Acórdão nº 96/21.1T8ALM-A.L1-6 de Tribunal da Relação de Lisboa, 14-12-2023

Data de Julgamento14 Dezembro 2023
Ano2023
Número Acordão96/21.1T8ALM-A.L1-6
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam na 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa



No processo em epígrafe foi proferida a decisão que se transcreve:

« Excepção de incompetência internacional (absoluta) do tribunal:
O autor ....... ........, português e residente na Praça ..., veio demandar a ré «.......... .... ....», com sede em ... Califórnia, nos Estados Unidos da América, pedindo seja a acção julgada procedente, por provada, e, em consequência:
a)-Seja a ré condenada a pagar-lhe, a título de indemnização, por danos patrimoniais de personalidade, pela utilização indevida da sua imagem e do seu nome, a quantia de € 42.000,00 (quarenta e dois mil euros) de capital, acrescida de juros vencidos, no montante de € 19.165,15 (dezanove mil e cento e sessenta e cinco euros e quinze cêntimos), tudo no total de € 61.165,15 (sessenta e um mil e cento e sessenta e cinco euros e quinze cêntimos), e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal, tudo com o mais da lei;
b)-Seja a ré condenada a pagar-lhe montante nunca inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescido dos juros vencidos, no montante de € 2.567,67 (dois mil e quinhentos e sessenta e sete euros e sessenta e sete cêntimos), tudo no total de € 7.567,67 (sete mil e quinhentos e sessenta e sete euros e sessenta e sete cêntimos), e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal, tudo com o mais da lei.
Para sustentar as sobreditas pretensões, invocou o autor, muito em síntese, que é um jogador de futebol, actualmente no ..., tendo permanecido vinculado a diversos clubes, entre 2003 e 2020, incluindo Brasil, Chipre, Bulgária, Grécia, Cazaquistão, Inglaterra, Noruega e, durante oito épocas desportivas, em Portugal, incluindo as últimas quatro, sendo que, por causa da sua carreira, conta com a exposição pública da sua imagem e sucedendo que a ré, nos jogos electrónicos, vídeos e aplicativos que desenvolve e fornece, incluindo os denominados Fifa ou Fifa Football ou Fifa Soccer, utilizou e continua a utilizar a imagem, nome e as características pessoais e profissionais do autor, o que faz em todo o Mundo, sem a sua autorização e contra a sua vontade, desde, pelo menos, 2007, com o que obtém proventos ilícitos e prejudica a imagem e o nome do autor.
Na contestação que ofereceu, entre o mais, veio a ré invocar que este tribunal é internacionalmente incompetente, pois entende que não existe qualquer factor legal atributivo de competência aos tribunais portugueses, ponderando que a ré é uma sociedade norte-americana, com actividade nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão, não actuando em Portugal e sequer na Europa, além de que a produção dos jogos que o autor entende que lesam a sua imagem não se desenvolve em Portugal, nem aqui são pela ré vendidos, mas por terceiros, não alegando o autor a produção de danos em Portugal.
Foi exercido o contraditório, pugnando o autor pela competência internacional deste tribunal, em consonância com a posição constante da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.

Importa decidir.

É consabido que a incompetência internacional do tribunal (incompetência absoluta) deve ser conhecida nesta sede, isto é, na fase de saneamento do processo, e constitui excepção dilatória, a qual, neste caso, é de conhecimento oficioso, podendo ser conhecida até à sentença, mas foi, de todo o modo, alegada em tempo (na contestação), determinando a sua verificação a absolvição do réu da instância (art.ºs 59.º, 96.º, alínea a), 97.º, n.º 1, 98.º, 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea a), 279.º, 576.º, n.º 1 e n.º 2, 577.º, alínea a), 578.º e 595.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil).
Impõe-se, assim, encetar pelo exame da excepção de incompetência absoluta deste tribunal para a tramitação e decisão da presente acção, a qual, a ser declarada, impede a prolação de decisão que incida sobre o mérito da causa.
Tem sido posição constante e uniforme aquela que estabelece que a competência do tribunal se afere em função do objecto processual que é configurado nos autos pelo autor na sua petição inicial, isto é, a competência deve analisar-se no confronto entre o respectivo pedido e a causa de pedir tal como são representados pelo autor no articulado inicial.
Da antecedente asserção decorre que a questão da competência internacional terá que ser apreciada independentemente do mérito da acção.
Assim sendo, é em função do thema decidendum representado nesta acção pelo autor que deve ser aferida a competência internacional do tribunal.

