, a pouco e pouco, consciente da necessidade de regulamentação dos problemas dos consumidores2.

À margem de um ou outro artigo publicado em revistas da especialidade, reduzidas páginas sobre esta área do direito constam de obras e de estudos.

Esta situação manteve-se durante um bom par de anos.

O final de década de 90 e, decisivamente, o novo milénio trouxeram consigo uma proliferação de escritos. Temas específicos ligados ao direito dos consumidores foram sendo tratados em monografias3, em dissertações de mestrado4 e de doutoramento5, relatórios de provas de agregação6, sendo de relevar ainda a publicação de textos em várias revistas7, algumas das quais da especialidade8.

2. A nível jurisprudencial

Tendo por referência as decisões conhecidas, pode afirmar-se um percurso bastante semelhante no que toca aos nossos tribunais.

Um ponto prévio se impõe para identificar as matérias que mais têm sido tratadas pelos nossos tribunais superiores: a venda de bens de consumo e os contratos de crédito ao consumo.

Três períodos distintos podem enunciar-se.

Numa fase inicial, até ao final da década de 70 do século passado, são muito escassos os arestos sobre o direito do consumo.

Num momento intermédio (no último quartel do século passado), a produção jurisprudencial cresceu, mas ainda assim se mostrou diminuta e com dimensão reduzida.

Apenas no dealbar do novo século se pode falar verdadeiramente de um boom jurisprudencial. Com efeito, se atentarmos nas matérias assinaladas, em especial nos últimos quatro anos (de 2005 a 2008), pode constatar-se o que afirmamos. São mais de 500 acórdãos divulgados sobre tais assuntos. Cremos que o futuro reserva uma produção jurisprudencial a crescer de forma exponencial e com larga dimensão substancial.

Note-se que o relevo da temática decorre igualmente de algumas vertentes específicas do direito privado do consumo constarem do programa de preparação para o CEJ (é o caso, por exemplo, do crédito ao consumo). A nível interno, ou seja, o da própria formação dos juízes, certas áreas são actualmente abordadas no quadro da formação permanente.

3. A nível legal

A legislação nacional atinente ao direito do consumo surge, pode afirmar-se, nos finais da década de 70 e no início dos anos 80 do século passado9.

Matérias como o envio de produtos não solicitados ou a venda a prestações são, nessa altura, regulamentadas. Também a primeira Lei de Defesa do Consumidor Lei 29/81, de 22 de Agosto é publicada nesse tempo, ao lado de outros diplomas de relevo, dos quais se salienta o Código da Publicidade DL 421/80, de 30 de Setembro.

A partir de então, muitos foram os textos legais produzidos.

As décadas de 80 e, principalmente, a de 90 trouxeram algumas novidades significativas. Naquela deve salientar-se o DL 446/85, de 25 de Outubro, que regula as clausulas contratuais gerais, o DL 383/89, de 6 de Novembro, que trata da responsabilidade do produtor. Nesta, cabe relevar o DL 359/91, de 21 de Setembro, referente ao crédito ao consumo, o DL 275/93, relativo ao direito real de habitação periódica ou turística, a Lei 24/96, de 31 de Julho, a segunda lei de defesa do consumidor, e o DL 209/97, de 13 de Agosto, que disciplina as viagens turísticas.

O novo milénio tem lato significado em sede de produção legislativa. Salienta-se, pela sua importância, o DL 143/2001, de 26 de Abril, quanto à contratação à distância e ao domicílio, o DL 67/2003, de 8 de Abril, que regula a venda de bens de consumo, o DL 95/2006, que trata da comercialização de serviços financeiros prestados a consumidores e o DL 57/2008, de 26 de Março, que cura das práticas comerciais desleais.

De notar que, neste quadro, foram determinantes para a ordem jurídica interna as inúmeras regras comunitárias entretanto surgidas que obrigaram, na sua larga maioria, à sua transposição.

Este impulso foi relevante em áreas onde inexistia disciplina específica é o caso do crédito ao consumo. Noutras situações, serviu para melhorar substancialmente o regime já existente. Tal sucedeu no quadro das vendas à distância, onde dispúnhamos já de um texto pouco protector, não resultante de qualquer texto comunitário.

Actualmente, como se sabe, deve realçar-se a publicação do anteprojecto do Código do Consumidor.

Ao nível da União Europeia, como se aludiu, existem Directivas Comunitárias decisivas com o decorrer dos tempos melhoradas sobre o direito do consumo. Inserido numa política própria, ganha peso a ideia das directivas de harmonização máxima, atendendo a que começa a ganhar expressão o Quadro Comum de Referência (Common Frame of Reference), que visa estabelecer um conjunto de regras de harmonização no direito da união europeia10. E nelas ganha destaque, naturalmente, a relação de consumo (b2c business to consumer), embora sem autonomia estrutural.

Como se constata, a nível legal, desde o último quartel do século passado, houve um incremento muito significativo, decisivo até, com a consagração de inúmeros textos específicos de protecção do consumidor.

4. A nível institucional

A evolução do direito do consumo deve ainda ser olhada sob o perfil institucional. A criação de entidades específicas que superintendem nesta sede ou que auxiliam na resolução dos litígios são os aspectos a salientar.

Releva-se, assim, por um lado, as instituições de promoção e de tutela dos direitos do consumidor, com realce para as associações de defesa de consumidores (cfr. art. 18.° da LDC)11, para o Instituto do Consumidor IC (cfr. o antigo art. 21.° da LDC e Decreto-Lei 234/99, de 25 de Junho), hoje reestruturado, designando-se Direcção-Geral do Consumidor DGC (cfr. o DL 208/2006, de 27 de Outubro e o Decreto Regulamentar 57/2007, de 27 de Abril)12, e para o Conselho Nacional do Consumo (cfr. o art. 22.° LDC)13.

Não se descure, por outro lado, os centros de arbitragem de conflitos de consumo, instrumento significativo para a resolução de alguns litígios14.

5. Ao nível dos mecanismos ou dos institutos jurídicos

Outra manifestação evolutiva importante emerge dos instrumentos ou dos institutos jurídicos especialmente concebidos para tutelar os direitos dos consumidores ou particularmente adaptados à sua protecção.

A eles aludimos, com mais pormenor, um pouco mais à frente, mas não queríamos deixar de realçar, neste momento, mecanismos como a informação (anterior, contemporânea ou posterior) contratual, o direito de "livre resolução" ou a união de contratos.

Estes são os verdadeiros factores que impulsionam o direito do consumo, que potenciam a sua autonomia, pedagógica e dogmática, bem como o seu crescimento no presente e para o futuro.

6. A consciência dos consumidores dos seus direitos

Não podemos deixar de aludir à consciência dos consumidores dos seus direitos como factor evolutivo peculiar.

Enquanto leigo em direito e inexperiente economicamente, o consumidor português demorou algum tempo a perceber que a sua posição de especial debilidade só pode ser superada com a sua participação activa.

Nos nossos dias, essa consciência é particularmente visível no recurso aos tribunais ou à arbitragem. Os conflitos de consumo sempre existiram, mas a tomada de conhecimento dos consumidores dos seus direitos, em paralelo com a teia legislativa que os protege, vão ganhando, a par e passo, um peso cada vez maior na sociedade do presente.

§ 3 Fases da evolução

Como se constatou, pode destacar-se, até à data, três fases distintas na evolução do direito do consumo.

Num primeiro momento, com referência ao período anterior à publicação da primeira lei de defesa do consumidor (em 1981), eram muito frágeis os meios de tutela daquele. As leis esparsas e avulsas mostravam um grau de protecção muito aquém do exigido. Tal situação...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT