Um código do consumidor, para os consumidores ou nem uma coisa nem outra?

AutorJ.Pegado Liz
CargoConselho Económico e Social da União Europeia

J.Pegado Liz1

1. Importa, antes de tudo, reconhecer, porque é devido e de direito, que o ANTEPROJECTO DE CÓDIGO DO CONSUMIDOR, oportunamente apresentado e posto à pública discussão, em especial no que toca ao Prof. Pinto Monteiro mas também aos restantes ilustres membros da Comissão a que presidiu - não pode deixar de ser considerado a obra de uma vida, tanto o tempo que lhe dedicou cerca de 10 anos com rigor científico, afinco, convicção, denodo e persistência.

2. Este reconhecimento não pode, nem deve, no entanto impedir a interrogação, que não é meramente de dúvida sistemática, nem puramente académica, quanto à natureza, utilidade, consistência e oportunidade da iniciativa. E, relativamente a qualquer destes aspectos, a resposta não pode deixar de ser negativa, por qualquer angulo que se encare.

3. Quando confrontado, há vários anos, com as minhas reticências sobre o real objecto deste encargo, dizia-me o Prof. Pinto Monteiro, já em antevisão do desfecho final, que se "trataria de um verdadeiro código" e eu, entre perplexo e atemorizado, perguntava-me que Cerberus ou que Hidra, e com quantas cabeças, estaria a ser concebido, ainda que sem pecado inicial.

O resultado, confesso, excedeu em muito as minhas (piores) expectativas. Trata-se, de facto, de um "verdadeiro código", embora "pós-moderno", no dizer do seu autor, com todos os defeitos que isso exactamente comporta - e precisamente aquilo que nenhuma falta faz aos consumidores e ao ordenamento jurídico nacional.

4. Desde logo porque, com o formato pretendido e conseguido mérito seu se introduz um elemento de rigidificação numa área do direito que é, e deve ser, por essência e natureza, exactamente o oposto um direito vivo, em constante evolução e adaptação a uma realidade da vida social e económica em permanente mudança, cujos conceitos fundamentais não se acham firmados a nível nacional ou comunitário, menos ainda internacional.

Com isso não é o progresso do direito do consumidor que se promove mas a sua estratificação, não é a permanente e desejável evolução de um dos ramos mais novos do saber jurídico que se incentiva, mas antes o seu espartilho em fórmulas estereotipadas, precocemente anquilosadas, a urgir, a breve trecho, alterações, remendos, acrescentos, com prejuízo manifesto para a certeza e a segurança jurídicas. Tanto mais quanto o código se não exime a estabelecer, até, montantes de coimas e a dispor sobre a organização de serviços e instituições!!

5. Por outro lado, porque é hoje comummente aceite que o chamado "direito do consumo" que nunca direito dos consumidores! nos seus aspectos essenciais não tem autonomia científica, representando, quando muito, o fruto de uma evolução precoce em domínios que o direito civil deverá acabar por integrar, como já o estão a fazer países com uma tradição civilista não mais avançada que a nossa, mas que o compreenderam mais cedo2.

6. Aliás é o próprio título do código que é enganador, a duas vertentes. Desde logo, porquanto "o consumidor" não é uma entidade jurídica representativa de uma categoria social susceptível de aglutinar um conjunto de normas de natureza especial; do mesmo modo que não faria sentido um código "dos pais" ou "dos velhos" ou até "dos comerciantes"3, não faz sentido "codificar", à volta de um conceito sem contornos jurídicos bem definidos, toda uma série de direitos e obrigações que respeitam antes a um tipo de relação jurídica em que, mais do que a qualidade...

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