As bases filosóficas da Reforma

AutorAires Loureiro
CargoProcurador da República

O nó górdio do regime de arrendamento urbano é a tendencial perpetuação das situações de arrendamento, resultante da tríade renovação automática, proibição de denúncia pelo senhorio e renda de favor ao inquilino.

Não podendo falar de tudo em tão pouco tempo, abordarei o essencial, percorrendo o seguinte esquema tópico:

- Linhas gerais da evolução da regulamentação do regime do arrendamento urbano em Portugal, desde o Código de Seabra (Código Civil de 1867) até ao presente:

- Da liberdade ao jugo colonial interno.

- O RAU de 1990 como inspiração chinesa: "um RAU dois sistemas";

- O RECRIA como instrumento de arrastamento do problema do arrendamento;

- O Ministério das Obras Públicas como tutor e pagador de obras nos prédios privados, enquanto deixava cair as pontes.

- A origem do NRAU a nossa "proposta para uma lei do arrendamento urbano justa e funcional".

- A reforma do arrendamento de Santana Lopes como catalizador da queda do Governo e causa da ascensão da facção actualmente no Poder.

- Filosofia de evolução na continuidade do NRAU.

- A aquisição forçada dos prédios pelos inquilinos como epílogo da espoliação celerada dos senhorios:

- O triunfo da cobiça; a rasura dos senhorios pobres;

- Referência à questão da inconstitucionalidade da espoliação.

- A reanimação da construção civil e do emprego, como motivos da reforma.

- Palavras soltas

1. Em princípio era a Liberdade Contratual

O Código de Seabra, estabelecia um regime de arrendamento urbano baseado na autonomia da vontade na formação e no cumprimento dos contratos, designadamente quanto ao tempo de duração do arrendamento que era regulado no artigo 1600.°, nos termos seguintes:

Artigo 1600.°: «A locação pode fazer-se pelo tempo que aprouver aos estipulantes, salvas as disposições dos dois artigos seguintes».

Esses dois "artigos seguintes" limitavam o prazo máximo do arrendamento nos casos de bens de menores e de interditos, bens dotais, usufrutos ou fideicomissos.

Sem prejuízo desses limites máximos, decorrido o prazo estipulado pelas partes, o arrendamento extinguia-se.

O código não previa renovações ou prorrogações automáticas do prazo do contrato e muito menos as impunha, a favor de uma das partes contra a outra.

2. A República

Com a implantação da República, iniciou-se a escalada legal insidiosa contra a liberdade contratual no arrendamento, surgindo os primeiros constrangimentos ao estatuto contratual do senhorio, logo em 1910.

Mas foi o Decreto n.° 1079 de 23-11-1914, que desferiu o primeiro ataque à liberdade do senhorio, congelando as rendas e introduzindo a obrigação de arrendar pela mesma renda do contrato anterior, os prédios que vagassem, prevendo que esse regime de excepção vigorasse enquanto durasse a crise que o motivara (era a crise da 1.ª Guerra Mundial).

A Lei 828 de 28-9-1917 prosseguiu a escalada, proibindo o despejo pelo senhorio fundado em não lhe convir a continuação do arrendamento e restringindo a vigência dessa proibição ao período da Guerra e até 6 meses após o tratado de paz.

Mas logo o Decreto n.° 4499 de 27/6-1918, alargou o horizonte de vigência dessas normas excepcionais, até um ano depois do tratado de paz e o Decreto n.° 5411 de 17-4-1919, que reuniu as restrições dispersas, previa a revogação das mesmas quando o Governo entendesse não subsistirem as circunstâncias de carácter económico e financeiro que as motivaram.

Seguiram-se torrentes de intervenções legislativas sobre o arrendamento, sempre confessadamente conjunturais e transitórias, que foram pervertendo o arrendamento num estatuto de servidão do senhorio a favor do arrendatário, onde avultava a renovação obrigatória enquanto conviesse ao inquilino, a proibição da denúncia pelo senhorio e o congelamento das rendas. Houve algumas aberturas no sentido da actualização das rendas degradadas, mediante esquemas complexos com base nos valores matriciais, estes, por sua vez, desajustados da realidade.

A Lei n.° 2030 de 22-6-48 firmou o congelamento de rendas em Lisboa e Porto, admitindo actualizações no resto do país, com base nos valores matriciais.

O Código Civil de 1966 e seu diploma introdutório, no essencial, mantiveram as restrições que vinham da legislação anterior.

O Código estabelecia, no entanto, no seu artigo 1025.°, uma duração máxima para o arrendamento, nos termos seguintes:

Artigo 1025.°

Duração máxima

«A locação não pode celebrar-se por mais de trinta anos; quando estipulada por tempo superior, ou como contrato perpétuo, considera-se reduzido àquele limite.».

Em consequência deste normativo, deveriam ser libertados os arrendamentos que na vigência do Código, perfizessem 30 anos.

O pai do Código Civil, Antunes Varela, escreveu em anotação ao referido artigo 1025.°, na 3.ª edição do seu «Código Civil Anotado», repetindo, aliás, o que a propósito já tinha expendido nas edições anteriores dessa obra, o seguinte:

«Os contratos celebrados por mais de trinta anos não são nulos: consideram-se reduzidos ao limite legal. Não se verifica, porém, um fenómeno de redução, tal como está previsto no artigo 292.°, pois a limitação do prazo impõe-se, mesmo que não seja essa a vontade conjectural das partes. Trata-se de uma redução que exprime uma limitação de ordem pública. Entende-se haver inconvenientes, quer no aspecto económico, quer no plano social, em que o gozo de determinada coisa seja obrigatoriamente concedido para um período demasiado dilatado de tempo a quem não seja o seu proprietário ou usufrutuário» (sic).

Ou seja, segundo esta anotação de A. Varela, a lei, no falado artigo 1025.°, entendeu que era inconveniente que fosse obrigatoriamente concedido por demasiado tempo o gozo de uma coisa a quem não seja o seu proprietário ou usufrutuário, o que é dizer, ao inquilino. E entendeu bem, obviamente.

Ora, se a razão do preceito é não conceder o gozo da coisa por demasiado tempo a quem não é proprietário nem usufrutuário dela, isso vale tanto para a estipulação de prazo inicial como para o somatório das prorrogações. A questão será sempre a do tempo de duração de um mesmo arrendamento, e daí que a epígrafe...

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