Nesse sentido, pode ver-se, entre tantos outros arestos e a título meramente exemplificativo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2020 (acessível in www.dgsi.pt – processo n.º 12223/16.6T8PRT.P1.S1), no qual, em síntese e entre o mais, se decidiu que “I– A competência internacional deve ser aferida em função do pedido e da causa de pedir.”, bem como se poderá tomar em consideração o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26.10.2021 (acessível in www.dgsi.pt – processo n.º 3239/20.9T8CBR-A.C1), no qual ficou decidido, de igual modo, que “I– A competência internacional dos Tribunais Portugueses afere-se pelo quid disputatum, isto é, pelos termos em que o autor configura a relação jurídica controvertida, pressupondo que o litígio apresenta um ou mais elementos de conexão com uma ou várias ordens jurídicas distintas do ordenamento do foro.”
Nestes termos, a materialidade com relevância para a apreciação da excepção de incompetência material deste tribunal é a que resulta da alegação factual oferecida pelo autor na sua petição inicial, a qual se encontra já expressa e cuja reiteração se revela despicienda, mas para cujo teor se remete e se considera reproduzido.

Dessa alegação, destaca-se, contudo, porquanto relevante para a decisão, o seguinte enquadramento feito pelo autor e decorrente do seu articulado inicial:
a)-O autor é português e tem domicílio em Portugal;
b)-O autor permaneceu vinculado a diversos clubes de futebol, entre 2003 e 2020, incluindo no Brasil, Chipre, Bulgária, Grécia, Cazaquistão, Inglaterra, Noruega e em Portugal, durante oito dessas épocas desportivas, incluindo as últimas quatro.
c)-O autor invoca que a lesão do seu nome e imagem ocorreu em todo o Mundo, através dos produtos produzidos e comercializados pela ré, incluindo em Portugal;
d)-A ré tem sede e desenvolve a sua actividade nos Estados Unidos da América.
Face ao enquadramento precedentemente plasmado, verifica-se, portanto, que, nesta acção declarativa de condenação, está desde logo em causa a alegada violação, pela ré, de direitos de personalidade (pessoais) do autor, conduta essa que sustenta um pedido de indemnização, para ressarcimento dos danos decorrentes da alegada conduta ilícita, culposa e geradora de danos perpetrada pela ré.
Ante o exposto, no caso em apreço, terá que se concluir que a responsabilidade civil assacada à ré, independentemente de se encontrar ou não assente o rigoroso enquadramento jurídico dos factos que integram a causa de pedir, tem claramente natureza estritamente extracontratual.
Também não é menos óbvio que a relação material controvertida, para além da ordem jurídica portuguesa, apresenta conexão com várias ordens jurídicas estrangeiras, tendo presente que o autor reside e trabalha em Portugal e que a ré tem sede e desenvolve a sua actividade nos Estados Unidos da América, tendo-se os alegados factos ilícitos e culposos geradores de danos sido consumados ao longo dos anos em todo o Mundo.
Neste conspecto, deflui do disposto no art.º 37.º, n.º 2, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário), que a competência internacional dos Tribunais portugueses, se deverá fixar de acordo com os factores de conexão definidos pela lei do processo.
Decorrência de tal estipulação, teremos que concluir que é o regime processual civil interno que estabelece as normas que atribuem ou denegam a competência aos tribunais nacionais, quando em causa estejam litígios transfronteiriços.
Aqui chegados, importa então convocar o regime plasmado no art.º 59.º, do Código de Processo Civil, o qual, sob a epígrafe “competência internacional”, preceitua que “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º.”
Decorre de tal norma (art.º 59.º, do Código de Processo Civil), conjugada com o que preceituam o art.º 288.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, e o art.º 8.º, n.º 4 da Constituição de República Portuguesa, que, para efeito de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses, a regra é a de que, quando a matéria discutida não esteja abrangida pela competência exclusiva dos tribunais portugueses, prevalece sobre os elementos de conexão mencionados nos art.º 62.º e 63.º, do Código de Processo Civil, e também predomina sobre a celebração de pacto atributivo de competência, nos termos do artigo 94.º, do mesmo Código, o regime que para o mesmo efeito (atribuição de competência internacional) se mostre estabelecido nos regulamentos europeus ou noutros instrumentos internacionais, quando aqueles regulamentos não tenham aplicação e estes a tenham.
A propósito, pode ver-se, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07.12.2017 (com texto integral acessível in www.dgsi.pt – processo n.º 6919/16.0T8PRT.G1), com a seguinte síntese, para o que ao caso importa:
I–Coexistem na nossa ordem jurídica dois regimes gerais de competência internacional: o regime interno estabelecido no CPC e o regime comunitário.
II–O regime interno de competência internacional só será aplicável quando a ação não for
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